Ação Direta de Inconstitucionalidade
Processo nº 990.10.157579-5
Autor: Prefeito Municipal da Estância Balneária
de Ubatuba
Objeto: Lei nº 3.295, de 27 de janeiro de 2010,
da Estância Balneária de Ubatuba
Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei
Municipal. Criação de Conselho Municipal. 2)
Lei de iniciativa parlamentar. Violação de reserva de iniciativa do Executivo
(criação de órgão e matéria orçamentária). Quebra da separação de poderes
(criação de programa governamental). 3) Criação de novas despesas sem a
indicação da respectiva fonte de receitas.
4) Incompatibilidade
vertical com dispositivos da Constituição Paulista (art. 5º; art. 24, § 2º, n. 2;
art. 25; art. 47, II, e XIV; art. 144). 5)
Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador
Relator
Trata-se de
ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal da
Estância Balneária de Ubatuba, tendo como alvo a Lei nº 3.295, de 27 de janeiro
de 2010, daquele
Município, sob a alegação de: (a) vício de iniciativa; e (b) quebra da
separação de poderes. Apontou assim para a violação dos seguintes dispositivos
da Constituição Paulista: art. 24, § 2º, item 2; 47, inc. XIX, "a".
Foi deferida a liminar, determinando-se
a suspensão do ato normativo impugnado (fls. 18/19).
Citado, o Senhor Procurador-Geral do
Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo (fls. 29/31).
A Presidência da Câmara Municipal deixou
de prestar informações no prazo legal (fls. 32).
Este é o breve relato do que consta dos
autos.
Do ato normativo impugnado.
A Lei nº
3.295, de 27 de janeiro de 2010, da Estância Balneária de Ubatuba, fruto de
iniciativa parlamentar, que “autoriza o Executivo Municipal a criar o Conselho
Municipal de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra de Ubatuba e dá
outras providências”, tem a seguinte
redação, no que interessa:
"Art. 1º. Autoriza o Executivo Municipal a criar, no
âmbito do Município de Ubatuba, o Conselho Municipal de Desenvolvimento e
Participação da Comunidade Negra de Ubatuba.
Art. 2º. O Conselho Municipal de
Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra de Ubatuba terá caráter
deliberativo no âmbito de sua competência e consultivo nos demais casos.
Parágrafo
único - As atribuições conferidas ao Conselho de que trata esta Lei não
excluem as competências constitucionais dos Poderes Executivo e Legislativo.
Art. 3. O Conselho Municipal de
Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra de Ubatuba tem por objetivo
promover a participação organizada da comunidade negra no processo de discussão
e definição das políticas públicas anti discriminatórias e voltadas à afirmação
dessa comunidade no Município de Ubatuba.
Art. 4. Ao Conselho Municipal de
Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra de Ubatuba compete:
I- analisar e opinar sobre os
planos, programas e projetos voltados ao desenvolvimento da comunidade negra,
oferecendo contribuições para o seu aperfeiçoamento;
II-
propor diretrizes para as políticas voltadas à comunidade negra;
III-
analisar e pronunciar-se sobre os Projetos de Leis e Decretos que se reafirmam,
direta e indiretamente, aos direitos e a afirmação da comunidade negra, bem
como oferecer contribuições para o seu aperfeiçoamento;
IV-
opinar e oferecer subsídios relativos afirmação e valorização da comunidade
negra;
V-
propor e contribuir para a realização de campanhas de informação sobre o
combate ao racismo e a discriminação racial;
VI-
acompanhar e fiscalizar os atos do Poder Público no Município de Ubatuba,
relacionados à comunidade negra;
VII-
manter intercâmbio com entidades e organizações, públicas e ou privadas, de
pesquisa e demais atividades voltadas à questão da afirmação da comunidade
negra e ao combate ao racismo;
VIII-
fazer-se representar em quaisquer órgãos ou fóruns que promovam a discussão de
políticas públicas e ou sociais de caráter geral;
IX-
promover junto às escolas, entidades representativas e organizações sociais e
classistas, debates e estudos para a conscientização da comunidade negra;
X-
elaborar seu Regimento Interno."
A lei em
epígrafe, fruto de iniciativa parlamentar, apresenta vertical incompatibilidade
com a Constituição do Estado, tanto por vício de iniciativa como pela quebra da
regra da separação de poderes, na medida em que cria órgão na Administração
Pública Municipal, o denominado o Conselho Municipal de Desenvolvimento e
Participação da Comunidade Negra de Ubatuba.
Nesse contexto, fica patenteada a
ocorrência: (a) da quebra da separação de poderes (art. 5º, 47, II, e XIV da
Constituição Paulista); (b) do vício de iniciativa, por criação de órgão
administrativo e regulação de matéria orçamentária (art. 24, § 2º, n. 2, e art.
174 da Constituição Paulista); (c) de criação de novas despesas sem a indicação
da respectiva fonte de receita (art. 25 da Constituição do Estado). Todas estas
diretrizes são aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição
Paulista.
A iniciativa reservada do Executivo é
fruto de disciplina expressa, não podendo o Poder Legislativo dar início a
projeto de lei destinado à criação de órgão público, sem quebra do princípio da
separação de poderes. Quando o legislador, a pretexto de legislar, administra,
configura-se o desrespeito à independência e harmonia entre os poderes.
Nestes
termos, a disciplina legal findou, efetivamente, invadindo a esfera da gestão administrativa, que
cabe ao Poder Executivo, envolvendo o planejamento,
a direção, a organização e a execução de atos de governo.
Cumpre recordar, nesse passo, o ensinamento
de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a
Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos
órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras para a
Administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal,
genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O
Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta
sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes,
princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer
atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e
inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo
ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação
da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é
nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo
local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder
Judiciário” (Direito municipal
brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da
Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Exatamente esta é a hipótese dos autos.
Em situações análogas esse E. Órgão
Especial tem reconhecido a inconstitucionalidade do ato normativo por quebra do
princípio de separação de poderes.
É o que se infere dos julgados a seguir
transcritos, mutatis mutandis
aplicáveis ao caso em exame:
“Ao executivo haverá de caber
sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais.
Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa
execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o
órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse
gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (ADI
n. 53.583-0, rel. Des. Fonseca Tavares).
“Ação direta de
inconstitucionalidade. Artigo 2º da Lei Municipal 10.975/2006, de Ribeirão
Preto. Legislação, de iniciativa parlamentar, que determina a obrigatoriedade
da inscrição ‘Patriota brasileira assassinada pela ditadura militar’ em placa
indicativa de logradouro ou próprio municipal. Impossibilidade. Matéria de
cunho eminentemente administrativo atinente a planejamento e ordenamento urbano.
Função legislativa da Câmara de Vereadores possui caráter genérico e abstrato.
Lei dispôs de maneira concreta, com caráter de obrigatoriedade, afrontando o
princípio da separação dos poderes. Procedência” (ADI 147.772.0/5-00, rel. des.
Maurício Ferreira Leite, j. 03.10.2007).
“Ação direta de
inconstitucionalidade - Lei Municipal n° 6.641, de 31 de julho de 2006, que
dispõe sobre a obrigatoriedade de fixação de quadro informativo com nome,
registro e especialidade de profissional médico de plantão nos pronto-socorros
e unidades básicas de saúde - Ato típico de administração, cujo exercício e
controle cabe ao Chefe do Poder Executivo - Ofensa ao princípio da separação
dos poderes - Criação de despesas não previstas no
Acrescente-se, ainda, que em casos como
o presente esse Colendo Órgão Especial tem reconhecido a inconstitucionalidade
da norma com fundamento no art. 25 da Constituição do Estado. Confiram-se, a
título de exemplificação, recentes julgados adiante indicados: ADI
134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI
135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j. 03.10.2007, v.u.; ADI
135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j. 03.10.2007, v.u.
Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou.
Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:
"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente autorizativa é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização - por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).
Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n° 593099377 – rel. Des. Mana Berenice Dias – j. 7/8/00).
Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:
LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.
VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.
LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA
PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS
NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO
DO
Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 748).
Diante do
exposto, nosso parecer é no sentido da procedência
desta ação direta, com a declaração da inconstitucionalidade da Lei
Municipal nº 3.295, de 27 de janeiro de 2010, da Estância Balneária de Ubatuba.
São Paulo, 6 de outubro de 2010.
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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