Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Autos nº. 990.10.157570-1
Requerente:
Prefeito Municipal de Ubatuba
Objeto: Inconstitucionalidade
da Lei Municipal nº 3.245, de 2009, de Ubatuba
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 3.245, de 2009, de Ubatuba, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a instalação de sistemas de reciclagem de água em prédios públicos no Município de Ubatuba”.
2) Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Criação de despesas sem fonte específica de receita (art. 25 da Constituição Paulista).
3) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta
pelo Senhor Prefeito Municipal de Ubatuba, tendo como alvo a Lei Municipal nº 3.245, de 2009, de Ubatuba,
de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a instalação de sistemas de
reciclagem de água em prédios públicos no Município de Ubatuba”.
Sustenta o autor que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, bem como que houve desrespeito ao princípio da separação de poderes, provocando aumento de despesa sem indicação de receita.
Foi concedida liminar, determinando a suspensão do ato normativo (fls. 13/14).
Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 20/22, 26).
A Câmara Municipal deixou de prestar informações (fls. 27).
É o relato do essencial.
A Lei Municipal nº 3.245, de 2009, de Ubatuba, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a instalação de sistemas de reciclagem de água em prédios públicos no Município de Ubatuba”, tem a seguinte redação:
“(...)
Art. 1º. Os prédios novos construídos total ou parcialmente com verba pública federal, estadual ou municipal ou aqueles destinados por doação, desapropriação ou confisco, no âmbito do Município de Ubatuba, ficam obrigados a instalarem sistemas de reciclagem de água, tratada ou não, compatível com o tamanho da utilização.
Art. 2º. Para as edificações públicas a serem construídas ou alugadas, qualquer que seja o uso a que se destina, torna-se obrigatória instalação do sistema de reciclagem compatível com o tamanho da utilização.
Art. 3º. O Executivo Municipal terá, a partir da data da publicação desta lei, 10 anos de prazo para regularizar a situação dos prédios antigos, sendo próprio ou alugado.
Art. 4º. O Poder Executivo regulamentará a presente lei 45 dias após sua publicação.
Art. 5º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, ficando revogadas as disposições em contrário.
(...)”
Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.
Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo. Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.
Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na seara da administração pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.
Estabelecer diretrizes relativamente ao modo como serão projetados, reformados, ainda gerenciados prédios públicos com a devida vênia, é matéria exclusivamente relacionada à administração pública, a cargo do Chefe do Executivo.
E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.
A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.
Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e
art. 144).
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a
função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e
abstração.
O diploma
impugnado, na prática, invadiu a esfera
da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a
execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de
administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa:
a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa,
convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos,
individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos
segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e
independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao
governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com
usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir
prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou
retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao
princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c
o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada
por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006,
p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.
Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação.
Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.
Não bastasse isso, a lei impugnada provocará, evidentemente, realização de despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes de receita para tanto.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.
Nesse sentido, apenas a título de exemplificação, confiram-se os julgados a seguir indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.245, de 2009, de Ubatuba.
São Paulo, 28 de outubro de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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