Parecer
Autos nº. 990.10.073579-9
Requerente: Prefeito Municipal de Carapicuíba
Objeto: Lei nº 2.974, de 11 de fevereiro de 2010, do Município de Carapicuíba
Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Determinação para que a Prefeitura Municipal utilize materiais de expedientes confeccionados em papel reciclado. 2) Violação da separação de poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art.5º, 47 II e XIV da Constituição Paulista). 3) Criação de novas despesas sem a indicação da respectiva fonte de receitas (art.25 da Constituição Paulista). 5) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Carapicuíba, tendo por objeto a Lei nº 2.974, de 11 de fevereiro de 2010, que “Dispõe sobre a utilização de materiais de expedientes confeccionados em papel reciclado pela Administração Pública Municipal, conforme especifica”.
Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi integralmente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 19/23).
O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 37.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 65/67).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Em
que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se
transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente
incompatível com nossa sistemática constitucional.
Este é o teor do ato normativo impugnado, no que interessa:
“Artigo - 1º - A Administração Pública Municipal Direta e Indireta, Autárquica e Fundacional dos Poderes Executivo e Legislativo poderão utilizar, prioritariamente, observadas a disponibilidade existente no mercado, materiais de expediente confeccionados em papel reciclado, a partir da data de vigência desta Lei, de acordo com os seguintes percentuais mínimos:
I- 10% (dez por cento) no primeiro ano;
II- 30% (trinta por cento) no segundo ano;
III- 50% (cinquenta por cento) a partir do terceiro ano.
Parágrafo Único - Como material de expediente de uso diário, entende-se envelopes, cartões, formulários, blocos, rascunhos, notas, recibos, papéis timbrados, publicações, processos, boletins, embalagens e de uso similares."
A lei, de
iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas
pela Administração Pública, prevendo a obrigação de utilizar em suas tarefas
diárias de papel reciclado.
Não há dúvida de que, como tal, a iniciativa
parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão
administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no art.5º
e no art.47 II e XIV da Constituição Paulista.
É ponto pacífico na doutrina, bem como na
jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de
administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e
execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder
Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos
normativos revestidos de generalidade e abstração.
O legislador municipal, na hipótese analisada, criou
obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.
Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a
tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional,
por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do
Município.
Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder
Executivo, e envolve o planejamento, a
direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à
prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes
Meirelles, anotando que
“a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa:
a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa,
convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos,
individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo
as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência
dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local.
Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções
é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também
toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou
do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos
órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo
Poder Judiciário” (Direito
municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e
Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder
Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros
atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre
os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a
inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que
interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a
seguir:
“Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município
de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos
edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência
entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.”
(TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).
Não bastasse
o acima exposto, em casos assim esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a
inconstitucionalidade de normas que criam despesas para o Poder Público, sem a
indicação das respectivas fontes de receita, em violação ao disposto no art.25
da Constituição Bandeirante. Confiram-se, a título de exemplificação, recentes
julgados adiante indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.
19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007,
v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.974, de 11 de fevereiro de 2010, do Município de Carapicuíba.
São Paulo, 27 de julho de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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