Parecer
Autos nº. 990.10.186172-0
Requerente: Prefeito do Município de Guarujá
Objeto: Lei nº 3.726, de 18 de dezembro de 2008, do Município de Guarujá
Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito. Lei nº 3.726, de 18 de dezembro de 2008, do Município de Guarujá. Criação de programa para concessão de bolsas de estudo. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 25; 47, incs. II, XI e XIV; e 144 da CE. Parecer pela procedência da ação.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Guarujá, tendo por objeto a Lei nº 3.726, de 18 de dezembro de 2008, daquele Município, que "Autoriza o Município de Guarujá a criar programa de concessão de bolsas de estudos para alunos do ensino fundamental e médio nas escolas particulares do Município e dá outras providências".
O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.
Sustenta que a lei em questão cria obrigações para a administração pública, havendo usurpação por parte do Poder Legislativo, de atribuições pertinentes a atividades próprias do Poder Executivo; além de criar aumento de despesas à administração pública, sem indicação dos recursos disponíveis próprios para atender aos novos encargos, divisando ofensa ao art. 25 da Constituição do Estado.
Aponta inconstitucionalidade face aos artigos 5º; 47, incs. II, XI e XIV; e 25 da Constituição do Estado de São Paulo.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 40 e vº).
O Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer "in albis" o prazo para informações.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 50/52).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
A lei impugnada do Município de Guarujá, que gera despesas para poder público, assim dispõe:
"Art. 1º
Fica o Município de Guarujá autorizado a criar programa para a concessão de
bolsas de estudos integral para os alunos da rede pública do ensino fundamental
ou médio, em instituições privadas, instaladas em Guarujá, com ou sem fins
lucrativos.
§ 1º A bolsa de que trata o "caput" será
concedida aos alunos que comprovem residir no Município de Guarujá há 03 (três)
anos ou mais, cuja renda familiar não exceda 05 (cinco) salários mínimos.
§ 2º A gestão do programa de concessão de bolsas de
estudo, caberá à Secretaria Municipal de Educação.
Art. 2º O processo de seleção dos alunos a serem
beneficiados pelo programa de concessão de bolsa de estudos deverá também
considerar os resultados e perfis dos alunos, segundo critérios a serem
estabelecidos através de Decreto Municipal.
Art. 3º A instituição de ensino privada que aderir ao
programa de concessão de bolsas de estudos, destinando 20% (vinte por cento) de
suas vagas para tal fim, fará jus a isenção de 50% (cinquenta por cento) do
Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, sobre suas atividades de prestação
de serviços, devido ao Município de Guarujá.
§ 1º A instituição de ensino privada deverá firmar com
o Município Termo de Adesão ao programa de bolsas de estudos, segundo o modelo
que deverá constar de Decreto Municipal.
§ 2º A isenção de que trata o "caput" deste
artigo deverá ser prevista especificamente em lei municipal de iniciativa do
Chefe do Poder Executivo Municipal.
Art. 4º O Poder Executivo Municipal deverá regulamentar o
disposto nesta Lei.
Art. 5º As despesas decorrentes desta Lei correrão por
conta de dotações orçamentárias próprias suplementadas se necessário.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação
revogadas as disposições em contrário."
Dita lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:
“Art.
5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo,
o Executivo e o Judiciário.
Art. 47
– Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas
nesta Constituição:
II –
exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da
administração estadual;
XIV –
praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do
Executivo;
Art. 25
- Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública
será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis,
próprios para atender aos novos encargos.
Parágrafo
único - O dispositivo neste artigo não se aplica a créditos extraordinários.
Art.
144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e
financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios
estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.
Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.
A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.
Por intermédio da lei em análise, a Câmara criou um programa de concessão de bolsas de estudos, na rede municipal de ensino fundamental ou médio, onerando, desta forma, a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.
Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:
“O
modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus
aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se
refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se,
enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional
observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn
nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p.
45684).
Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.
As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.
Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).
Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.
Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infrigem esses comandos:
"LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE
DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER
AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA
EXECUÇÃO DO
Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou.
Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:
"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente autorizativa é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização - por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).
Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Mana Berenice Dias – j. 7/8/00).
Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:
LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.
VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.
LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA
PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS
NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO
DO
Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 748).
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 3.726, de 18 de dezembro de 2008, do Município de Guarujá.
São Paulo, 13 de dezembro de 2010.
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
fjyd