Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.134197-2

Requerente: Prefeito Municipal do Guarujá

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.762, de 31 de agosto de 2009, do Guarujá

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 3.762, de 31 de agosto de 2009, do Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “autoriza o Executivo Municipal a celebrar convênio para o fomento, desenvolvimento e difusão de práticas esportivas no Município de Guarujá e dá outras providências”.

2)      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).

3)      Efeito repristinatório. Norma revogada, cuja eficácia será recobrada, que padece do mesmo vício da norma impugnada. Necessidade de declaração de inconstitucionalidade “por arrastamento” da norma cuja eficácia será recobrada. Precedentes do Colendo STF.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal do Guarujá, tendo como alvo a Lei Municipal nº 3.762, de 31 de agosto de 2009, fruto de iniciativa parlamentar, que “autoriza o Executivo Municipal a celebrar convênio para o fomento, desenvolvimento e difusão de práticas esportivas no Município de Guarujá e dá outras providências”.

Sustenta o autor que o ato normativo impugnado, oriundo de iniciativa parlamentar, violou a regra da separação de poderes, por interferir diretamente na gestão das atividades administrativas do Município. Além disso, a norma limitou a possibilidade de formação de convênios, restringindo indevidamente a atividade da administração. Aponta para a violação do art. 5º, art. 47, XI, e art. 266, I, todos da Constituição Paulista.

Foi deferida a liminar, determinando-se a suspensão do ato normativo (fls. 37/38).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa para o ato normativo impugnado (fls. 47, 49/51).

A Câmara Municipal deixou de prestar informações (fls. 52).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 3.762, de 31 de agosto de 2009, fruto de iniciativa parlamentar, que “autoriza o Executivo Municipal a celebrar convênio para o fomento, desenvolvimento e difusão de práticas esportivas no Município de Guarujá e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. O artigo 1º da Lei nº 3.284, de 29 de dezembro de 2005, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘art. 1º. Fica o Executivo Municipal autorizado a celebrar convênio com clubes esportivos ou entidades esportivas de Guarujá, para o fomento, desenvolvimento, divulgação e difusão de prática esportiva de rendimento, buscando a capacitação plena do cidadão no desporto e sua inclusão.

Parágrafo único. A celebração de convênios deverá ser precedida do parecer técnico desportivo fundamentado nos órgãos da Secretaria Municipal do Esporte e Lazer – SEELA’.

Art. 2º. O artigo 2º da Lei nº 3.284, de 29 de dezembro de 2005, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘art. 2º. Na consecução dos seus objetivos o clube ou entidade esportiva convenente deverá constituir e manter equipes desportivas de competição em Confederações, Federações ou Ligas especializadas de nível estadual ou nacional de modo a estimular e incentivar a sua prática, especialmente junto às crianças, além de comprovar sua efetiva participação nos campeonatos destas entidades no ano anterior.’

Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

A lei de iniciativa parlamentar, desse modo, configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo. Isso se verifica na medida em que a lei “autoriza” o poder público a praticar atos (formalizar convênios) para os quais o Chefe do Executivo prescinde de autorização legislativa.

Os casos em que a autorização legislativa se faz necessária são aqueles – e somente aqueles – expressamente indicados na Constituição do Estado, no art. 19, incisos IV e V: (a) alienação e cessão de direitos reais relativos a bens imóveis; (b) recebimento de doações com encargo; (c) cessão ou concessão de uso de bens imóveis do poder público para particulares.

Como a exigência de autorização legislativa é uma restrição constitucional ao princípio da separação de poderes, caracterizada como manifestação do sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), deve, necessariamente, ser interpretada restritivamente.

Em outras palavras, se fora das hipóteses constitucionalmente previstas, a lei dispõe sobre autorização para a prática, pela administração, de ato administrativo que dela prescinde isso significa invasão da esfera de competências do Executivo por ato do Legislativo, em clara violação do princípio da separação de poderes.

Saber se será ou não celebrado convênio, quais os seus termos, e demais detalhes relativos ao tema, é matéria essencialmente relacionada à atividade do Poder Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

         Em outras palavras, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito da realização de convênios, expedindo, quando necessário, as adequadas autorizações.

A inconstitucionalidade decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Esse é o motivo pelo qual deve ser reconhecida a inconstitucionalidade da lei.

Há, entretanto, outro aspecto que merecerá, com a devida vênia, a atenção desse Colendo Órgão Especial.

A declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.762, de 31 de agosto de 2009, do Guarujá, provocará a repristinação da norma por ela revogada, ou seja, a Lei Municipal nº 3.284, de 29 de dezembro de 2005, que, por sua vez “autoriza o Executivo Municipal a celebrar convênio para o fomento, desenvolvimento e difusão de práticas esportivas no Município de Guarujá”. Esta última tinha a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º - Fica o Executivo Municipal autorizado a celebrar convênio com clubes esportivos ou entidades esportivas, para o fomento, desenvolvimento, divulgação e difusão de prática esportiva de rendimento, buscando a capacitação plena do cidadão no desporto e sua inclusão.

Parágrafo único – A celebração de convênios deverá ser precedida do parecer técnico desportivo fundamentado nos órgãos da Secretaria Municipal do Esporte e Lazer – SEELA.

Art. 2º - Na consecução dos seus objetivos o clube ou entidade esportiva convenente deverá constituir e manter equipes desportivas de competição em Confederações, Federações ou Ligas especializadas de nível estadual ou nacional de modo a estimular e incentivar a sua prática, especialmente junto às crianças.

Art. 3º - Os termos do convênio a ser celebrado serão obrigatoriamente regidos, nos moldes da minuta constante no Anexo I.

Art. 4º - O prazo de vigência do convênio será de 02 (dois) anos com a faculdade de prorrogação anual, até o limite de 04 (quatro) anos, a critério da Municipalidade.

Art. 5º - As despesas decorrentes de aplicação desta Lei correrão por conta das dotações próprias do orçamento, suplementadas se necessário.

(...)”

Note-se: o ato normativo que será repristinado com a procedência da presente ação direta (Lei Municipal nº 3.284, de 29 de dezembro de 2005) padece do mesmo vício que o ato normativo impugnado (Lei Municipal nº 3.762, de 31 de agosto de 2009): trata-se de lei que “autoriza” o Chefe do Executivo a fazer aquilo que já se encontra, por força da nossa sistemática constitucional, dentro de sua esfera de competências.

Como anotou o Min. Celso de Mello:

“(...)

A declaração de inconstitucionalidade ‘in abstracto’, considerado o efeito repristinatório que lhe é inerente (RTJ 120/64 - RTJ 194/504-505 - ADI 2.867/ES, v.g.), importa em restauração das normas estatais revogadas pelo diploma objeto do processo de controle normativo abstrato. É que a lei declarada inconstitucional, por incidir em absoluta desvalia jurídica (RTJ 146/461-462), não pode gerar quaisquer efeitos no plano do direito, nem mesmo o de provocar a própria revogação dos diplomas normativos a ela anteriores. Lei inconstitucional, porque inválida (RTJ 102/671), sequer possui eficácia derrogatória. A decisão do Supremo Tribunal Federal que declara, em sede de fiscalização abstrata, a inconstitucionalidade de determinado diploma normativo tem o condão de provocar a repristinação dos atos estatais anteriores que foram revogados pela lei proclamada inconstitucional. (ADI 3148/TO, rel. Min. Celso de Mello, j.13/12/2006, Tribunal Pleno, DJe-112, DIVULG 27-09-2007, PUBLIC 28-09-2007, DJ 28-09-2007PP-00026, EMENT VOL-02291-02 PP-00249).

(...)”

Se a norma repristinada padece do mesmo vício que a norma impugnada, deverá ser declarada inconstitucional, sob pena de ineficácia e inutilidade da procedência desta ação direta.

Essa é a denominada declaração de inconstitucionalidade por “arrastamento”. Tal solução é possível, sempre que (a) o reconhecimento da inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal torna despidos de eficácia e utilidade concreta, outros preceitos do mesmo diploma que não tenham sido impugnados, e (b) nos casos em que o efeito repristinatório restabelece dispositivos já revogados pela lei viciada que ostentem o mesmo vício.

Para tanto desnecessário se mostraria pedido expresso do autor. Nem há suposto limite relacionado à estabilização da demanda (art. 264 do CPC).

Raciocínio contrário importaria trazer para o processo objetivo regra procedimental do processo individual, que àquele não se aplicam, pela absoluta diversidade quanto à sua natureza e função.

Essa solução tem sido reconhecida pacificamente pelo Colendo STF (v.g.: ADI 1144/RS, rel. Min. EROS GRAU, j.16/08/2006, T. Pleno; DJ 08-09-2006 PP-00033, EMENT VOL-02246-01 PP-00057, LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 20-26; ADI 3255/PA, rel.Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, j.22/06/2006, T. Pleno, DJe-157 DIVULG 06-12-2007, DJ 07-12-2007 PP-00018, EMENT VOL-02302-01, PP-00127; ADI 3645/PR, rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 31/05/2006, T. Pleno, DJ 01-09-2006 PP-00016, EMENT VOL-02245-02 PP-00371, LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 75-91), não surgindo qualquer óbice em razão da não impugnação, na inicial, dos dispositivos repristinados.

Note-se que a declaração da inconstitucionalidade de preceitos não mencionados expressamente pelo autor é viável em razão da natureza objetiva do processo de controle abstrato de normas, em que não se identificam réus ou partes contrárias, mas exclusivamente o interesse veiculado, pelo requerente, no sentido da preservação da segurança jurídica (cf. ADI-ED 2982/CE, rel. Min. GILMAR MENDES, j.02/08/2006, T. Pleno, DJ 22-09-2006 PP-00029, EMENT VOL-02248-01 PP-00171, LEXSTF v. 28, n. 335, 2006, p. 53-59).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.762, de 31 de agosto de 2009, do Guarujá, e por arrastamento da Lei Municipal nº 3.284, de 29 de dezembro de 2005, do Guarujá, nos termos da fundamentação acima.

São Paulo, 27 de setembro de 2010.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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