Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Autos nº 990.10.137686-5
Requerente:
Prefeito Municipal de Itatiba
Objeto: Lei
Municipal n. 4.156, de 22 de abril de 2009
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 4.156, de 22 de abril de 2009, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre os benefícios para doadores de sangue e dá outras providências.
2) Inconstitucionalidade formal subjetiva pelo vício de iniciativa e pela ofensa ao Princípio da Separação e da Harmonia entre os Poderes (arts. 5º, caput, e 144, ambos da Constituição do Estado);
3) Parecer pela procedência.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal de Itatiba, tendo como alvo a Lei Municipal n. 4.156, de 22 de abril de 2009, que dispõe sobre os benefícios para doadores de sangue, decorrente de Projeto de Lei de iniciativa parlamentar.
Alegação de se tratar de lei que implanta programa de governo, que é atividade puramente administrativa e típica de gestão, de tal forma que há invasão da esfera de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo Municipal.
Foi deferido o pedido de liminar (fls. 17/18).
A Câmara Municipal prestou as necessárias informações, a partir de fls. 21.
O Senhor Procurador-Geral do Estado foi devidamente citado e se manifestou a fls. 44/46.
É o relato do essencial.
A Lei Municipal impugnada pela presente ação direta é, realmente, inconstitucional, pois acaba por afrontar o princípio da separação de poderes.
Por
isso, há violação do disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a
seguinte redação:
Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
À evidência que a lei municipal questionada, embora
contenha proposta louvável, invade competência privativa do chefe do Poder
Executivo municipal.
Assim, apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para
deflagrar processo legislativo para aprovação de lei com o conteúdo da que se
pretende ver declarada como inconstitucional, sob pena de indevida
interferência de um Poder sobre o outro.
Postulado básico da organização do Estado é o
princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do
Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme
estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual, e que assim dispõe:
Artigo 5º. São Poderes do Estado, independentes e
harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do
Estado de Direito assentado na idéia de que as funções estatais são divididas e
entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia,
vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício
dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a
doutrina que “o princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou
distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto,
entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das
respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções
principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com
os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que,
teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles
Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991, p. 585).
Como conseqüência do princípio da separação dos
poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição
Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por
outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função
administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu
funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes “consiste um
confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e
jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se,
pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada
órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência
orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que
cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de
meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à
Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
Também por decorrência do citado princípio da
separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um
sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou
de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como
observa a doutrina: “É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de
competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se
e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a
Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’,
‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks
and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro
‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of
powers) (...)
A distribuição das funções entre os órgãos do Estado
(poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder
Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao
princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a
título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro
poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos
em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete,
criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do
princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções
correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de
Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581,
592-593).
Assim, se em
princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas
matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e,
concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes
estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo.
Esse desenho normativo de status constitucional –
aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual - permite
assentar as seguintes conclusões: a) a iniciativa legislativa não é ampla nem
livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma
determinada competência; b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição
prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à
Administração Pública; c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à
dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do
estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely
Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa: “Leis de
iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que
a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do
prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias
previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da
competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros,
1997, 9ª ed., p. 431).
Portanto, irradia-se do princípio da separação de
poderes a própria técnica jurídica de freios e contrapesos com a previsão de
iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo em matéria
administrativa.
Posto isso, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 4.156, de 22 de abril de 2009, que dispõe sobre os benefícios para doadores de sangue.
São Paulo, 30 de junho de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
/md