Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 990.10.154.302-8

Requerente: Prefeito Municipal de Catanduva

Objeto: Lei Complementar n. 518, de 30 de março de 2010, do Município de Catanduva

 

Ementa: Constitucional. Tributário. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar n. 518/10, do Município de Catanduva, que acrescenta o § 7º do artigo 49 da Lei Complementar n. 217/99. Contribuição previdenciária. Base de cálculo. Contribuinte portador de doença incapacitante. 1. Na fiscalização abstrata, concentrada, direta e objetiva de constitucionalidade de lei municipal o parâmetro exclusivo de contraste é Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF). 2. Lei impugnada que reproduz as Constituições Federal (art. 40, § 21) e Estadual (art. 126, § 21). 3. Lei tributária que disciplina a base de cálculo da contribuição previdenciária devida por servidor público inativo ou pensionista portador de doença incapacitante. 4. Matéria tributária não se inclui dentre as reservadas à iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, que demandam regra explícita e inadmitem interpretação ampliativa. 5. Inocorrência de criação ou aumento de despesa pública. 6. Inexistência de violação aos arts. 5º, 25 e 144, da Constituição Estadual. 7. Improcedência da ação.  

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei Complementar n. 518, de 30 de março de 2010, do Município de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que acrescenta § 7º ao art. 49 da Lei Complementar n. 127, de 07 de dezembro de 1999, dispondo que a contribuição previdenciária dos servidores públicos municipais “incidirá, exclusivamente sobre as parcelas de proventos da aposentadoria e de pensões, cujo valor, isoladamente, de modo a garantir os mesmos critérios e parâmetros para percepção de benefícios distintos, venha a ultrapassar o dobro do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social, de que trata o artigo de n° 201 da Constituição Federal, desde que o beneficiário, na forma da lei, seja portador de doença incapacitante, observando-se o disposto no artigo 3º da emenda constitucional n° 47, de 05 de julho de 2005”.

2.                Articula-se na petição inicial violação aos arts. 5º, 25 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, por afronta à separação de poderes, à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, e à proibição de aumento de despesas sem indicação de recursos disponíveis, bem como ao art. 67, VI, da Lei Orgânica Municipal, ao art. 163, I, da Constituição Federal e aos arts. 15 e 16 da Lei Complementar n. 101/00 (fls. 02/12).

3.                A liminar requerida foi deferida (fl. 42). A Câmara Municipal prestou informações (fls. 47/50) acostando cópia do processo legislativo (fls. 53/80) e a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou de sua participação na lide (fls. 86/88). 

4.                É o relatório.

5.                A fiscalização abstrata, concentrada, direta e objetiva da constitucionalidade de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, à luz do art. 125, § 2º, da Constituição Federal, razão pela qual é insuscetível o exame, nesta sede, de sua eventual desconformidade com a Constituição Federal, a Lei Orgânica Municipal ou lei federal.

6.               Por essa razão, insuscetível de exame o eventual confronto da lei local impugnada com a Lei Orgânica Municipal, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/00) e a Constituição Federal.

7.                A lei impugnada reproduz o disposto no § 21 do art. 126 da Constituição Estadual introduzido pela Emenda n. 21, de 14 de fevereiro de 2006, que, de sua parte, repete o § 21 do art. 40 da Constituição Federal acrescentado pela Emenda n. 47, de 05 de julho de 2005, com efeitos retroativos à data de vigência da Emenda n. 41, de 19 de dezembro de 2003.

8.                Trata-se de lei tributária que disciplina a base de cálculo da contribuição previdenciária devida por servidor público inativo ou pensionista portador de doença incapacitante.

9.                Consoante a orientação do Supremo Tribunal Federal, matéria tributária não se inclui dentre as reservadas à iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo (STF, ADI 2.464-AP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 11-04-2007, v.u., DJe 24-05-2007; STF, ADI 3.205-MS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-10-2006, v.u., DJ 17-11-2006, p. 41; STF, ADI 3.809-5-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 14-06-2007, v.u., DJ 14-09-2007, p. 30; STF, RE 371.887-SP, Rel. Min. Carmén Lúcia, 29-06-2009, DJe 04-08-2009; STF, RE 357.581-SP, Rel. Min. Eros Grau, 16-12-2008, DJe 03-02-2009).

10.              Decisões mais recentes corroboram essa orientação:

“6. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que a competência para iniciar processo legislativo sobre matéria tributária não é privativa do Poder Executivo” (STF, AI 805.338-MG, Rel. Min. Cármen Lúcia, 29-06-2010, DJe 04-08-2010).

“PROCESSO LEGISLATIVO. MATÉRIA TRIBUTÁRIA. INEXISTÊNCIA DE RESERVA DE INICIATIVA. PREVALÊNCIA DA REGRA GERAL DA INICIATIVA CONCORRENTE QUANTO À INSTAURAÇÃO DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS LEIS. LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INICIATIVA PARLAMENTAR. RE CONHECIDO E PROVIDO.

- Sob a égide da Constituição republicana de 1988, também o membro do Poder Legislativo dispõe de legitimidade ativa para iniciar o processo de formação das leis, quando se tratar de matéria de índole tributária, não mais subsistindo, em conseqüência, a restrição que prevaleceu ao longo da Carta Federal de 1969. Precedentes” (STF, RE 556.885-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 17-06-2010, DJe 05-08-2010).

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. É CONCORRENTE A COMPETÊNCIA LEGISLATIVA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA. CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ESTADUAL. ACÓRDÃO DIVERGENTE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO PELO RELATOR. RECURSO PROVIDO” (STF, RE 541.273-SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, 08-06-2010, DJe 22-06-2010).

11.              É, pois, improcedente a argüição de inconstitucionalidade por violação ao princípio da separação dos poderes e à iniciativa legislativa reservada.

12.              Com efeito, regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

13.              Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Ora, se não há na Constituição Paulista em vigor dispositivo expresso que atribua exclusividade de iniciativa de leis tributárias ao Poder Executivo, e sendo a iniciativa reservada exceção à regra da iniciativa geral ou concorrente, consoante lição básica de hermenêutica da lavra de Carlos Maximiliano ao sublinhar que “interpretam-se estritamente os dispositivos que instituem exceções às regras gerais firmadas pela Constituição” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 16ª ed., p. 313). Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A Constituição de 1988 admite a iniciativa parlamentar na instauração do processo legislativo em tema de direito tributário. - A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que - por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo - deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. - O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara - especialmente para os fins de instauração do respectivo processo legislativo - ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001, p. 56).

14.              Ademais, o Supremo Tribunal Federal considera que o preceito da Constituição Federal contido no art. 61, § 1º, II, b, não é de observância obrigatória nem simetricamente extensível ao plano constitucional estadual (STF, ADI 3.205-MS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-10-2006, v.u., DJ 17-11-2006, p. 41).

15.              No rol do § 2º do art. 24 da Constituição Estadual, que inscreve iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, não se alinham disposições em matéria tributária. E tampouco dos arts. 159 a 176 da Constituição Estadual, que trata da tributação, das finanças e dos orçamentos, colhe-se a iniciativa legislativa reservada de matéria tributária ao Chefe do Poder Executivo. Ao contrário, só se reclama o primado da reserva de lei (do princípio da legalidade absoluta ou em sentido estrito), conforme consta do art. 19, I, e, em especial, do inciso I do art. 163 da Constituição Estadual, sem indicação da reserva de iniciativa legislativa. Com efeito, a reserva de iniciativa legislativa em favor do Chefe do Poder Executivo existe apenas no caso do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual (art. 174, Constituição Estadual). As mesmas conclusões servem para a Constituição Federal.

16.              Imprestável argumentar que o valor da contraprestação devida pelo contribuinte terá reflexos orçamentários e está compreendida na lei orçamentária e, por isso, a iniciativa legislativa seria reservada ao Chefe do Poder Executivo. A resposta a esse entendimento – que derruba eventual argüição de contrariedade aos arts. 174, I a III, e 176, I, da Constituição Estadual - foi bem sintetizada na fundamentação de acórdão da lavra do eminente Ministro Eros Grau:

“3. Afasto a alegação de vício formal. Isso porque a Lei n. 8.366 não tem índole orçamentária. O texto normativo impugnado dispõe sobre matéria de caráter tributário, isenções, matéria que, segundo entendimento dessa Corte, é de iniciativa comum ou concorrente; não há, no caso, iniciativa parlamentar reservada ao Chefe do Poder Executivo. Tem-se por superado, nesta Corte, o debate a propósito de vício de iniciativa referente à matéria tributária. Nesse sentido, ADI n. 3.205, Relator o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 17/11/06; ADI n. 2.659, Relator o Ministro NELSON JOBIM, DJ de 06/02/04, entre outros” (STF, ADI 3.809-5-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 14-06-2007, v.u., DJ 14-09-2007, p. 30).

17.              Portanto, a reserva de iniciativa legislativa contida no art. 24, § 2º, da Constituição Estadual, exige interpretação restritiva, e em nenhuma de suas hipóteses taxativamente previstas se inclui a matéria objeto da lei local impugnada.

18.              Por derradeiro segue a inexistência de ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual porque não se cogita, na espécie, de criação ou expansão quantitativa de despesa pública.

19.              Opino pela improcedência da ação.

 

                   São Paulo, 14 de setembro de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

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