Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.091132-5

Requerente: Prefeito Municipal de Mirassol

Objeto: Lei nº 3.286, de 29 de janeiro de 2010, do Município de Mirassol

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Iniciativa parlamentar que dispõe sobre a suspensão da cobrança da tarifa de esgoto cobrada pela Concessionário do Serviço de Água e Esgoto do Município de Mirassol. Inexistência de reserva de iniciativa legislativa em matéria tributária. Contraprestação de serviço público específico e divisível, que não tem caráter tributário e, conseqüentemente, não configura taxa. Invasão da prerrogativa exclusiva de o poder público municipal fixar tarifas de serviço público. Violação ao princípio da separação dos poderes (arts. 5º, 47, II e XIV, 117, 119 , 120, 122, e 144, Constituição Estadual). Procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Mirassol, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 3.286, de 29 de janeiro de 2010, que “Dispõe sobre a suspensão da cobrança da tarifa de esgoto cobrada pela Concessionária do Serviço de Água e Esgoto do Município de Mirassol”

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi integralmente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 215).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 225/227).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

Este é o teor do ato normativo impugnado:

“Art.1º  Fica suspensa a cobrança da tarifa de esgoto/esgotamento sanitário, cobrado pela Concessionária do Serviço de Água e Esgoto do Município de Mirassol/SP.

§1º - A suspensão contida no “caput” perdurará até que a Concessionária implemente mecanismo para cobrança do serviço de esgoto efetivamente prestado a cada consumidor.

§2º - Em hipótese alguma, os custos oriundos da implementação do mecanismo para a cobrança do serviço de esgoto poderá ser repassado aos consumidores.

§3º - Implementado o mecanismo para cobrança do serviço de esgoto, seu valor não exercerá a 50 % (cinqüenta por cento) do valor cobrado pelo fornecimento de água potável.

§4º - O percentual máximo de 50% (cinqüenta por cento) do valor cobrado pelo fornecimento de água potável, somente poderá ser cobrado a partir do momento em que a Concessionária tratar efetivamente de todo o esgoto coletado.

Art. 2º - Fica proibida a cobrança pela Concessionária do Serviço de Água e Esgoto da tarifa mínima de 10m³ (dez metros cúbicos).

Art. 3º - Fica proibida a cobrança pela Concessionária do Serviço de Água e Esgoto da tarifa de re-ligamento em caso de suspensão do serviço.

Art. 4º - As despesas decorrentes da execução da presente Lei, correrão por conta de dotações orçamentárias próprias constantes no orçamento vigente, suplementadas por Decreto, se necessário.

Art. 5º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

 

        Referida lei, de iniciativa parlamentar, suspende a cobrança de tarifa de esgoto cobrada pela Concessionária do Serviço de Água e Esgoto do Município de Mirassol, até que a Concessionária implemente  mecanismo para cobrança do serviço de esgoto prestado a cada consumidor; estabelece que o percentual máximo de 50% (cinquenta por cento) do valor  cobrado pelo fornecimento de água potável somente poderá  ser cobrado a partir do momento em que a Concessionária tratar efetivamente  todo o esgoto coletado; proíbe  a cobrança de tarifa mínima de 10m³ e, em caso de re-ligamento por caso de suspensão de serviço.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Ademais, o legislador municipal, na hipótese analisada, também, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando quea Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

         

          Por fim, não é dado estender o regime jurídico tributário a serviço público remunerado por preço público (tarifa) e não por taxa. A compulsoriedade da cobrança e a natureza do serviço público prestado são impositivas da diferenciação jurídica entre taxa e tarifa. E nesse tema, o tratamento dispensado pela Suprema Corte, é distinto, e afirma a inconstitucionalidade de lei resultante de iniciativa parlamentar:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.304/02 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. EXCLUSÃO DAS MOTOCICLETAS DA RELAÇÃO DE VEÍCULOS SUJEITOS AO PAGAMENTO DE PEDÁGIO. CONCESSÃO DE DESCONTO, AOS ESTUDANTES, DE CINQUENTA POR CENTO SOBRE O VALOR DO PEDÁGIO. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS CONTRATROS CELEBRADOS PELA ADMINISTRAÇÃO. VIOLAÇÃO. PRINCÍPIO DA HARMONIA ENTRE OS PODERES. AFRONTA. 1. A lei estadual afeta o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de obra pública, celebrado pela Administração capixaba, ao conceder descontos e isenções sem qualquer forma de compensação. 2. Afronta evidente ao princípio da harmonia entre os poderes, harmonia e não separação, na medida em que o Poder Legislativo pretende substituir o Executivo na gestão dos contratos administrativos celebrados. 3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente” (STF, ADI 2.733-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 26-10-2005, v.u., DJ 03-02-2006, p. 11).

Trata-se de reserva de ato da Administração à luz do art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, corroborado pelos arts. 119 , 120 e 122, da Carta Polícia Paulista, todos aplicáveis aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual. Aliás, nesse sentido é expresso o art. 120:

“Art. 120. Os serviços públicos serão remunerados por tarifa previamente fixada pelo órgão executivo competente, na forma que a lei estabelecer”.

Ora, se a Constituição Estadual reserva a fixação da tarifa ao órgão executivo competente, não é dado, em atenção ao princípio da simetria das formas, ao Poder Legislativo se imiscuir nessa seara (estipulando reduções, isenções ou quaisquer outras espécies de benefícios aos usuários), sob pena de comprometimento do equilíbrio econômico financeiro que deve ostentar a remuneração do serviço público industrial ou comercial (art. 117, Constituição Estadual) e violação à cláusula da separação de poderes (art. 5º, Constituição Estadual) pela invasão da esfera reservada de ato da Administração que lhe foi conferida para gestão do serviço público direta ou indiretamente executado.

          Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.286, de 29 de janeiro de 2010, do Município de Mirassol, por incompatibilidade vertical com os arts. 5º, 47, II e XIV, 117, 119, 120, 122, e 144, da Constituição Estadual.

São Paulo, 26 de julho de 2010.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

      - Jurídico -

vlcb