Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 990.10.184056-1

Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos

Objeto: Lei nº 6.648, de 10 de março de 2010, do Município de Guarulhos

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Estabelecimento de critérios para contratação de empresas pelo Poder Público.  2) Violação da separação de poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art.5º, 47 II e XIV da Constituição Paulista).  3) Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo por objeto a Lei nº 6.648, de 10 de março de 2010, daquele Município, que “ESTABELECE CRITÉRIOS PARA A CONTRATAÇÃO DE EMPRESAS PELO PODER PÚBLICO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi integralmente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 56 ).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 67/73, em defesa da constitucionalidade da norma.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 76/78).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

Este é o teor do ato normativo impugnado:

“Art.1º Para  contratar com o Município de Guarulhos as empresas interessadas na realização de obras, serviços ou vendas para o Município, deverão comprovar a existência de cotas para pessoas com deficiência no seu quadro de funcionários, respeitando o contido no art. 7º, XXXI, da Constituição Federal.

§1º A quota para deficientes no quadro de funcionários deve seguir o contido no art. 93 da Lei Federal nº 8213, de 24 de julho de 1991.

§2º A documentação relativa à comprovação do disposto no caput deste artigo consistirá de prova da situação regular perante o Ministério do Trabalho.

Art. 2º Caso a contratação seja por intermédio de certame licitatório, a quota deverá constar do edital de licitação, como exigência obrigatória para habilitação das empresas concorrentes.

Art. 3º As empresas que hoje contratam com o Município somente renovarão seus contratos se respeitarem o disposto nesta Lei.

Art. 4º O Poder executivo regulamentará esta lei no prazo de 90 (noventa) de sua publicação."

         A lei, de iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública.

         Com efeito, como se viu, a legislação impugnada impõe à Administração o dever de contratar somente com empresas que comprovem a existência de cotas para pessoas com deficiência em seus quadros de funcionários. Trata-se evidentemente de matéria referente à administração pública, cuja gestão é de competência exclusiva do Prefeito, que atuará nesse campo com absoluta independência. A hipótese é de administração ordinária, que se encontra fora do âmbito de atuação do Legislativo, seja para fins de autorização, seja para a imposição de regras.

         Sobre isso, ensina Hely Lopes Meirelles:

 

         “Em princípio, o prefeito pode praticar os atos de administração ordinária independentemente de autorização especial da Câmara. Por atos de administração ordinária entendem-se todos aqueles que visem à conservação, ampliação ou aperfeiçoamento dos bens, rendas ou serviços públicos. (...)

Advirta-se, ainda, que, para atividades próprias e privativas da função executiva, como realizar obras e serviços municipais, para prover cargos e movimentar o funcionalismo da Prefeitura e demais atribuições inerentes à chefia do governo local, não pode a Câmara condicioná-las à sua aprovação, nem estabelecer normas aniquiladoras dessa faculdade administrativa, sob pena de incidir em inconstitucionalidade, por ofensa a prerrogativas do prefeito.  (em “Direito Municipal Brasileiro”, 9ª ed., pp. 519/520).

         Não há dúvida de que, como tal, a iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no art. art.47 incs. II e XIV; e no art.5º da Constituição Paulista, que consagra o princípio da separação entre os Poderes.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando quea Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

           

            Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.648, de 10 de março de 2010, do Município de Guarulhos.

São Paulo, 27 de outubro de 2010.

 

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

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