Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº. 990.10.115764-0

Requerente: Prefeito Municipal de Tremembé

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal nº 202, de 12 de março de 2010, de Tremembé.

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Complementar Municipal nº 202, de 12 de março de 2010, de Tremembé.

2)      Lei de iniciativa parlamentar que altera o Plano Diretor do Município. Matéria relativa à gestão da cidade, atinente ao Poder Executivo. Violação do princípio da separação de poderes (art. 5º da Constituição Paulista). Ausência de planejamento e participação popular. Princípios inerentes à Constituição do Estado e estabelecidos na Constituição da República, aplicáveis aos Municípios (art. 144, art. 180, II e art. 181, § 1º da Constituição do Estado).

3)     Inconstitucionalidade afastada.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Tremembé, tendo como alvo a Lei Complementar Municipal nº 202, de 12 de março de 2010, de Tremembé.

Sustenta o autor que o ato normativo impugnado violou o art. 5º, o art. 180, V, e o art. 181, todos da Constituição do Estado de São Paulo, pois se trata de matéria em que a iniciativa legislativa deveria ter sido do Chefe do Poder Executivo.

Foi deferida a liminar determinando-se a suspensão do ato impugnado (fls. 47/48).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato impugnado (fls. 59/61).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 63/71).

É o relato do essencial.

A Lei Complementar Municipal nº 202, de 12 de março de 2010, de Tremembé, acrescentou dispositivos à Lei Complementar nº 184, de 18 de dezembro de 2008, com o seguinte teor:

“(...)

Artigo 1º. O artigo 55 da Lei Complementar nº 184, de 18 de dezembro de 2008 ficará acrescido do parágrafo 5º, conforme segue:

‘Art. 55 (...)

§ 5º. Às Associações regularmente constituídas, permissionárias de uso de áreas públicas municipais, situadas em empreendimentos imobiliários já consolidados até o dia 31 de dezembro de 2008, como ‘loteamentos fechados’ ou com acessos controlados, é assegurado o direito de continuarem usufruindo dessa situação, pelo prazo de 30 (trinta) anos, ressalvada a perda dessa situação jurídica, na hipótese de comprovação de grave violação às normas estabelecidas, assegurando o direito ao contraditório e ampla defesa.’

Artigo 2º. O art. 33, da Lei Complementar nº 184, de 18 de dezembro de 2008 passará a ter a seguinte redação:

‘Art. 33. A Zona de Adensamento Preferencial (ZAP), em conformidade com as condições geotécnicas e a capacidade de infra-estrutura, subdivide-se em:

I – Zona de Adensamento Preferencial 1, na qual a densidade líquida deverá ser de até 800 hab/há (oitocentos habitantes por hectare);

II – Zona de Adensamento Preferencial 2, na qual a densidade líquida deverá ser de até 500 há/há (quinhentos habitantes por hectare).’

(...)”

Acrescente-se ainda que a legislação alterada (Lei Complementar nº 184, de 18 de dezembro de 2008), constitui-se no Plano Diretor do Município de Tremembé.

Em nosso sentir, assiste razão ao autor, na medida em que, embora não se trate de matéria cuja iniciativa de lei seja reservada ao Chefe do Executivo, a definição do zoneamento urbano, bem como das diretrizes para ocupação do solo, envolvem a gestão da cidade, matéria afeta à atividade do Poder Executivo.

Dessa forma, a iniciativa parlamentar de projeto de lei alterando regras de zoneamento, bem como ocupação e uso do solo urbano, por afetar a gestão da cidade, contraria o art. 5º da Constituição do Estado.

Recorde-se, com Hely Lopes Meirelles, que as atribuições do Prefeito são de natureza governamental e administrativa, sendo certo que “Todo ato do prefeito que infringir a prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c.c. o art. 31), podendo ser invalidado pelo Judiciário”. (Direito Municipal Brasileiro, 6. ed., 3. tir.,
São Paulo, Malheiros, 1993, p. 523).

Observe-se que pela natureza da matéria e pelos requisitos que nosso sistema constitucional estabelece para a elaboração da legislação urbanística, é lícito afirmar que ela demanda planejamento administrativo. E o planejamento na ocupação e uso do solo urbano das cidades é algo que só o Poder Executivo é habilitado, estrutural e tecnicamente, a fazer.

Assim vem decidindo esse Colendo Órgão Especial, como é possível observar a partir dos precedentes adiante indicados:

“(...)

Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei 3.801, de 01 de julho de 2004, do Município de Valinhos, que ‘cria zona corredor 1 – ZC1, nas ruas Martinho Leardine e Pedro Leardine e altera o zoneamento de Z2A para Z3B no JD. Paiquerê e no Condomínio residencial Millenium’. Lei apenas em sentido formal. Incompetência do Poder Legislativo Municipal. Matéria afeta ao Poder Executivo. Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes. Ação procedente. (TJSP, ADIN 119.158-0/3, Comarca de Valinhos, rel. Des. Denser de Sá, j. 02.02.2006).

Inconstitucionalidade. Ação Direta. Lei Complementar Municipal 1.482/03. ‘Autoriza, em caráter excepcional, atividades de prestação de serviços (clínicas de acupuntura, terapias e meditações) em trecho da Avenida Sumaré...’. Lei de iniciativa exclusiva do Prefeito. Ofensa à Constituição Estadual. Vício de iniciativa. Ação procedente. Inconstitucionalidade declarada (TJSP, ADIN 115.322-0/3-00, Ribeirão Preto, rel. Des. Barbosa Pereira, j.27.07.2005).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Ribeirão Preto. Lei Complementar n° 1.973, de 03 de março de 2006, de iniciativa de Vereador, dispondo sobre matéria urbanística, exigente de prévio planejamento. Caracterizada interferência na competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo local. Procedência da ação. (ADI 134 169-0/3-00, rel. des. Oliveira Santos, j. 19.12.2007, v.u.).

Anote-se também que em mais de uma oportunidade esse Colendo Órgão Especial acolheu a iniciativa desta Procuradoria-Geral de Justiça, nessa matéria, reconhecendo a inconstitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar que alterou o zoneamento urbano, como se infere, por exemplo, de julgado cuja ementa segue transcrita:

“(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Complementar n° 294/05 do Município de Catanduva - Alteração de Zoneamento Urbano - Identificação de lotes que passam a ter característica comercial, em zona estritamente residencial – Inadmissibilidade - Vício de inconstitucionalidade, por motivo de vedada delegação de poder em matéria de reserva legal. Ação julgada procedente. (ADI 148.671-0/1-00, rel. des. Walter Swensson, j. 23.01.2008, v.u.).

(...)”

Há inúmeros outros precedentes desse E. Tribunal de Justiça apontando, do mesmo modo, no sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade, por quebra da regra da separação de poderes, em casos de leis que alteram o zoneamento ou uso do solo urbano: ADI 118.767-0/5-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.07.04.06; ADI 125.012-0/7-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.02.08.06; ADI 130.137-0/9-00, rel. des. Debatin Cardoso, j. 25.10.06; ADI 125.642-0/1-00, rel. des. Walter de Almeida Guilherme, j. 07.04.06.

Em síntese: (a) partindo de parlamentar a iniciativa do processo legislativo que culminou com a edição da lei impugnada e (b) interferindo esta no planejamento urbanístico, que se enquadra no conceito de gestão administrativa, reservada esta ao Poder Executivo, evidencia-se a inconstitucionalidade Lei Complementar Municipal nº 202, de 12 de março de 2010, de Tremembé, por violação ao disposto no art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo.

Além disso, a Constituição do Estado de São Paulo prevê objetivamente a necessidade de planejamento e participação popular em matéria urbanística.

O art. 180 caput da Carta Bandeirante, ao tratar do tema, indica os critérios a serem observados, pelo Estado e pelos Municípios, no “estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano”. Entre eles, de conformidade com o inciso II do referido artigo, encontra-se a participação das respectivas entidades comunitárias no “estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes”.

O art. 181 da Constituição Estadual, por sua vez, prescreve que a “lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes”; enquanto o respectivo § 1º estabelece que “os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade do território Municipal”.

Cumpre recordar que a exigência do plano diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”, vem do § 1º do art. 182 da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre da regra contida no art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Anote-se, finalmente, que o art. 182 caput da CF disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

Recorde-se também que o inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal prevê a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

É possível extrair dos dispositivos acima apontados que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município.

A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

O ato normativo que altera a destinação e uso do solo urbano de forma pontual e sem realização de qualquer planejamento ou estudo, viola diretamente a sistemática constitucional na matéria.

Qualquer modificação legislativa que envolva a ocupação e uso do solo deve ser realizada dentro de um contexto de planejamento, e de diretrizes gerais. Não se admite, nesse quadro, a ordenação individualizada e dissociada do contexto da utilização de todo o solo urbano.

Assim não fosse, ficaria sem valor algum todo o trabalho previamente realizado para fins de elaboração e aprovação da Lei do Plano Diretor. Qualquer iniciativa parlamentar poderia – como se verificou no caso em exame – levar à alteração legislativa casuísta.

Tratando da elaboração do plano diretor do ordenamento urbano, anota Hely Lopes Meirelles que ”Toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua formação; a cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua renovação”; acrescendo que “a elaboração do plano diretor é tarefa de especialistas nos diversificados setores de sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do Prefeito, que transmitirá as aspirações dos munícipes quanto ao desenvolvimento do Município e indicará as prioridades das obras e serviços de maior urgência e utilidade para a população”. (Direito Municipal Brasileiro, cit., p. 393 e 395).

Tratando especificamente do problema da ocupação e uso do solo, anota José Afonso da Silva que a respectiva ordenação é um dos aspectos fundamentais do planejamento urbanístico, salientando ainda, quanto às hipóteses de alteração de zoneamento, que “recomenda-se, nessas alterações, muito critério, a fim de que não se façam modificações bruscas entre o zoneamento existente e o que vai resultar da revisão. É preciso ter em mente que o zoneamento constitui condicionamento geral à propriedade, não indenizável, de tal maneira que uma simples liberação inconseqüente ou um agravamento menos pensado podem valorizar demasiadamente alguns imóveis, ao mesmo tempo que desvalorizam outros, sem propósito. É conveniente que o zoneamento resultante da revisão ou da alteração constitua uma progressão harmônica do zoneamento revisado ou alterado, para não causar impactos, que, por sua vez, geram resistências que dificultam sua implantação e execução. É prudente avançar devagar, mas com firmeza, energia e justiça” (Direito Urbanístico, 4. ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 251).

Cumpre finalmente destacar a importância do planejamento urbanístico e da necessária razoabilidade de que se deve revestir a legislação elaborada nesta matéria, recordando Toshio Mukai, que “a ocupação e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os da coletividade” (Temas atuais de direito urbanístico e ambiental, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2004, p. 29).

Deste modo, em nosso sentir é inconstitucional a Lei Complementar Municipal nº 202, de 12 de março de 2010, de Tremembé, na medida em que, sem qualquer estudo prévio consistente, e de forma casuística, bem como sem a necessária participação popular, alterou a regulamentação do zoneamento e ocupação do solo urbano, ferindo frontalmente o disposto nos art. 180, caput e inciso II, art.181 caput e § 1º, ambos da Constituição Estadual; bem como, por força do art. 144 da Constituição Estadual, os princípios constitucionais estabelecidos nos art. 182 caput e § 1º, e o art. 30, inciso VIII da Constituição Federal.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal nº 202, de 12 de março de 2010, de Tremembé.

São Paulo, 16 de agosto de 2010.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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