Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.189463-7

Requerentes:  Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo – SIFAESP e Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo – SIAESP

Objeto: Lei Municipal 4.394, de 28 de setembro de 2007, que “proíbe a queima da palha de cana-de-açúcar no Município de Mogi Guaçu”

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal 4.394, de 28 de setembro de 2007, de Mogi Guaçu, que “proíbe a queima da palha de cana-de-açúcar no Município de Mogi Guaçu”.

2)      Alegação de violação dos seguintes dispositivos da Constituição Paulista: art. 23, parágrafo único, n. 14; 192, § 1º; e 193, inc. XX e XXI.

3)      Improcedência da ação direta. Possibilidade de edição de normas, em todos os níveis da Federação brasileira, destinadas à proteção do meio ambiente. Precedentes do Col. Órgão Especial. Alternativamente, extinção sem exame do mérito por tratar-se inconstitucionalidade indireta ou reflexa.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo (SIFAESP) e pelo Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo (SIAESP), tendo como alvo a Lei Municipal 4.394, de 28 de setembro de 2007, de Mogi Guaçu, que “proíbe a queima da palha de cana-de-açúcar no Município de Mogi Guaçu”.

Os requerentes sustentam que houve usurpação da competência do legislador estadual, apontando para a violação dos seguintes dispositivos da Constituição Paulista: art. 23, parágrafo único, n. 14; art. 192, § 1º; e art. 193, inc. XX e XXI.

Foi deferida a liminar, determinando-se a suspensão do ato normativo (fls. 231/233).

A Municipalidade de Mogi Guaçu interpôs agravo contra a concessão da liminar (fls. 240/247), ainda não apreciado.

A Municipalidade prestou informações (fls. 297/303).

O Senhor Procurador-Geral do Estado foi citado (fls. 325).

A Fazenda do Estado pugnou sua admissão como amicus curiae (fls. 328/346).

A Câmara Municipal de Mogi Guaçu também postulou seu ingresso como amicus curiae (fls. 352/355).

É o relato do essencial.

Preliminarmente, cabe examinar os pedidos de intervenção como amicus curiae.

Nada há a opor quanto ao pedido de intervenção como amicus curiae formulado pela Fazenda do Estado, embora fosse, com a devida vênia, desnecessária essa intervenção, na medida em que o Procurador-Geral do Estado já intervém, na ação direta, defendendo a constitucionalidade do ato normativo impugnado (art. 90, § 2º da Constituição Paulista).

Admite-se a intervenção da Fazenda como amicus, exclusivamente, porque ao menos em tese, do ponto de vista institucional e funcional, não se confunde a sua presença com a manifestação, em defesa do ato normativo, por parte do Procurador-Geral do Estado.

Quanto ao pedido de intervenção da Câmara Municipal como amicus curiae deve ser indeferido, na medida em que a Câmara já intervém na ação, prestando informações e interpondo recursos. Daí a desnecessidade e descabimento da sua intervenção como amicus curiae.

Nesta oportunidade, por economia processual, bem como considerando que a manifestação de fls. 328/346 é da Fazenda do Estado, requer-se seja intimado o Senhor Procurador-Geral do Estado, a fim de que, se entender pertinente, ratifique a manifestação já apresentada como representante da Fazenda do Estado, valendo tal manifestação como defesa do ato impugnado por parte do Senhor Procurador-Geral do Estado.

Preliminarmente, ainda, é necessário que seja apreciado o recurso interposto pela Municipalidade, cf. fls. 240.

Passa-se ao exame do mérito.

A ação direta deve ser julgada improcedente.

A Lei Municipal 4.394, de 28 de setembro de 2007, “proíbe a queima da palha de cana-de-açúcar no Município de Mogi Guaçu”, e tem por escopo proteger a saúde da população da cidade e melhorar as condições ambientais do Município, que, sofre, principalmente em tempo de baixos índices pluviométricos, com os efeitos das queimadas.

A quaestio iuris a resolver para o julgamento desta ação direta reside em saber se o Município tem ou não competência para editar leis em matéria ambiental.

Esta Procuradoria-Geral de Justiça vem, reiteradamente, posicionando-se no sentido da constitucionalidade de leis similares à que vem a ser examinada neste feito, na medida em que é absolutamente pertinente, com a devida vênia quanto ao entendimento diverso, a afirmação no sentido de que o Município tem competência para legislar em matéria ambiental, e pode editar leis com o escopo de proteger o meio ambiente e da saúde pública no seu âmbito territorial.

O art. 225 da CR, ao referir-se à obrigação do “Poder Público”, voltada à proteção do meio ambiente para presentes e futuras gerações, refere-se a todos os entes da Federação, ou seja, à União, ao Distrito Federal, aos Estados e aos Municípios.

E, no âmbito de cada ente federativo, essa obrigação fixada constitucionalmente refere-se tanto ao Poder Executivo como ao Poder Legislativo.

De outro lado, a proibição da queima da palha da cana-de-açúcar, à evidência, não coloca em perigo “fatores sensíveis da economia regional” envolvendo a realização da colheita desta cultura, como alegam as entidades autoras, ora recorrentes, já que sabidamente o setor vem, a cada ano, aumentando significativamente a quantidade de hectares de cana crua colhidos mecanicamente.

Este aspecto deita por terra o argumento de que o interesse é somente regional ou Estadual, até porque a norma abstrata não pode ser totalmente divorciada da possibilidade de aplicação concreta - para isso ela é feita, aplicação ao caso concreto – e como já repisado, os munícipes são os primeiros a sofrerem com os efeitos das queimadas da palha da cana-de-açúcar no território do município.

E aos argumentos relacionados à afirmação da competência do Município para a proibição de queimadas ao ar livre em seu território, somam-se os preceitos da Constituição Federal, cuja transcrição é de rigor:

“(...)

Art.182 – A Política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana

(...)”

Ainda sobre o interesse local e inequívoca competência dos Municípios para legislarem sobre questões de ordenamento do solo, mormente o urbano e de expansão urbana, dispõe a Lei Federal n. 10.257, de 10.07.2001 – Estatuto da Cidade:

“(...)

Art. 39 – A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.

Art. 40 – O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.

1º - O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.

§ 2º - O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo.

(...)”

Já o art. 4º do Estatuto da Cidade dispõe:

“(...)

Art. 4º - Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:

                   ...

III – planejamento municipal, em especial:

a– plano diretor;

b– disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;

c– zoneamento ambiental ...

(...)”

Pertinente, ademais, invocar o conteúdo da espinha dorsal do Capítulo VI - Do Meio Ambiente, inscrito pelo constituinte originário de 1988:

“(...)

Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

(...)”

Frise-se, ainda, que as disposições do capítulo referente ao meio ambiente encontram eco em outros princípios do texto fundamental, inclusive, como elemento de legitimação da própria atividade econômica, conforme dá conta o art. 170, III e VI, da CF:

“(...)

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

 III – função social da propriedade;

(...)

 VI – defesa do meio ambiente.

(...)”

Ainda sobre o interesse e competência de todos os organismos do Estado na proteção ambiental, bem assim no resguardo e recuperação da qualidade de vida e saúde da população, mister acorrer ao texto da Constituição Bandeirante:

“(...)

Art.191 – O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.

Art. 192 – A execução de obras, atividades, processos produtivos e empreendimentos e a exploração de recursos naturais de qualquer espécie, quer pelo setor público, quer pelo privado, serão admitidas se houver resguardo do meio ambiente ecologicamente equilibrado.          (...)

Art. 201 – O Estado apoiará a formação de consórcios entre os Municípios, objetivando a solução de problemas comuns relativos à proteção ambiental, em particular à preservação dos recursos hídricos e ao uso equilibrado dos recursos naturais.

(...)”

Do que se extrai até aqui, considerando que o direito é uno, e considerando que a lei como uma das principais fontes do direito pátrio não contém palavras e disposições inúteis e, por fim, considerando que os princípios constitucionais devem ser interpretados, aplicados e harmonizados sem prevalência de uns em detrimento de outros, não há como negar que o Município de Limeira, através dos seus representantes eleitos, no caso sob análise, tem competência e o dever de zelar pelo interesse público da manutenção da qualidade de vida local.

Julgando a Apelação Cível nº 240.742.5/5, da Comarca de Mauá, deduzida em Mandado de Segurança e tendo como apelada a Secretaria do Planejamento e Meio Ambiente do Município de Mauá, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em acórdão relatado pelo Eminente Desembargador Soares Lima, enfocando o tema competência legislativa dos municípios, denegou a ordem em pleito de anulação de indeferimento de licenciamento ambiental nos seguintes termos:

“(...)

Inconsistente se afigura o reclamo, na medida em que não se vislumbra a inconstitucionalidade do artigo 157, da Lei Orgânica do Município de Mauá.

A propósito, justificado ficou, de passagem, que ‘os direitos de livre concorrência não são absolutos, podendo sofrer limitações em prol do interesse social’ (fls.220).

Realmente, embora a livre concorrência tenha sido ditada constitucionalmente em princípio geral da atividade econômica (art. 170, IV, da Constituição Federal), a defesa do meio ambiente também o foi (inciso VI), o que ‘tem o efeito de condicionar a atividade produtiva ao respeito do meio ambiente e possibilita ao Poder Público interferir drasticamente, se necessário, para que a exploração econômica preserve e ecologia’ (Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva, 11ª ed., 1996, Malheiros Editores, SP., pág.728).

Nessa ordem de raciocínio, de toda evidência que a lei municipal não invadiu esfera de competência exclusiva do Estado ou da União, traçando parâmetros para a execução de atividade de fins lucrativos que, indiscutivelmente, deteriora o meio ambiente, vez que lhe cabe ‘o controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano’ (artigo 30, VIII, da Carta Magna) cumprindo-lhe, ainda, ‘proteger o  meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas’ (artigo 23, VI, da Constituição Federal).

É o quanto basta para desvanecer o almejado direito subjetivo líquido e certo dos impetrantes.  Nego provimento ao recurso.

(...)”

E no plano do pacto federativo o art. 1º, da Constituição Federal de 1988, não deixa nenhuma dúvida acerca da autonomia política dos municípios, dispondo:

“(...)

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ...

(...)”

E o projeto de repartição de competências introduzido pelo constituinte, segundo o magistério de Joaquim Castro Aguiar, (Competência e Autonomia Dos Municípios na Nova Constituição, Forense, Rio de Janeiro, 1995, pág.19), “contrariamente ao que se costuma ver nos regimes federativos, a federação brasileira possui quatro centros distintos de poder: um, federal, da União; um, regional, dos Estados-membros; um, do Distrito Federal; e um quarto, local, dos Municípios, todos autônomos e com poderes políticos emanados diretamente da Constituição. Embora tenha atribuído à União um quinhão maior na partilha das competências, concedeu ao Município um poder, insuscetível de usurpação pelo governo central ou pelo regional e sem qualquer diferença de caráter dos poderes concedidos à União e ao Estado (...) Do exposto pode-se chegar à conclusão de que a lei municipal não é menos autêntica do que a lei federal e a estadual. O Município faz parte, pois, da estrutura do regime federativo brasileiro. Não recebeu competência por delegação da União ou do Estado. Possui competência originária, de primeiro grau, nascida da própria Constituição, diretamente”.

A doutrina de José Souto Maior Borges (Lei Complementar Tributária, RT, São Paulo, 1975, págs. 10/12) ensina que “não há desníveis hierárquicos entre as pessoas constitucionais, que juridicamente são iguais entre si”. E na sequência arremata: “No campo de competência do Município, a lei municipal é exclusiva e excludente de qualquer outra lei. Não está acima nem abaixo das lei federais e estaduais, precisamente porque está isolada na sua esfera privativa de competência”.

Comentando as competências exclusiva, privativa, comum, concorrente e suplementar da União, dos Estados, dos Municípios e Distrito Federal, leciona Joaquim Castro Aguiar (op. cit., p.24): “Existem matérias sobre as quais tanto a União, quanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem legislar, sendo os poderes  compartilhados entre as unidades federativas. Podemos ditar, como exemplos, a proteção e defesa da saúde, a proteção do meio ambiente e controle da poluição. Nesses casos, diz-se que a legislação é concorrente, no sentido de que cada ente federativo possui um quinhão do poder legislativo, nessa partilha de competências. A matéria não é exclusive e nem privativa de ninguém, podendo, pois, ser objeto de legislação federal, estadual, distrital ou municipal”.

A Constituição Federal, no art. 23, prevê como segue:

“(...)

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(...)

III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artística e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;

(...)

VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;

(...)”

A respeito do tema, pontua Vladimir Passos de Freitas (A Constituição Federal e a Efetividade das Normas Ambientais, 2ª ed., São Paulo, RT, 2002, pág. 75) que “A Constituição Federal, no art.23, partilhou entre os vários entes da Federação um vasto rol de matérias em que todos, isolados, em parceria ou em conjunto, podem atuar segundo regras pré-estabelecidas. É a chamada competência comum. Ela se distingue da competência concorrente, que se verifica quando em relação a uma só matéria concorre mais de uma pessoa política”.

De outro lado, indispensável recordar o conteúdo do que dispõe o art. 30 da Constituição Federal:

“(...)

Art. 30 – Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

(...)

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.

(...)”

Ao discorrer sobre o assunto, José Nilo de Castro observa que “inegavelmente, cabe ao Município, como poder público, dispor sobre regras de direto, legislando em comum com a União e o Estado, com fundamento no art. 23, VI, CR. Portanto, quando um Município, através de lei – mesmo que se lhe reconheça conteúdo administrativo, em se tratando de competência comum -, disciplinar esta matéria, fa-lo-á no exercício da competência comum, peculiarizando-lhe a ordenação pela compatibilidade local, e consideração a esta ou àquela vocação sua” (“Perspectivas do Direito Municipal”, “in”. Ciência Jurídica, set-out. 1993, vol. 53, pág. 131).

Para Toshio Mukai, de outro lado, “a competência do Município é sempre concorrente com a da União e a dos Estados-membros, podendo legislar sobre todos os aspectos do meio ambiente, de acordo com sua autonomia municipal (art.15 da CF), prevalecendo sua legislação sobre qualquer outra, desde que inferida do seu predominante interesse; não prevalecerá em relação às outras legislações, nas hipóteses em que estas forem diretamente inferidas de suas competências privativas, subsistindo a do Município, entretanto, embora observando as mesmas” (“Legislação, meio ambiente e autonomia municipal. Estudos e Comentários”: RDP, Vol. 79, pág. 131).

Ante as circunstâncias jurídicas e regras de competência traçadas na Constituição Federal, a existência de leis ordinárias reafirmando a autonomia política dos municípios na República Federativa do Brasil, tudo ainda sob o enfoque da doutrina e jurisprudência, inclusive, do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, não há como afastar a possibilidade da edição de lei municipal destinada a garantir a qualidade do meio ambiente e de vida à sua população.

A par da inequívoca competência do Município de Mogi Guaçu para a edição da lei impugnada, o desenvolvimento da discussão tangencia, necessariamente, a análise do conceito jurídico de poluição constante do art. 3º, III, a, b, c, d, e, da Lei Federal n. 6.938/1981 (“poluição: a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indireta – prejudiquem a saúde, a segurança e o bem estar da população; criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; afetem desfavoravelmente a biota; afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos”), bem assim das consequências reais à saúde da população e ao meio ambiente provocadas pela queima da palha da cana-de-açúcar. Envolve, também, a análise da constitucionalidade das próprias Leis Estaduais n. 10.547, de 02.05.2000 e n. 11.241, de 19.09.2002, vez que permitem condutas vedadas pela Constituição Federal e por Leis Federais.

Em outras palavras, a alegação de inconstitucionalidade do ato normativo impugnado decorre necessariamente do confronto entre tal diploma e outros atos normativos editados pelo legislador estadual e pelo legislador federal, para só então, a partir daí, tornar-se possível a extração da ilação no sentido de que teria ocorrido a violação de competência legislativa dos entes federativos superiores.

Essa é a chamada inconstitucionalidade indireta ou reflexa, que não viabiliza o controle concentrado de normas, permitindo exclusivamente o exercício do controle difuso.

Assim já posicionou o E. Supremo Tribunal Federal:

“(...)

A ação direta não pode ser degradada em sua condição jurídica de instrumento básico de defesa objetiva da ordem normativa inscrita na Constituição. A válida e adequada utilização desse meio processual exige que o exame in abstracto do ato estatal impugnado seja realizado exclusivamente à luz do texto constitucional. Desse modo, a inconstitucionalidade deve transparecer diretamente do texto do ato estatal impugnado. A prolação desse juízo de desvalor não pode e nem deve depender, para efeito de controle normativo abstrato, da prévia análise de outras espécies jurídicas infraconstitucionais, para, somente a partir desse exame e num desdobramento exegético ulterior, efetivar-se o reconhecimento da ilegitimidade constitucional do ato questionado” (ADin nº 842 - DF, medida liminar, in RTJ 147/545-546, Rel. Min. Celso de Mello).

(...)

O Supremo Tribunal Federal tem orientação assentada no sentido da impossibilidade de controle abstrato da constitucionalidade de lei quando, para deslinde da questão, se mostra indispensável o exame do conteúdo de outras normas jurídicas infraconstitucionais. (ADIn 1286-0 – Rel. Min. Ilmar Galvão).

(...)”

Nesse sentido, ainda, outros precedentes do E. STF: ADI 1.552-MC,  Rel. Min. Celso de Mello,  decisão monocrática, julgamento em  28-2-02, DJ de 7-3-02; ADI 2.714, Rel. Min. Maurício Corrêa,  julgamento em 13-3-03, DJ de 27-2-04; ADI-MC 1347 /DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 05/09/1995, Tribunal Pleno, DJ 01-12-1995, p.41685, EMENT  VOL-01811-02, p.00241, g.n.

Com efeito, o processo objetivo do controle concentrado de constitucionalidade não é a esfera adequada para enfrentar a questão posta, já que a norma impugnada trata de questão candente, com repercussão e necessária integração nas searas ambiental, comercial, produtiva, industrial, técnico-jurídica, biológica, médica, florestal, agronômica, social, doutrinária e jurisprudencial.

É praticamente impossível ao intérprete e aplicador da legislação ambiental constitucional e ordinária, instado a interpretar e decidir sobre o tema “queimada de cana-de-açúcar”, não examinar, v.g., o conceito jurídico de poluição preceituado pelo art. 3º, da Lei Federal n. 6.938/1981. É impossível, ainda, que não formule reflexão e tomada de posição no que se refere ao Ozônio (O³), produzido em altas quantidades na troposfera (baixa atmosfera) a partir da queima da palha da cana, tudo em razão da combinação dos gases primários de características nitrosas com a luminosidade do dia, prejudicando plantas, animais e o homem. É impossível, do mesmo modo, ao aplicador do direito, que ao decidir questão como a dos autos passe ao largo dos aspectos negativos e incômodos (carvãozinho, fumaça e substâncias cancerígenas) provocados pelas queimadas de cana à população, sobretudo para as mais próximas dos sítios dos incêndios. É inevitável a necessidade, ademais, de enfrentar o problema concreto dos graves danos à fauna e à flora, que a queimada de talhões de cana em círculos ou limítrofes a florestas e áreas de preservação permanente causam. É inevitável também a discussão a respeito do falso argumento do perigo do desemprego em massa, no caso de se proibir as queimadas de cana, já que o setor canavieiro (usinas e grandes fornecedores) vem cada vez mais colhendo cana mecanicamente, mas, frise-se, cana queimada.

Vê-se, pois, que o argumento da existência de lei estadual a regular a questão em debate, não é suficiente para caracterizar estrito interesse regional e alijar o interesse municipal para legislar nessa matéria.

Constata-se, também, que além da presunção da constitucionalidade que gozam os atos normativos oficiais, sobretudo com efeitos jurídicos potencializados no sentido da proteção ao meio ambiente e ao interesse público ambiental, como é o caso da lei ora examinada, a declaração de eventual inconstitucionalidade remonta à necessária análise de outros elementos técnicos e legais, caminho inviável no processo de controle concentrado.

Deste modo, de duas uma:

(a) poderá o Tribunal de Justiça de São Paulo extinguir sem exame do mérito a vertente ação, por tratar-se de hipótese de inconstitucionalidade indireta, ou;

(b) será o caso mesmo de improcedência da ação, por não contrariar, o ato normativo impugnado, os dispositivos indicados como violados, todos da Constituição do Estado de São Paulo, que não reservam (nem poderiam fazê-lo, pena de serem, eles mesmos inconstitucionais) ao Estado-membro a competência para editar atos normativos em matéria de proteção ao meio-ambiente.

São Paulo, 02 de dezembro de 2010.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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