Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.115755-1

Requerente: Prefeito do Município da Estância Turística de Tremenbé

Objeto: art. 24 da Lei Orgânica Municipal (com a redação dada pela Emenda nº 1, de 31 de Dezembro de 1993)

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade, ajuizada pelo Prefeito do Município da Estância Turística de Tremembé, do art. 24 da Lei Orgânica Municipal (com a redação dada pela Emenda nº 1, de 31 de Dezembro de 1993), que define hipótese de crime de responsabilidade do Prefeito. Usurpação da competência legislativa da União (art. 22, I, CF), violando-se, em consequência, o princípio federativo (art. 1º c.c. o art. 144, da CE). Parecer pela procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito do Município da Estância Turística de Tremembé, tendo por objeto o art. 24 da Lei Orgânica Municipal (com a redação dada pela Emenda nº 1, de 31 de Dezembro de 1993), que define hipótese de crime de responsabilidade.

O autor sustenta que a matéria se insere na competência legislativa da União (art. 22, I, CF) e que, por isso, a previsão contida na L.O.M. viola o art. 144 da Carta Paulista (fls. 4/9).

O ato normativo teve sua vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 47/48).

O Presidente da Câmara Municipal prestou as informações requisitadas, tendo pugnado pela improcedência da ação (fls. 62/64).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 58/60).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Prefeitos cometem crimes comuns e crimes de responsabilidade.

Crimes comuns são os previstos na legislação penal.

Crimes de responsabilidade são aqueles definidos no Decreto-lei nº 201/67, subdividindo-se em impróprios (definidos no art. 1º, apenados com restrição de liberdade) e em próprios (definidos no art. 4º, sancionados com a perda do mandato).

Os crimes próprios são infrações político-administrativas, que devem ser apreciadas pela Câmara dos Vereadores e que, na tradição do direito brasileiro, são denominados crimes de responsabilidade (MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 23ª. ed., São Paulo: Atlas, p. 283). 

No caso vertente, o ato normativo impugnado inseriu na Lei Orgânica do Município hipótese de infração político-administrativa do Prefeito, que o sujeita à perda de seu cargo após submissão a processo perante o Legislativo local.

Cuida-se do art. 24, assim redigido:

Art. 24 – A Mesa da Câmara poderá enviar solicitação de documentos e pedidos de informações ao Prefeito, aos seus auxiliares diretos ou a qualquer pessoal responsável, dentro da administração pública direta ou indireta do Município, importando em crime de responsabilidade o não atendimento no prazo de15 (quinze) dias, bem como a prestação de informações falsas (redação dada pela Emenda nº 1, de 31 de dezembro de 1993).

A previsão, porém, está em desacordo com as Constituições Federal e Paulista, pois a definição dos crimes de responsabilidade é matéria da competência legislativa exclusiva do legislador federal, por força do art. 22, I, da CR/88.

A questão, inclusive, foi pacificada pelo E. STF, que editou a respeito a súmula nº 722, do seguinte teor: “São da competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento”.  

Vários foram os precedentes que justificaram a edição da mencionada Súmula, em Sessão Plenária do E. STF, de 26/11/2003 (cf. DJ de 9/12/2003, p. 1; DJ de 10/12/2003, p. 1; DJ de 11/12/2003, p. 1.).  Entre tais julgados, podemos ressaltar os seguintes: ADI 1628 MC, DJ de 26/9/1997, RTJ 166/147; ADI 2050 MC, DJ de 1º/10/1999, RTJ 171/807; ADI 2220 MC, DJ de 7/12/2000, RTJ 176/199; ADI 1879 MC, DJ de 14/5/2001, RTJ 177/712; ADI 2592, DJ de 23/5/2003; ADI 1901, DJ de 9/5/2003.

Em cada um desses precedentes ficou claro o posicionamento da Suprema Corte no sentido de que cabe ao legislador federal tipificar as infrações político-administrativas e traçar as normas para o respectivo processo e julgamento.

É assente deste modo que normas federais anteriores à Constituição de 1988 que tratam da matéria foram recepcionadas pela Carta Magna, ao menos na parte em que não são com ela incompatíveis.

Deste modo, a legislação municipal que trata de tais temas é inconstitucional, devendo seu vício ser reconhecido por esse E. Órgão Especial, em sede de controle concentrado de normas.

Necessário recordar que, de conformidade com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, “Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição” (g.n.).

Desse dispositivo se extrai que os princípios estabelecidos pela Constituição Federal são de observância obrigatória pelos Estados e Municípios.

A mesma idéia pode ser extraída do art. 29, caput, da Constituição Federal, que determina que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos” (g.n.).

Ora, a repartição constitucional de competências entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, é um dos elementos que, de modo concreto, delimita e caracteriza o princípio federativo, sendo certo que este é um dos princípios fundamentais ou estabelecidos pela Constituição Federal, ditando, pois, o exato perfil do Estado Brasileiro.

Traçando esse parâmetro, é viável afirmar que o princípio federativo, por força do art. 1º e 18º da CR/88, por remissão do art. 144 da Constituição do Estado, bem ainda por expressa previsão no art. 1º da própria Carta Bandeirante, é de observância obrigatória, permitindo o controle abstrato de normas no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado.

Atos normativos que violam a repartição constitucional de competências desrespeitam não apenas regras relativas à divisão do poder de editar normas infraconstitucionais, mas desautorizam diretamente uma das opções fundamentais da República Federativa do Brasil, ou seja, o próprio princípio federativo.

Nesse ponto, é relevante anotar que esse Tribunal de Justiça acolhe, com tranquilidade, a tese de que é possível declarar a inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido na Constituição Federal, como comprova recente julgado (ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. Des. Renato Nalini). Do voto do Des. Walter de Almeida Guilherme se extrai definitiva lição sobre o tema:

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da união, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado (...)”

Em caso ainda mais recente, o C. Órgão Especial julgou procedente ADIN ajuizada pelo Prefeito de Monte Alto em face de norma regimental que determinava o afastamento do Alcaide denunciado por infração político-administrativa, reafirmando, na ementa e no corpo do v. Acórdão, que os Municípios não têm competência para legislar sobre infrações político-administrativas, sendo competência exclusiva da União (ADIN – 161.312-0/0, j. 3.12.2008, rel. Des. Paulo Travain).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, para se declarar a inconstitucionalidade do art. 24 da Lei Orgânica Municipal (com a redação dada pela Emenda nº 1, de 31 de Dezembro de 1993).

 

São Paulo, 13 de Setembro de 2010.

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

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