Parecer
Autos nº. 990.10.059377-3
Requerente: Prefeito Municipal de Itanhaém
Objeto: Lei Municipal nº 3.578, de 14 de outubro de 2009, de Itanhaém
Ementa: Isenção de tarifa no transporte coletivo. Lei de iniciativa do Poder Legislativo. Ausência de reserva do Chefe do Poder Executivo. Constitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Itanhaém, tendo por objeto a Lei Municipal nº 3.578, de 14 de outubro de 2009, daquele Município , que dispõe sobre a concessão de benefícios na área de transporte urbano de passageiros do Município.
Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, por isso, encontra-se eivado pelo vício de iniciativa.
A liminar foi deferida (fls. 28/29).
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 42/44).
O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 46/56, em defesa da lei impugnada.
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
A
ação deve ser julgada improcedente. Vejamos.
Pode-se afirmar que a matéria versada
na lei impugnada não é de iniciativa legislativa reservada ao Executivo, pois
não está contemplada no rol do art. 24, § 2º, 1 a 6, da Constituição Paulista,
inexistindo, por esse aspecto, qualquer inconstitucionalidade a ser declarada
em razão do impulso parlamentar dado ao projeto que culminou com a edição do
ato normativo em epígrafe.
De outro lado, não há, também, violação ao postulado
constitucional da independência e harmonia entre os Poderes. A Constituição
Federal atribuiu competência aos Municípios para legislar sobre assuntos de
interesse local, bem como para organizar e prestar, diretamente ou sob o regime
de concessão ou permissão, os serviços de interesse local, incluído o
transporte coletivo (art.30, II e V da CF). E legislar a respeito do tema não
significa invadir a seara da administração local.
A propósito,
a Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo
para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na
administração direta e indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos
na administração pública; regime jurídico dos servidores públicos (cf. art.24,
§2º, n.
De outro lado, a Constituição do Estado de São Paulo
também determina que cabe ao Executivo exercer a direção superior da
Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art.47,
incisos II e XIV).
O princípio da independência e harmonia
entre os Poderes, adotado expressamente no ordenamento constitucional
brasileiro, não coloca o Executivo em posição de preeminência, e o Legislativo
em situação de mera coadjuvação. É indispensável vislumbrar na
proporcionalidade de forças na formulação das opções políticas do Estado,
decorrente do sistema de separação associado aos freios e contrapesos (checks and balances), que Executivo e
Legislativo, atuando em suas respectivas esferas de atribuição, possuem a mesma
relevância política.
Assim como o Executivo não deve sofrer
indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento,
direção, organização e execução das atividades da Administração), o Legislativo
não deve ver minimizada sua atividade de legislar. Afinal, em última análise,
nosso regime democrático é representativo, e o Poder Legislativo, em sede de
elaboração legislativa, reflete a própria voz da vontade popular.
Entendimento diverso significa admitir,
como perfil do Estado Democrático brasileiro, numa imagem representativa, uma
balança deslocada para um lado de maior importância e prestígio: o lado do
Poder Executivo. Um Executivo hipertrofiado em suas atribuições e poderes,
ladeado por um Legislativo que se limitará a chancelar iniciativas daquele.
Não parece ter sido esta a opção do
Constituinte.
Note-se, de início, que a essência da
separação de Poderes, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é a “proteção da independência de determinado
Poder, como ocorre com a de iniciativa em favor do Judiciário, que aliás,
procede da inspiração que em Montesquieu sugeria a atribuição de veto ao
Executivo, ou a redução das despesas públicas" (Do processo legislativo,
5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p.147).
Como anota José Afonso da Silva, nos
casos de iniciativa reservada aos Chefes do Executivo só estes “estão em condições de saberem quais são
esses interesses e como fazerem para resguardá-los” (Processo constitucional de formação das leis, 2ªed., São Paulo,
Malheiros, 2006, p.179).
Deve-se notar, entretanto, que a regra
em nosso regime constitucional é a livre iniciativa legislativa, que decorre do
art.61 caput da CF, ao passo que as
hipóteses de iniciativa reservada são excepcionais.
Como tal é curial que regras de exceção sejam interpretadas restritivamente,
sem a possibilidade de extensão por integração ou interpretação analógica.
Lembrando o brocardo latino segundo o
qual “exceptiones sunt strictissimae
interpretanionis”, há muito Carlos Maximiliano anotava que “as disposições excepcionais são
estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas
jurídicas ou contra o direito comum, por isso não se estendem além dos casos e
tempos que designam expressamente” (Hermenêutica
e aplicação do direito, 18ªed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1999,
p.227).
O Pretório Excelso já assentou que as
hipóteses indicadas pelo texto constitucional como casos de iniciativa
legislativa privativa do Executivo, assumindo o caráter de direito excepcional,
na expressão de Carlos Maximiliano, devem ser interpretadas de forma
restritiva. Confira-se:
"O
respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui
pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das
leis. Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação
concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em
conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar — em face do seu
caráter excepcional — de expressa
previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo
taxativo, em numerus clausus, as hipóteses em que essa cláusula de
privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. O
desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante
da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de
inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria
integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida,
juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo
(...).” (ADI 776-MC, Rel. Min.
Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de 15-12-06, g.n.).
"A
disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz
essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição — e nele
somente —, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa,
inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. A
teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa
vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima — considerada a
qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa
— se houver, no texto da própria
Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência
desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo
vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do
Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa." (MS
22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06, g.n.).
Note-se que, nos precisos termos da
Constituição Estadual (art.120), cabe exclusivamente ao Poder Executivo a
fixação de tarifas dos serviços públicos. Entretanto, essa exclusividade não se
estende à prerrogativa de conceder isenções quanto ao pagamento de tarifas, o
que é próprio de lei - cuja iniciativa é geral ou concorrente - a ser editada
pelo ente público responsável pela prestação do serviço (Cf. Hely Lopes Meirelles,
Direito Municipal Brasileiro, 15ª
ed., Malheiros, São Paulo, 2006, p.164).
Também não se caracteriza, na hipótese,
prática de ato de administração pelo legislativo, o que poderia amparar o
reconhecimento da tese da quebra do princípio da separação de poderes. Note-se
que a lei aqui analisada reveste-se de todos os pressupostos necessários à sua
configuração como ato normativo: generalidade, impessoalidade, e abstração.
Também não é possível acolher o pleito com amparo no
art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.
Com
a devida vênia, duvidosa a constitucionalidade do dispositivo, ao prever que “Nenhum
projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será
sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios
para atender aos novos encargos”, quando utilizado como entrave ao
regular desenvolvimento do processo legislativo.
Ademais, afirmar que a lei gerará aumento de despesas
sem que haja recursos disponíveis é pautar o exame da constitucionalidade da norma
em aspecto factual (existência ou não dos recursos), cuja análise extrapola o
limite do controle abstrato de normas.
A adequada
compreensão do art. 25 da Constituição do Estado nos leva à conclusão de que o
Poder Executivo está impedido de sancionar qualquer projeto de lei que implique
a criação ou o aumento de despesa pública, quando dele não constar a indicação
dos recursos disponíveis, próprios para o atendimento dos novos encargos. Mas
isso não significa que o Legislativo não possa ter iniciativa na matéria. Quem
tem o poder de veto ou sanção é o Executivo, e a regra se dirige exclusivamente
a ele.
Na
Constituição Federal, porém, não existe nenhuma regra com idêntico conteúdo,
que impeça o Chefe do Poder Executivo de exercer a prerrogativa de sancionar os
projetos de lei aprovados pelo Parlamento.
Assim, o art. 25 da Constituição do
Estado de São Paulo é inconstitucional, na medida em que viola o modelo adotado
pela Constituição Federal para o processo de elaboração das leis.
Como é
sabido, o modelo de processo legislativo adotado em nosso ordenamento está
delineado no texto da Constituição Federal.
Embora pondere com relação ao acerto da
tese, sustenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que, em que pese a autonomia
para organização reservada aos Estados e Municípios, “O STF tem decidido no sentido da simetria entre o processo legislativo
da União e o dos Estados e Municípios. É o que resulta da jurisprudência
iniciada na Ação Direta de Inconstitucionalidade .216/PB, relatada pelo Min.
Celso de Mello (RTJ 146:388)” (Do
processo legislativo, cit., p.253).
Nesse sentido já se posicionou o Pretório Excelso,
pacificando a obrigatoriedade de simetria entre o processo legislativo dos
Estados e dos Municípios, com relação ao Federal, em que pese a respectiva
autonomia dos entes federativos:
"Processo
de reforma da Constituição estadual — Necessária observância dos requisitos
estabelecidos na Constituição Federal (art. 60, §§ 1º a 5º) — Impossibilidade
constitucional de o Estado-Membro, em divergência com o modelo inscrito na Lei
Fundamental da República, condicionar a reforma da Constituição estadual à
aprovação da respectiva proposta por 4/5 (quatro quintos) da totalidade dos
membros integrantes da Assembléia Legislativa — Exigência que virtualmente esteriliza
o exercício da função reformadora pelo Poder Legislativo local — A questão da
autonomia dos Estados-Membros (CF, art. 25) — Subordinação jurídica do poder constituinte decorrente às limitações
que o órgão investido de funções constituintes primárias ou originárias
estabeleceu no texto da Constituição da República: (...)." (ADI 486,
Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 3-4-97, DJ de 10-11-06, g.n.).
"O poder constituinte outorgado aos
Estados-Membros sofre as limitações jurídicas impostas pela Constituição da
República. Os Estados-membros organizam-se e regem-se pelas Constituições e
leis que adotarem (CF, art. 25), submetendo-se, no entanto, quanto ao exercício
dessa prerrogativa institucional (essencialmente limitada em sua extensão), aos
condicionamentos normativos impostos pela Constituição Federal, pois é nessa
que reside o núcleo de emanação (e de restrição) que informa e dá substância ao
poder constituinte decorrente que a Lei Fundamental da República confere a
essas unidades regionais da Federação.” (ADI 507, Rel. Min. Celso de
Mello, julgamento em 14-2-96, DJ de 8-8-03).
Registre-se ainda que, à parte de prever regra não
contida no processo legislativo federal, o art.25 da Constituição do Estado de
São Paulo acaba por criar óbice quase que intransponível ao exercício da
iniciativa legislativa por parte de parlamentares (recordemos que a iniciativa
em matéria orçamentária é reservada ao Poder Executivo cf. art.174 da
Constituição do Estado; e art.165 da Constituição Federal), interferindo, ademais,
na prerrogativa do Executivo de sancionar ou vetar os projetos de lei.
Em síntese, o argumento é inconsistente
para fins de reconhecimento de invalidade da lei impugnada.
Destaque-se, ainda, a relevância social
da lei impugnada, que se encontra em consonância com o princípio constitucional
da dignidade da pessoa humana e ainda ao que dispõe o art. 227 da CF:
"É dever
da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo d toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."
Isso nos permite afirmar que a lei impugnada está em
conformidade com a ordem jurídica vigente, sendo absolutamente razoável o
benefício por ela concedido.
Diante do
exposto, aguarda-se a improcedência da
presente ação direta, reconhecendo-se a constitucionalidade da Lei
Municipal nº 3.578, de 14 de outubro de 2009, de Itanhaém.
São Paulo, 14 de julho de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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