Parecer
Processo n. 990.10.183900-8
Requerente: Prefeito Municipal de Jundiaí
Objeto: Lei n. 7.241, de 25 de fevereiro de
2009, do Município de Jundiaí
Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 7.241/09 que altera a Lei n. 6.109/03, do Município de Jundiaí. Polícia administrativa e uso privativo de bens públicos. Pontos novos de estacionamento de veículos de aluguel do serviço de transporte individual de passageiros (táxi). Inexistência de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo ou de violação da separação de poderes. Ofensa, todavia, ao princípio da impessoalidade. 1. Na fiscalização abstrata, concentrada, direta e objetiva de constitucionalidade de lei municipal o parâmetro exclusivo de contraste é Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF). 2. Reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo não se presume por ser direito estrito, exigindo explícita previsão normativa sobre o assunto. 3. Matéria própria da polícia administrativa municipal conectada ao uso privativo de bem público é a criação de novos pontos de estacionamento de veículos de aluguel do serviço de transporte individual de passageiros (táxi) em que não há reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo nem a denominada reserva de Administração. 4. Inexistência de ofensa ao princípio da separação de poderes (arts. 5º, § 2º, e 47, II, CE), bem como aos arts. 25, 174, II e III, 175, e 176, I e IV, da Constituição Estadual, porque a lei não tangenciou matéria financeira ou orçamentária ou gerou despesa pública nova. 5. Sendo elementar ao controle objetivo de constitucionalidade de leis e atos normativos o conceito de causa de pedir aberta (RTJ 200/91), revela-se agressiva ao princípio de impessoalidade (art. 111, CE) a prioridade na outorga das novas vagas aos atuais permissionários de uso, exonerando a necessária licitação, processo administrativo que assegura a moralidade no trato da coisa pública e a igualdade e a objetividade no tratamento dispensado aos administrados, sobretudo nas situações de atos ampliativos de direitos. 6. Parecer pela parcial procedência da ação.
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se
de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 7.241, de 25 de
fevereiro de 2009, do Município de Jundiaí, de iniciativa parlamentar, que
acrescentou ao art. 19 da Lei n. 6.109, de 25 de agosto de 2003, o § 1º
instituindo “pontos de estacionamento defronte de hotéis, tendo os atuais
permissionários prioridade na ocupação das vagas, que serão atribuídas por
sorteio” e o § 2º estabelecendo que “as vagas não ocupadas serão preenchidas
através de processo licitatório”, sob a alegação de incompatibilidade com os
arts. 5º, § 2º, 25, 47, II, 144, 174, II e 176, I e IV, da Constituição do
Estado além daqueles que são seus parâmetros na Constituição Federal (fls.
02/12).
2. A
liminar requerida foi deferida (fl. 22). A douta Procuradoria-Geral do Estado
declinou de sua participação na lide (fls. 32/34). A Câmara Municipal prestou
informações (fls. 36/38) acostando cópia do processo legislativo (fls.
40/67).
3. É
o relatório.
4. A
fiscalização abstrata, concentrada, direta e objetiva da constitucionalidade de
lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual, à luz do
art. 125, § 2º, da Constituição Federal, razão pela qual é insuscetível o
exame, nesta sede, de sua eventual desconformidade com a Constituição Federal,
a Lei Orgânica Municipal ou lei federal.
5. Não se verifica ofensa aos arts. 174, II e
III, 175, e 176, I e IV, da Constituição Estadual, porque nem por extrema
complacência poderá se admitir que a lei local tangenciou matéria financeira ou
orçamentária ou gerou despesa pública, razão pela qual descartada, também, a
argüição de ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual na medida em que não se
criou nova atribuição a exigir diretamente encargo financeiro novo, tendo em
conta a prévia existência da fiscalização sobre o serviço de transporte
individual de passageiros por veículo de aluguel (táxi) e do trânsito.
6. Examina-se
a argüição de ofensa aos arts. 5º e 47, II, da Constituição Estadual.
7. Regra
é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a
atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que,
por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às
hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição
salientando que:
“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
8. Fixadas estas premissas, as
reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos
públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas
restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo
legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros.
Neste
sentido, colhe-se da Suprema Corte:
“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).
“As
hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da
Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração
Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo”
(RT 866/112).
“A
disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz
essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele
somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa,
inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. -
A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa
vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a
qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa
- se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo
expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei,
no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade
suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder
de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso
de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).
9. Como desdobramento particularizado
do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a
Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, iniciativa
legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita
municipal por obra de seu art. 144).
10. Não
se verifica em qualquer uma das hipóteses catalogadas nesse preceito reserva de
iniciativa legislativa instituída de maneira expressa, o que afasta do contexto
a alegação de usurpação de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder
Executivo.
11. Efetivamente,
a lei local impugnada não cria ou extingue órgãos administrativos, nem lhe
comete novas atribuições.
12. Neste
sentido, este egrégio Tribunal de Justiça assentou que:
“Entretanto, fora dos temas reservados, a regra é a iniciativa concorrente, já que é esta a que melhor se identifica com o princípio da separação e harmonia entre os Poderes, que, dada a sua importância, não permite interpretação extensiva às suas exceções” (ADI 105.773-0/2-00, Órgão Especial, Rel. Des. Sinésio de Souza, v.u., 06-10-2004).
13. A lei local impugnada cuida da
instituição de pontos de estacionamento de táxi defronte a hotéis, outorgando
aos atuais permissionários prioridade na ocupação das vagas, que serão
atribuídos por sorteio, e estabelece que as remanescentes serão preenchidas por
licitação. Trata, portanto, da utilização privativa de bem público conectada à
polícia de atividade particular de interesse público, sujeita ao controle por
meio de autorização estatal.
14. Consoante
obtemperado no precedente deste egrégio Tribunal de Justiça acima destacado:
“O serviço de transporte por táxi depende de ‘autorização’ do Poder Público (...) Isso, entretanto, não significa que ao Poder Legislativo seja vedada a estipulação de regras gerais a serem observadas no exercício da atividade” (ADI 105.773-0/2-00, Órgão Especial, Rel. Des. Sinésio de Souza, v.u., 06-10-2004).
15. Não custa afirmar que o serviço de transporte
individual de passageiros em veículos de aluguel (táxi), executado por pessoas
físicas ou jurídicas, não é serviço público nem assume o contorno de figura
inerente à descentralização administrativa por colaboração, ou, em outras
palavras, delegação de serviço público mediante concessão ou permissão.
16. Com
efeito, o serviço de transporte individual de passageiros em veículos de
aluguel não é serviço público e norma alguma poderia assim qualificá-los;
trata-se de atividade privada sujeita à polícia administrativa. E isto porque,
segundo a firme opinião de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a caracterização do
serviço público demanda a cumulação dos elementos material (atividade material
de satisfação concreta de necessidades coletivas), subjetivo (atribuição por
lei ao Estado) e formal (regime jurídico total ou parcialmente público). Com relação
ao elemento subjetivo, o Estado tanto pode desempenhá-lo diretamente por seus
órgãos ou indiretamente por outorga às entidades da Administração indireta ou
delegação a particulares mediante concessão ou permissão; com referência ao
material, é insuficiente o objetivo de interesse público, sendo necessário que
a lei atribua esse escopo ao Estado (Direito
Administrativo, São Paulo: Atlas, 2006, 20ª ed., pp. 88-92).
17. Maria
Sylvia Zanella Di Pietro critica a classificação que diferencia serviços próprios
e impróprios, demonstrando que, estes últimos:
“(...) são os que, embora atendendo também a necessidades coletivas, como os anteriores, não são assumidos nem executados pelo Estado, seja direta ou indiretamente, mas apenas por ele autorizados, regulamentados ou fiscalizados; eles correspondem a atividades privadas e recebem impropriamente o nome de serviços públicos, porque atendem a necessidades de interesse geral; vale dizer que, por serem atividades privadas, são exercidas por particulares, mas, por atenderem a necessidades coletivas, dependem de autorização do Poder Público, sendo por ele regulamentadas e fiscalizadas; ou seja, estão sujeitas a maior ingerência do poder de polícia do Estado.
Na realidade, essa categoria de atividade denominada de serviço público impróprio não é serviço público em sentido jurídico, porque a lei não a atribui ao Estado como incumbência sua ou, pelo menos, não a atribui com exclusividade; deixou-a nas mãos do particular, apenas submetendo-a a especial regime jurídico, tendo em conta sua relevância” (Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 2006, 20ª ed., pp. 96).
18. A
atividade de transporte individual de passageiros em veículos de aluguel é
privada, regida pelo direito privado e exercida com exclusividade pelo particular,
mas, como tem relevância pública, é sujeita a policy do poder público e às suas regras de disciplina,
consentimento e controle (arts. 170, parágrafo único, e 174, Constituição
Federal), elementares a qualquer limitação ou condicionamento de direito ou
interesse instituída em prol do interesse público (polícia administrativa).
19. Se
fosse serviço público, o particular estaria ligado ao Estado por um título
jurídico individual. A hipótese seria diferente e haveria base para exigência
de relação de emprego ut art. 71 da
Lei n. 8.666/93 e nas próprias normas regulamentares do serviço, para evitar
responsabilidade subsidiária do poder público delegante. Todavia, dele não se
trata, porque ninguém pode delegar a outrem o que não lhe pertence. A delegação
do serviço público ao particular pressupõe titularidade (elemento subjetivo).
Diversamente, o exercício de atividade privada sujeita, por lei, o particular a
incidência de normas públicas conciliadoras da tensão entre interesse público e
privado, o que caracteriza o police power.
20. A
lei local impugnada ao disciplinar a instituição do estacionamento de táxi
defronte a hotéis simplesmente legislou, de maneira genérica e abstrata, sobre
polícia administrativa, assunto que não é reservado à iniciativa do Chefe do
Poder Executivo.
21. Para
além da criação de novos pontos de estacionamento de veículos de aluguel do
serviço de transporte individual de passageiros, a norma impugnada contém
regras sobre o procedimento para ocupação das vagas, o que consiste na
disciplina de uso privativo de bem público (estacionamento) conexo à
autorização da atividade particular de serviço de transporte individual de
passageiros em veículos de aluguel.
22. Mas,
o fez, igualmente, de maneira abstrata e genérica, sem tangenciar assunto
inserido na denominada “reserva da Administração” traçada no art. 47, e cujo
inciso II confere competência privativa ao Chefe do Poder Executivo para o
exercício da direção superior da administração – preceito incidente na órbita
municipal por obra do art. 144 da Constituição do Estado.
23. A
norma consagra atribuição de governo ao Chefe do Poder Executivo, traçando suas
competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada
reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva,
imunes à interferência do Poder Legislativo.
24. Não
é o caso, pois, na espécie, a norma local não significa interferência indevida
do Poder Legislativo na gestão dos negócios públicos, senão disciplina abstrata
e genérica de atividades sujeitas ao controle estatal e de uso de bens públicos
por particulares, e que não são reservadas à competência privativa da
Administração Pública ou do Poder Executivo. Portanto, não há violação ao
princípio da separação dos poderes (art. 5º, § 2º, Constituição Estadual).
25. Atento à consideração de causa de
pedir aberta elementar ao controle objetivo de constitucionalidade de leis e
atos normativos (STF, RE-AgR-ED 372.535-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Carlos Britto,
09-10-2007, v.u., DJe 11-04-2008; STF, ADI 3.576-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Ellen Gracie, 22-11-2006, m.v., DJ 02-02-2007, p. 71, RTJ 200/91), revela-se
incompatível a lei local com o princípio de impessoalidade constante do art.
111 da Constituição Estadual, aplicável aos Municípios por obra de seu art.
144.
26. A
segunda parte do § 1º do art. 19 da Lei n. 6.109/03 acrescentado pelo art. 1º
da Lei n. 7.241/09 instituiu aos “atuais permissionários prioridade na ocupação
das vagas, que serão atribuídas por sorteio” e o § 2º igualmente aditado
estabelece que somente “as vagas não ocupadas serão preenchidas através de
processo licitatório”.
27. A
previsão não se coaduna ao princípio de impessoalidade que deve presidir a
atividade administrativa e que se encontra explicitado no art. 111 da
Constituição Estadual. É assente que o uso privativo de bens públicos por
particulares demanda licitação, processo administrativo que assegura a
moralidade no trato da coisa pública e a igualdade e a objetividade no
tratamento dispensado aos administrados, sobretudo nas situações de atos
ampliativos de direitos.
28. Ademais,
é a lei contraditória ao limitar a exigibilidade da licitação no § 2º, não se
verificando na ressalva constante do § 1º, in
fine, qualquer elemento justificador de discriminação que tivesse a
potencialidade de ser considerada lícita. Bem por isso, há
inconstitucionalidade na concessão de prioridade da outorga de uso desses novos
pontos criados e na limitação da licitação às vagas remanescentes não ocupadas.
29. Com
efeito, a lei gera novos espaços públicos para uso privativo e a conseqüente
permissão deve ser franqueada em condições objetivas, iguais e impessoais,
através de processo seletivo público, a tantos quantos aspirem à relação
jurídica, pouco importando se atuais ou novéis taxistas ou permissionários.
30. Opino
pela procedência parcial da ação para declarar a inconstitucionalidade das
expressões “tendo os atuais permissionários prioridade na ocupação das vagas,
que serão atribuídas por sorteio” e “não ocupadas”, constantes do §§ 1º e 2º do
art. 19 da Lei n. 6.109, de 25 de agosto de 2003, introduzido pelo art. 1º da
Lei n. 7.241, de 25 de fevereiro de 2009.
São Paulo, 30 de agosto de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj