Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 990.10.105761-1

Requerente: Prefeito Municipal de Taubaté

Objeto: Lei n. 4.279, de 12 de novembro de 2009, do Município de Taubaté

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 4.279/09, do Município de Taubaté. Improcedência. Polícia administrativa. Segurança dos estabelecimentos bancários. Competência municipal sem reserva de iniciativa legislativa. 1. A obrigação imposta em lei municipal, de iniciativa parlamentar, a agências de instituições bancárias, de isolamento visual no atendimento de seus usuários das pessoas que aguardam atendimento, sob pena de sanções administrativas, configura o exercício da polícia administrativa conferida aos Municípios de segurança de estabelecimentos destinados ao público. 2. Insuscetível de objeto na fiscalização abstrata, concentrada, direta e objetiva de constitucionalidade de lei municipal, cujo único parâmetro é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), alegação de usurpação de competência normativa federal, pouco importando articulação de ofensa à Constituição do Estado sob o mote de violação ao princípio federativo (STF, Rcl 5.096-SP). 3. Reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo que não se presume por ser direito estrito, exigindo explícita previsão normativa sobre o assunto. 4. Matéria própria da polícia administrativa municipal desautorizando a argüição de violação ao pacto federativo por invasão da competência normativa federal. 5. O Município pode editar legislação própria, com fundamento na autonomia constitucional que lhe é inerente (art. 30, I, CF), com o objetivo de determinar, às instituições financeiras, que instalem, em suas agências, em favor dos usuários dos serviços bancários (clientes ou não), equipamentos destinados a proporcionar-lhes segurança ou a propiciar-lhes conforto. 6. Improcedência da ação. 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 4.279, de 12 de novembro de 2009, do Município de Taubaté, de iniciativa parlamentar, que impõe obrigação a agências de instituições bancárias, de isolamento visual no atendimento de seus usuários das pessoas que aguardam atendimento, sob pena de sanções administrativas, sob a alegação de incompetência legislativa do Município e violação à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, suscitando ofensa aos arts. 2º e 48, XIII, da Constituição Federal, aos arts. 5º e 144 da Constituição Estadual e aos arts. 31, II e III, e 34, da Lei Orgânica do Município (fls. 02/21). A liminar requerida foi deferida (fls. 25/26). A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou de sua participação na lide (fls. 36/38). A Câmara Municipal prestou informações defendendo a constitucionalidade do ato normativo sustentando, em suma, a competência municipal para edição de normas de interesse local relacionadas à proteção do consumidor e à qualidade do serviço prestado (fls. 40/48).

2.                É o relatório.

3.                Preliminarmente, falece interesse de agir à alegação de violação à Lei Orgânica do Município e à Constituição Federal. A fiscalização abstrata, concentrada, direta e objetiva de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, à luz do art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

4.                Alega-se, ainda, violação ao pacto federativo, radicada no art. 144 da Constituição Estadual.

5.                A argüição também não merece conhecimento, nos termos de julgado pelo Supremo Tribunal Federal:

“COMPETÊNCIA - PROCESSO OBJETIVO - CONFLITO DE LEI ESTADUAL COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O conflito de lei estadual disciplinadora da atribuição normativa para legislar sobre exercício profissional resolve-se considerada a Constituição Federal, pouco importando articulação, na inicial, de ofensa à Carta do Estado no que revela princípios gerais - de competir à Unidade da Federação normatizar o que não lhe seja vedado e respeitar a atuação municipal” (STF, Rcl 5.096-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, 20-05-2009, v.u., DJe 18-06-2009).

6.                Ademais, a competência normativa federal não foi molestada nem tangenciada pela lei local porque não disciplinou “matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações”, como prescreve o inciso XIII do art. 48 da Constituição Federal, uma vez que tratou somente de postura municipal referente a medidas de segurança em prol dos consumidores dos serviços bancários.

7.                A disciplina da segurança de atividades comerciais desenvolvidas nas comunas apresenta-se como matéria própria da competência legislativa municipal, à luz do disposto no art. 30, I, da Constituição Federal, que confere atribuição aos Municípios para “legislar sobre assuntos de interesse local”.

8.                Trata a lei local impugnada de matéria inerente à polícia administrativa incidente sobre o ramo comercial, e que é conferida aos Municípios. A respeito do assunto, calha invocar tradicional lição doutrinária estampando que:

“Além dos vários setores específicos que indicamos precedentemente, compete ao Município a polícia administrativa das atividades urbanas em geral, para a ordenação da vida da cidade. Esse policiamento se estende a todas as atividades e estabelecimentos urbanos, desde a sua localização até a instalação e funcionamento, não para o controle do exercício profissional e do rendimento econômico, alheios à alçada municipal, mas para a verificação da segurança e da higiene do recinto, bem como da própria localização do empreendimento (escritório, consultório, banco, casa comercial, indústria, etc.) em relação aos usos permitidos nas normas de zoneamento da cidade (...)

Nessa regulamentação se inclui a fixação de horário do comércio em geral e das diversificações para certas atividades ou estabelecimentos, bem como o modo de apresentação das mercadorias, utilidades e serviços oferecidos ao público. Tal poder é inerente ao Município para a ordenação da vida urbana, nas suas exigências de segurança, higiene, sossego e bem-estar da coletividade” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1993, 6ª. ed., pp. 368, 371).

9.                A análise da lei local impugnada revela o exercício da competência normativa municipal sem extravasamento de seus limites, pois, é plenamente admissível ao Município exigir de estabelecimentos bancários medidas e providências para proteção da vida, da integridade física e do patrimônio de seus usuários e consumidores.

10.              Em questão conexa, assentou a jurisprudência que compete ao Município legislar sobre o tempo de atendimento ao público nas agências bancárias:

“3. Firmou-se a jurisprudência, tanto no STF (v.g.: AgReg no RExt 427.463, RExt 432.789, AgReg no RExt 367.192-PB), quanto do STJ (v.g.: REsp 747.382; REsp 467.451), no sentido de que é da competência dos Municípios (e, portanto, do Distrito Federal, no âmbito do seu território - CF, art. 32, § 1º) legislar sobre tempo de atendimento em prazo razoável do público usuário de instituições bancárias, já que se trata de assunto de interesse local (CF, art. 30, I). Assim, eventual antinomia ou incompatibilidade entre a lei municipal e a lei federal no trato da matéria determina a prevalência daquela em relação a essa, e não o contrário” (STJ, REsp 598.183-DF, 1ª Seção, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, 08-11-2006, v.u., DJ 27-11-2006, p. 236).

“CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA. AGÊNCIAS BANCÁRIAS. TEMPO DE ATENDIMENTO AO PÚBLICO. LEI MUNICIPAL. INTERESSE LOCAL. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. O Município tem competência para legislar sobre o tempo de atendimento ao público nas agências bancárias” (STF, AI-AgR 472.373-RS, 1ª Turma, Rel. Min. Carmen Lúcia, 13-12-2006, v.u., DJ 09-02-2007, p. 23).

11.              E acerca da segurança dos estabelecimentos bancários, invoca-se venerando acórdão do Supremo Tribunal Federal, portador de premissa eloqüente aplicável ao caso para alijar a argüida invasão da competência normativa federal:

RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Competência legislativa. Município. Edificações. Bancos. Equipamentos de segurança. Portas eletrônicas. Agravo desprovido. Inteligência do art. 30, I, e 192, I, da CF. Precedentes. Os Municípios são competentes para legislar sobre questões que respeite a edificações ou construções realizadas no seu território, assim como sobre assuntos relacionados à exigência de equipamentos de segurança, em imóveis destinados a atendimento ao público” (STF, AI-AgR 491.420-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Cezar Peluso, 21-02-2006, v.u., DJ 24-03-2006, p. 26, RTJ 203/409).

12.              Em outra oportunidade, assentou a Suprema Corte que:

“ESTABELECIMENTOS BANCÁRIOS - COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA, MEDIANTE LEI, OBRIGAR AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS A INSTALAR, EM SUAS AGÊNCIAS, DISPOSITIVOS DE SEGURANÇA - INOCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA FEDERAL - ALEGAÇÃO TARDIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 144, § 8º, DA CONSTITUIÇÃO - MATÉRIA QUE, POR SER ESTRANHA À PRESENTE CAUSA, NÃO FOI EXAMINADA NA DECISÃO OBJETO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO - INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO ‘JURA NOVIT CURIA’ - RECURSO IMPROVIDO. - O Município pode editar legislação própria, com fundamento na autonomia constitucional que lhe é inerente (CF, art. 30, I), com o objetivo de determinar, às instituições financeiras, que instalem, em suas agências, em favor dos usuários dos serviços bancários (clientes ou não), equipamentos destinados a proporcionar-lhes segurança (tais como portas eletrônicas e câmaras filmadoras) ou a propiciar-lhes conforto, mediante oferecimento de instalações sanitárias, ou fornecimento de cadeiras de espera, ou, ainda, colocação de bebedouros” (STF, AI-AgR 341.717-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, 31-05-2005, v.u., DJ 05-08-2005, p. 92).

13.              Ora, emerge desses fundamentos a plenitude da autonomia municipal para, nos limites do interesse social, disciplinar a segurança de estabelecimentos destinados ao público, argumento que desabona, com força e vigor, a argüição de inconstitucionalidade na espécie.

14.              O outro fundamento utilizado para inquinar de inconstitucionalidade a lei local é o vício de ofensa à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo.

15.              Via de regra, a polícia de segurança de estabelecimentos comerciais no âmbito do Município não é matéria sujeita à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo, situando-se na iniciativa comum ou concorrente.

16.              Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

17.              Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).           

18.              Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144). Não se verifica nesse preceito reserva de iniciativa legislativa instituída de maneira expressa, assim como no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

19.              Na espécie, a norma local impõe obrigação a particulares, sujeita à fiscalização do Poder Executivo, sem, no entanto, conferir-lhe nova obrigação, senão requisitos para licenciamento de instalação e funcionamento de instituições financeiras, o que desautoriza argüição de ofensa aos arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II e XIX, a, da Constituição Estadual.

20.              Colhe-se da jurisprudência da Suprema Corte que a matéria respeitante a loteamento, uso e ocupação do solo urbano, zoneamento, construções e edificações é da iniciativa legislativa concorrente:

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade contra lei municipal, dispondo sobre matéria tida como tema contemplado no art. 30, VIII, da Constituição Federal, da competência dos Municípios. 2. Inexiste norma que confira a Chefe do Poder Executivo municipal a exclusividade de iniciativa relativamente à matéria objeto do diploma legal impugnado. Matéria de competência concorrente. Inexistência de invasão da esfera de atribuições do Executivo municipal. 3. Recurso extraordinário não conhecido” (STF, RE 218.110-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 02-04-2002, v.u., DJ 17-05-2002, p. 73).

21.              Tampouco se denota violação ao art. 25 da Constituição Estadual porque a lei local não cria encargo financeiro novo ao Poder Executivo.

22.              Opino pela improcedência da ação.

                   São Paulo, 11 de agosto de 2010.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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