Parecer
Processo n. 990.10.168.881-6
Requerente: Prefeito Municipal de Bauru
Objeto: inconstitucionalidade do artigo 2º
da Lei n. 5.806, de 10 de novembro de 2009, do Município de Bauru
Ementa: Constitucional. Administrativo. Processual Civil. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 5.806/09, do Município de Bauru. Alienação de bem público. Destinação do seu produto ao pagamento de futuras desapropriações referentes à implantação de avenida. Separação dos poderes. 1. É impróprio o controle judiciário abstrato, concentrado e direto de constitucionalidade para o exame de lei de efeito concreto. 2. Destacada do exame da norma sua primeira parte, impondo a observância de licitação, não se afigura ofensa ao princípio da separação de poderes. 3. Parecer pela carência da ação ou sua improcedência.
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando o artigo 2º da Lei n. 5.806, de 10 de novembro de 2009, do Município de Bauru, resultante de emenda parlamentar, que obriga à licitação para alienação do bem público nela especificado e vincula o seu produto à quitação de futuras desapropriações para a implantação de avenida, sob alegação de ofensa ao artigo 5º Constituição Estadual (fls. 02/10).
2. Deferida liminar (fl. 44), a Câmara Municipal prestou informações (fls. 58/59) e a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou de sua intervenção no processo (fls. 54/56).
3. É o relatório.
4. A Lei n. 5.806, de 10 de novembro
de 2009, autoriza o Poder Executivo a alienar o imóvel nela descrito no artigo
1º e promove sua desafetação (artigo 3º), e assim dispõe em seu artigo 2º:
“Art. 2º. A alienação do imóvel
descrito no artigo anterior será formalizada mediante processo licitatório,
sendo os recursos obtidos mantidos em conta vinculada e somente poderão ser
utilizados para quitação de futuras desapropriações na avenida constante no
Art. 1º”.
5. A
lei é de iniciativa do Chefe do Poder Executivo e visa à implantação de via
pública (avenida). A redação original do artigo 2º expressava que “a alienação
do imóvel descrito no artigo anterior será formalizada mediante processo
licitatório” (fl. 63), mas, emenda parlamentar (fl. 91) foi acolhida e o veto
aposto foi rejeitado (fls. 100/117) fornecendo a redação vigente objeto da
presente ação.
6. Preliminarmente, o processo deve
ser extinto sem solução de mérito por falta de interesse de agir.
7. É impróprio o controle judiciário abstrato, concentrado e direto de constitucionalidade para o exame de lei de efeito concreto.
8. A lei local objurgada autoriza o poder público municipal, por meio do Poder Executivo, a alienar bem imóvel integrante de seu patrimônio mediante licitação, o desafeta e determina que o produto de sua venda seja destinado especificamente no pagamento das indenizações devidas para cobertura de futuras desapropriações para instalação de via pública determinada.
9. Trata-se de mera autorização legislativa que reveste, como expressão do controle do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo inerente ao sistema de freios e contrapesos decorrente do princípio da separação de poderes, ato administrativo de efeito concreto de disposição de bem integrante do patrimônio público.
10. Hely Lopes Meirelles explica que por leis e decretos de efeitos concretos, “entende-se aqueles que trazem em si mesmos o resultado específico pretendido, tais como as leis que aprovam planos de urbanização, as que fixam limites territoriais, as que criam municípios ou desmembram distritos, as que concedem isenções fiscais; as que proíbem atividades ou condutas individuais; os decretos que desapropriam bens, os que fixam tarifas, os que fazem nomeações e outros dessa espécie. Tais leis ou decretos nada têm de normativos; são atos de efeitos concretos, revestindo a forma imprópria de lei ou decreto, por exigências administrativas. Não contêm mandamentos genéricos, nem apresentam qualquer regra abstrata de conduta; atuam concreta e imediatamente como qualquer ato administrativo de efeitos individuais e específicos, razão pela qual se expõem ao ataque pelo mandado de segurança” (Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e Habeas Data, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, 12a ed., 1.989, p. 17).
11. Essa tradicional opinião é respaldada pela pena de Alexandre de Moraes ao salientar que “atos estatais de efeitos concretos não se submetem, em sede de controle concentrado, à jurisdição constitucional abstrata, por ausência de densidade normativa no conteúdo de seu preceito” (Direito Constitucional, São Paulo: Atlas, 9ª ed., 2001, p. 584).
12.
Neste sentido, a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“Todos
sabemos que o controle concentrado de constitucionalidade somente pode incidir
sobre atos do Poder Público revestidos de suficiente densidade normativa,
cabendo assinalar, neste ponto, que a noção de ato normativo, para efeito de
sua fiscalização em tese, requer, além de autonomia jurídica da deliberação
estatal, também a constatação de seu necessário coeficiente de generalidade
abstrata sem prejuízo da indispensável configuração de sua essencial
impessoalidade (RTJ 143/510, Rel. Min.
Celso de Mello). É por essa razão que atos de efeitos concretos não
expõem, em nosso sistema de direito positivo – e na linha de diretriz
jurisprudencial firmada por esta Corte -, à possibilidade jurídico-processual
de fiscalização abstrata de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal
Federal (RTJ 108/505, RTJ 119/65, RTJ 139/73), eis que tais espécies jurídicas,
que tem objeto determinado e destinatários certos, não veiculam, em seu
conteúdo, normas que disciplinem relações jurídicas em abstrato (RTJ 140/36). A
ausência do necessário coeficiente de generalidade abstrata impede, desse modo,
a instauração do processo objetivo de controle normativo abstrato (RTJ
146/483)” (STF, ADI-MC 1.372-RJ, Rel. Min. Celso de Mello, 10-11-1995, DJU
17-11-1995).
“Ação direta de inconstitucionalidade,
entretanto, inadmissível, não obstante a plausibilidade da argüição dirigida
contra a Mprov 1.600/97, dado que, na jurisprudência do STF, só se consideram
objeto idôneo do controle abstrato de constitucionalidade os atos normativos
dotados de generalidade, o que exclui os que, malgrado sua forma de lei,
veiculam atos de efeito concreto, como sucede com as normas individuais de
autorização que conformam originalmente o orçamento da despesa ou viabilizam
sua alteração no curso do exercício” (STF, ADI 1.716, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJ 27-03-1998).
“Ação direta de inconstitucionalidade: inviabilidade:
ato normativo de efeitos concretos. 1. O Decreto Legislativo 121/98, da
Assembléia Legislativa do Estado do Piauí, impugnado, impõe a reintegração de
servidores, que teriam aderido ao Programa de Incentivo ao Desligamento
Voluntário do Servidor Público Estadual (L. est. 4.865/96). 2. O edito
questionado, que, a pretexto de sustá-los, anula atos administrativos concretos
- quais os que atingiram os servidores nominalmente relacionados - não é um ato
normativo, mas ato que, não obstante de alcance plural, é tão concreto quanto
aqueles que susta ou torna sem efeito. 3. É da jurisprudência do Supremo
Tribunal que só constitui ato normativo idôneo a submeter-se ao controle
abstrato da ação direta aquele dotado de um coeficiente mínimo de abstração ou,
pelo menos, de generalidade. 4. Precedentes (vg. ADIn 767, Rezek, de 26.8.92,
RTJ 146/483; ADIn 842, Celso, DJ 14.05.93)” (STF, ADI-MC-QO 1.937-PI, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 20-06-2007, v.u., DJ 31-08-2007, p. 29).
“CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COM EFEITO CONCRETO. LEI DE DIRETRIZES
ORÇAMENTÁRIAS: Lei 10.266, de 2001. I. - Leis com efeitos concretos, assim atos
administrativos em sentido material: não se admite o seu controle em abstrato,
ou no controle concentrado de constitucionalidade. II. - Lei de diretrizes
orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários certos, assim sem
generalidade abstrata, é lei de efeitos concretos, que não está sujeita à
fiscalização jurisdicional no controle concentrado. III. - Precedentes do
Supremo Tribunal Federal. IV. - Ação direta de inconstitucionalidade não
conhecida” (STF, ADI-MC 2.484-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso,
19-12-
13.
O controle abstrato de normas
só se presta a examinar a constitucionalidade de espécies normativas próprias,
ou seja, aquelas que são dotadas de generalidade, indeterminação e abstração, requisito
ausente na legislação em exame.
14.
No caso em estudo, trata-se
de lei que, em essência, traveste ato administrativo com objeto determinado e
destinatário certo e que não veicula, em seu conteúdo, normas que disciplinem
relações jurídicas em abstrato.
15.
A lei municipal tem em mira situação e destinatários certos e
determinados, perdendo os seus atributos de generalidade, indeterminação e
abstração. A abstração da lei consiste em ela supor uma situação reproduzível,
ou seja, hipotetizar renovação. Ora, um dos traços que distingue a lei do ato
administrativo é a abstratividade, assim conceituada como o “modelo normativo com âmbito temporal de
vigência em aberto, pois claramente vocacionado para renovar de forma contínua
o liame que prende suas hipóteses de incidência aos respectivos mandamentos”
(STF, ADC-MC 12-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, 16-12-
16. Com
efeito, no caso sub examine, a
capacidade de reprodução da disposição normativa enfocada é nula porque seu
mandamento se esgota em si mesma. Ela apanha as situações jurídicas em curso ao
tempo de sua vigência, sem possibilidade de renovação de seu comando para
hipóteses futuras. Se é certo que a abstratividade não se confunde com a
determinabilidade subjetiva, por via reflexa capta-se a linha diferencial a
tonificar o cabimento do controle concentrado de constitucionalidade quando o
ato normativo não exija ato administrativo para lhe dar eficácia, in verbis:
“Agravo regimental. - O artigo 2º, II, da
Medida Provisória 1887-43, não é ato de efeito concreto, mas ato normativo de
autorização de prorrogação excepcional, até certa data (no caso, 30 de junho de
1999), de quaisquer contratos em curso celebrados para combate a surtos
endêmicos de que trata o art. 2º, inciso II, da Lei n. 8.745, de 1993. Como ato
de autorização genérica que exige, para sua concretização individualizada, atos
de autoridades administrativas várias no âmbito de sua competência para
celebração desses aditivos contratuais, não pode ser evidentemente ato de
efeito concreto que só ocorre quando lei ou decreto trazem consigo mesmos
efeitos concretos imediatos, como, por exemplo, leis que concedem pensão a
determinada pessoa ou que aprovam planos de urbanização, sem a necessidade, portanto,
para alcançar seu fim, de atos administrativos posteriores de individualização
específica. Só por isso não seria cabível o presente mandado de segurança, em
face do teor da súmula 266 desta Corte. - Tendo, porém, o ora agravante
formulado seu pedido sob o aspecto de omissão do Presidente da República em
haver impedido a prorrogação desses contratos, para que a segurança fosse
concedida a fim de compelir S. Exª. a editar nova Medida Provisória
determinadora da prorrogação pretendida, o despacho que lhe negou seguimento se
adstringiu a não ser o mandado de segurança o instrumento adequado para a
declaração de inconstitucionalidade por omissão, nem poder o Judiciário
compelir o Presidente da República à iniciativa, que lhe é exclusiva e
discricionária, de edição de Medida Provisória. Agravo a que se nega
provimento” (STF, MS-AgR 23.493-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves,
13-10-1999, v.u., DJ 19-11-1999, p. 62).
17.
Deste modo, se o ato normativo requer intermediação de ato
administrativo, desautorizado está o controle concentrado de
constitucionalidade. Neste sentido:
“A noção de
‘ato normativo’, para efeito de controle de constitucionalidade, pressupõe,
além de sua autonomia jurídica, a constatação do seu coeficiente de
generalidade abstrata, bem assim de sua impessoalidade, elementos que lhe
conferem aptidão para atuar, no plano do direito positivo, como norma revestida
de eficácia subordinante de comportamentos, estatais ou individuais, futuros”
(STF, ADI-QO 587-MG, Rel. Min. Celso de Mello, 07-11-1991).
“Se a
interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto
executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato
secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ultra legem, quer porque tenha
permanecido citra legem, quer, ainda,
porque tenha investido contra legem,
a questão caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de
inconstitucionalidade, a inviabilizar, em conseqüência, a utilização do
mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. Eventual
extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que materialmente deve
estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos comandos da lei.
Mesmo que a partir desse vício jurídico se possa vislumbrar, num desdobramento
ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face
de uma situação de inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua, cuja apreciação
não se revela possível em sede jurisdicional concentrada” (STF, ADI-MC 996-DF,
Rel. Min. Celso de Mello, RTJ 158/54).
18.
Em hipótese similar, assim
decidiu o Supremo Tribunal Federal:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE -
ESTADO DE SÃO PAULO - LEI N. 7.210/91 - DOAÇÃO DE BENS INSERVÍVEIS E/OU
EXCEDENTES A ENTIDADE DE DIREITO PRIVADO - ATO MATERIALMENTE ADMINISTRATIVO -
IMPOSSIBILIDADE DE CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE - NÃO
CONHECIMENTO. - Objeto do controle normativo abstrato, perante a Suprema Corte,
são, em nosso sistema de direito positivo, exclusivamente, os atos normativos
federais ou estaduais. Refogem a essa jurisdição excepcional de controle os
atos materialmente administrativos, ainda que incorporados ao texto de lei
formal. - Os atos estatais de efeitos concretos - porque despojados de qualquer
coeficiente de normatividade ou de generalidade abstrata - não são passiveis de
fiscalização jurisdicional, ‘em tese,’ quanto a sua compatibilidade vertical
com o texto da Constituição. Lei estadual, cujo conteúdo veicule ato
materialmente administrativo (doação de bens públicos a entidade privada), não
se expõe a jurisdição constitucional concentrada do Supremo Tribunal Federal,
em sede de ação direta” (STF, ADI 643-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de
Mello, 19-12-1991, v.u., DJ 03-04-1992, p. 4.289, RTJ 139/73).
19. Se superada a preliminar, observo
que o preceito legal impugnado não é integralmente incompatível com a
Constituição Estadual.
20. Com efeito, a exigência de
licitação contida na primeira parte do artigo 2º da Lei n. 5.806/09
harmoniza-se aos princípios de moralidade e impessoalidade inscritos no artigo
111 da Constituição Estadual e, notadamente, à regra da licitação constante do
artigo 117 da mesma.
21. Destarte, não se mostra acertada
qualquer solução de mérito que pronuncie a total e completa inconstitucionalidade
do artigo 2º da lei local objurgada, pois, sua primeira parte afina a esses
preceitos constitucionais.
22. Não se verifica violação ao número
1 do § 5º do artigo 24 da Constituição Estadual porque a redação resultante da
emenda parlamentar não implica aumento de despesa prevista e, tampouco, em
linha de princípio, demonstra ofensa à pertinência temática.
23. Por derradeiro, não se constata
violação ao princípio da separação de poderes.
24. Como desdobramento particularizado
do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a
Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, iniciativa
legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, e, mais adiante, a
Constituição Estadual prevê no art. 47 competência privativa do Chefe do Poder
Executivo. Esse último dispositivo cunha a denominada reserva da Administração
e consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas
competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva
de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à
interferência do Poder Legislativo.
25. Porém, em ambas as disposições não resulta explícita turbação das competências constitucionais reservadas ao Poder Legislativo, e, ademais, é assente que cuida-se de matéria de direito estrito, que não se presume e nem comporta interpretação ampliativa.
26. Opino pela carência da ação e, se ultrapassada a preliminar, por sua improcedência.
São Paulo, 25 de outubro de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj