Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.103736-0

Requerente: Federação das Empresas de Transportes de Passageiros por Fretamento do Estado de São Paulo - FRESP

Objeto: Lei nº 14.971, de 25 de agosto de 2009, do Município de São Paulo

 

 

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade.   Circulação de veículos fretados para transporte de passageiros.   Legislação Municipal.   Competência do Município para legislar a respeito do trânsito em seu território.  Interesse local presente.   Constitucionalidade da norma constatada.  Parecer pela improcedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pela Federação das Empresas de Transportes de Passageiros por Fretamento do Estado de São Paulo - FRESP, tendo por objeto a Lei nº 14.971, de 25 de agosto de 2009, do Município de São Paulo, que "Dispõe sobre a atividade de fretamento no âmbito do Município de São Paulo".

O autor sustenta, em síntese, a inconstitucionalidade da norma impugnada pelos seguintes motivos:

1) abusiva limitação ao tráfego de pessoas e imposição de obrigações desarrazoadas (restrição de circulação e obrigatoriedade de aquisição de equipamento de GPS - não previsto no Código de Trânsito Brasileiro);   2) desvio de finalidade;   3) descumprimento dos preceitos da Lei Orgânica do Município e do Plano Diretor;  4) ausência de motivação;  5) violação ao princípio da igualdade ao impor restrição de circulação exclusivamente ao transporte coletivo por fretamento;   6) usurpação de competência do Estado para legislar sobre a matéria;  7) violação ao princípio da livre iniciativa e da livre concorrência.

A Lei teve a vigência e eficácia parcialmente suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 187/190).

O Sr. Prefeito Municipal prestou informações (fls. 206/265), em defesa da norma impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 405/407).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Improcede a ação, com todo respeito.

         Por primeiro, há que ser enfrentada a questão da competência do município para legislar sobre a restrição de circulação de veículos em seu território.

         Com a advertência de que a vergastada lei não se aplica à circulação de veículos fora de seu território, a teor do que dispõe o seu artigo primeiro, ao rezar que: "O transporte coletivo privado de passageiros, na modalidade de fretamento, no âmbito do Município de São Paulo, obedecerá ao disposto nesta lei", tem-se como patente o interesse local.

         Neste ponto, temos que ao Município está reservada a competência para legislar sobre assuntos de seu interesse local (art.30, I, da CF). Nada fácil se mostra conceituar ‘interesse local’.  Hely Lopes Meirelles esclarece que O que define e caracteriza o “interesse local”, inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União.”  Mais adiante, o mencionado autor citando Sampaio Dória, coloca que “O entrelaçamento dos interesses dos Municípios com os interesses dos Estados, e com os interesses da Nação, decorre da natureza mesma das coisas. O que diferencia é a predominância, e não a exclusividade”. Assim, “...tudo quanto repercutir direta e imediatamente na vida municipal é de interesse peculiar do Município, embora possa interessar também indireta e mediatamente ao Estado-membro e à União.”(Direito Municipal Brasileiro”, 6ª edição, Malheiros Editores, pág.98 e 99).  Não é outro, ainda, o entendimento de Fernanda Dias Menezes, para quem “é inegável que mesmo atividades e serviços tradicionalmente desempenhados pelos municípios, como transporte coletivo, polícia das edificações, fiscalização das condições de higiene de restaurantes e similares, coletas de lixo, ordenação do uso do solo urbano, etc., dizem secundariamente com o interesse estadual e nacional” (in “Competências na Constituição de 1988, Atlas, 1991). Nesse sentido, inclui-se no contexto de interesse local a competência do município para disciplinar o trânsito urbano e o tráfego. Veja-se que o atual Código de Trânsito Brasileiro inseriu os municípios no Sistema Nacional de Trânsito (art.5º), estabelecendo em seu art.24, a competência dos órgãos e entidades executivas de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição, para dentre outras tarefas, a de cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições; planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas; executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as medidas administrativas cabíveis, por infrações de circulação, estacionamento e paradas previstas no Código, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito. Depreende-se, assim, que no âmbito da competência municipal insere-se a fixação de locais de estacionamento, assim, como o estabelecimento de mão e contra-mão, limites de velocidade, e tudo o mais que afetar a vida da cidade (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 6ª edição, Malheiros Editores, pág.320).

O tema pertinente à questão da competência municipal, assim como o da restrição impugnada pelo requerente, já foi enfrentado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em inúmeras vezes, valendo transcrever a decisão proferida na Apelação Cível nº27.944-5/3-00, da Comarca de Santos, em que foi relator o Desembargador Márcio Bonilha: “A Lei Municipal nº45/93, bem como o Decreto regulamentador nº38/93, editados pela Municipalidade local, no que se refere à disciplina do tráfego de ônibus de turismo de massa, tipo excursão, decorrente de fretamento, e à instituição de taxa de estacionamento, a título de permissão de uso ou autorização, na esfera da competência reservada ao município, em razão da matéria neles versada, não padecem de vício de inconstitucionalidade, seja no tocante à determinação de locais de estacionamento, seja em relação à cobrança da denominada taxa, ou na fixação de itinerário de trânsito e regulamentação de acesso a terminais, inclusive o estabelecimento de estacionamento de coletivos em certos pontos e ruas da localidade, com a criação de Terminal Turístico municipal."

A limitação relativa à circulação de fretados no município, bem justificada nas informações do Sr. Prefeito Municipal, está legitimada pela competência decorrente do poder regulamentar e de polícia de que está investido o município, por força de norma constitucional, em matéria de seu peculiar interesse, no âmbito da capacidade normativa própria.

A autonomia normativa, que deflui do princípio da autonomia municipal, assegurada pelos artigos 18 e 29 da Constituição da República, que é garantida contra os Estados, no art.34, VII, ‘c’, de nossa Carta Magna, como preleciona o douto José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed. Malheiros Ed., 1992, pgs 545/546), legitima a imposição das regras específicas contra as quais se insurge o requerente, explicando o tratamento regulamentar impugnado, para a solução de grave problema, que afeta o interesse particular do município, cuja salvaguarda é indispensável.

É induvidoso que a regulamentação do trânsito urbano compete ao município, por se cuidar de assunto de seu peculiar interesse, como se colhe de velha lição, sempre atual, do festejado Hely Lopes Meirelles, ‘Direito Municipal Brasileiro’, 3ª ed. RT, pg.499: “Realmente, a circulação urbana e o tráfego local, abrangendo o transporte coletivo em todo o território municipal são atividades da estrita competência do Município, para atendimento das necessidades específicas de sua população.”

         Não se confunde, a competência que cabe à União para legislar sobre assuntos nacionais de trânsito e tráfego, pois é sabido que, nessa matéria, também compete ao Estado-membro “regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território”(H.L.M. op.cit, pg 499), cabendo ao Município a ordenação do trânsito urbano. É que se cuida de tríplice regulamentação – federal, estadual e municipal, “conforme a natureza e âmbito do assunto a prover”(H.L.M. op. cit, pg.498).”

         Com tais argumentos, refutam-se, de imediato, as alegações de abusiva limitação ao tráfego de pessoas e imposição de aquisição do equipamento de GPS.

         Quanto ao primeiro, a incongruência é notória.   Já com relação ao equipamento, ressalta-se a necessidade do Município exercer efetivo controle da rota a ser cumprida pelo veículo de fretamento.

         Neste caso, o interesse local impõe, ao interessado no exercício da atividade de fretamento de veículos, para possibilitar que a Administração Pública exerça o poder de polícia, que instale o aparelho GPS, que viabiliza o seu rastreamento.

         Como corolário, afastada fica a argumentação de desvio de finalidade e ausência de motivação.

         Resta análise, portanto, tão somente quanto ao alegado descumprimento dos preceitos da Lei Orgânica do Município e do Plano Diretor e violação aos princípios da igualdade, da livre iniciativa e da livre concorrência.

         Neste ponto, forçoso se admitir que a presente ação não se mostra como meio viável a tal pretensão, pois verifica-se a inexistência de contrariedade à norma constitucional Estadual, visto que aponta-se violação à Constituição ou Legislação Federal.

Nesse último caso, inviável a ativação da jurisdição constitucional, pois o confronto da espécie normativa objeto de controle só pode ser feito com a Constituição Estadual, nunca com a legislação ordinária. No controle de constitucionalidade, a harmonia normativa que se exige é com o texto fundamental, tanto que é ele o objeto paradigma. Portanto, eventual dissonância com a legislação infraconstitucional não enseja crise de constitucionalidade, mas sim crise de legalidade.

Os parâmetros de controle da validade jurídico-constitucional das leis, é cediço, devem estar assentados no próprio texto constitucional. O processo objetivo não se presta ao controle de inconstitucionalidades indiretas, mas apenas das afrontas diretas e imediatas do texto da Constituição.

Nesse sentido, mutatis mutandis, já decidiu o Pretório Excelso:

"É incabível a ação direta de inconstitucionalidade quando destinada a examinar atos normativos de natureza secundária que não regulem diretamente dispositivos constitucionais, mas sim normas legais. Violação indireta que não autoriza a aferição abstrata de conformação constitucional." (ADI 2.714, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 13-3-03, DJ de 27-2-04).

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MP 1911-9/99. NORMA DE NATUREZA SECUNDÁRIA. VIOLAÇÃO INDIRETA. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME EM SEDE DE CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. 1. É incabível a ação direta de inconstitucionalidade quando destinada a examinar ato normativo de natureza secundária que não regule diretamente dispositivos constitucionais, mas sim normas legais. Violação indireta que não autoriza a aferição abstrata de conformação constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida.  (ADI 2065 / DF – DISTRITO FEDERAL, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. MAURÍCIO CORRÊ., Julgamento:  17/02/2000, Tribunal Pleno, DJ 04-06-2004 PP-00028, EMENT VOL-02154-01, PP-00114)”.

No mesmo: ADI-MC 1347/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 05/09/1995, Tribunal Pleno, DJ 01-12-1995, p.41685, EMENT VOL-01811-02, p.00241; ADI 2626/DF – DISTRITO FEDERAL, Relator(a):  Min. SYDNEY SANCHES, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 18/04/2004.  Tribunal Pleno. DJ 05-03-2004, PP-00013, EMENT VOL-02142-03, PP-00354.

Desse entendimento não destoa a jurisprudência da Corte Paulista:

“As ações diretas de inconstitucionalidade devem ater-se a contrastes com dispositivos constitucionais, não com normas de direito comum, independente de sua hierarquia. A violação de dispositivo de leis ordinárias, leis complementares e mesmo de preceitos inseridos em lei orgânica do município, não pode ser invocada em ação direta” (TJSP, ADI 46.911-0/4-00, Órgão Especial, Rel. Des. Franciulli Netto, v.u., 08-09-1999).

Quanto a eventual afronta à Constituição Federal, já se assentou o entendimento de que não cabe, ao Tribunal de Justiça do Estado, realizar o controle de constitucionalidade adotando como parâmetro, dispositivos da Constituição da República, sob pena de usurpação da competência do próprio Supremo Tribunal Federal.

Por essa razão foi declarada a inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo, pelo C. STF, conforme ementa transcrita a seguir:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. ART. 74, XI. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE, PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE LEI OU ATO NORMATIVO MUNICIPAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROCEDÊNCIA. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, antes e depois de 1988, no sentido de que não cabe a tribunais de justiça estaduais exercer o controle de constitucionalidade de leis e demais atos normativos municipais em face da Constituição federal. Precedentes. Inconstitucionalidade do art. 74, XI, da Constituição do Estado de São Paulo. Pedido julgado procedente.” (STF, ADI 347/SP, rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, j.  20/09/2006).

Desse modo, curvando-me à orientação do Supremo Tribunal Federal e não vislumbrando a apontada inconstitucionalidade da lei impugnada, o parecer é no sentido da improcedência desta ação direta de inconstitucionalidade.

São Paulo, 27 de outubro de 2010.

 

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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