Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº. 990.10.095321-4

Requerente: Sindicato das Empresas Funerárias do Estado de São Paulo (SEFESP)

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 10.036, de 14 de janeiro de 2008, de São José do Rio Preto

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 10.036, de 14 de janeiro de 2008, de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a obrigatoriedade a apresentação de consulta prévia para obtenção de alvará de construção de velórios no Município”.

2)      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Criação de despesas sem fonte específica de receita (art. 25 da Constituição Paulista).

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Sindicato das Empresas Funerárias do Estado de São Paulo (SEFESP), tendo como alvo a Lei Municipal nº 10.036, de 14 de janeiro de 2008, de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que, conforme a respectiva rubrica, “dispõe sobre a obrigatoriedade a apresentação de consulta prévia para obtenção de alvará de construção de velórios no Município”.

Sustenta o autor que o ato normativo impugnado, oriundo de iniciativa parlamentar, violou a regra da separação de poderes, por interferir diretamente na gestão das atividades administrativas do Município. Aponta para a violação do art. 5º, art. 144 e art. 181, todos da Constituição Paulista. Aponta ainda para desrespeito a dispositivos infraconstitucionais, bem como da Constituição da República, que teriam sido violados.

Sem pedido de liminar, foi determinada a citação do Procurador-Geral do Estado, bem como a requisição de informações à Câmara Municipal de São José do Rio Preto (fls. 163/165).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 184, 186/188).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 190/192).

É o relato do essencial.

Tratando-se de ação direta de inconstitucionalidade estadual, descabe tomar como parâmetros de controle, normas inseridas na Constituição da República, ou mesmo normas infraconstitucionais.

Cabe-nos, dessa forma examinar a quaestio iuris à luz de disposições da Constituição do Estado de São Paulo.

Primeiro, está presente a pertinência temática e a representatividade da autora, ao contrário do que afirmou a Câmara Municipal, em suas informações.

Isso decorre do fato de que o Sindicato das Empresas Funerárias do Estado de São Paulo (SEFESP), como demonstra o art. 1º de seu Estatuto Social (fls. 17), é constituído para “fins de estudos, coordenação, proteção e representação legal das empresas funerárias instaladas na base territorial do Estado de São Paulo”. E está a fazê-lo, na presente ação direta, considerando ainda a temática tratada no ato normativo impugnado, ou seja, condicionamentos impostos à construção de prédios destinados funcionar como velórios.

Passa-se ao exame do mérito.

A Lei Municipal nº 10.036, de 14 de janeiro de 2008, de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que, conforme a respectiva rubrica, “dispõe sobre a obrigatoriedade a apresentação de consulta prévia para obtenção de alvará de construção de velórios no Município”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Fica obrigada a apresentação de consulta prévia, contendo a concordância expressa de cinquenta por cento mais um dos moradores proprietários, num raio de 100 (cem) metros do local onde se pretende construir a obra, para a expedição de alvará de construção de velórios no Município de São José do Rio Preto, salvo se entre o local do velório e a residência mais próxima existir a distância de 500 metros.

Parágrafo único. Fica desobrigado ao Poder Público a exigência do caput deste artigo.

(...)”

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo, na medida em que condicionou a expedição de alvarás para a construção de prédios destinados a velórios a prévia consulta e concordância de parcela dos moradores proprietários de imóveis situados nas imediações do local da construção.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo. Não é necessário que a lei autorize o Poder Executivo a fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação. Também não se mostra adequado que a lei estabeleça condições para a expedição de autorizações para construção, condicionando esses atos, essencialmente administrativos, à consulta popular nela prevista.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da administração (ou seja, ato administrativo), isso significa invasão da esfera de competências do Executivo por ato do Legislativo, configurando clara violação do princípio da separação de poderes.

Resolver se deverá ou não o Município expedir alvarás para construção, em conformidade com a legislação referente ao uso do solo urbano, é matéria exclusivamente relacionada à administração pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Não bastasse isso, a lei impugnada provocará, evidentemente, realização de despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes de receita para tanto.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

Nesse sentido, apenas a título de exemplificação, confiram-se os julgados a seguir indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei 10.036, de 14 de janeiro de 2008, de São José do Rio Preto.

São Paulo, 14 de outubro de 2010.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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