Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n.º 990.10.191567-7

Autor: Prefeito Municipal de Ubatuba

Objeto de impugnação: Leis n.os 3.260/2009, 3.261/2009 e 3.293/2010, do Município de Ubatuba.

 

 

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade – Leis de iniciativa parlamentar que disciplinam o exercício de atividades privadas nos limites territoriais do Município de Ubatuba – Típica manifestação do poder de polícia – Como o poder de polícia é discricionário, a norma legal que o confere não pode pormenorizar o modo e as condições da prática do ato de polícia – Leis que praticamente esgotaram o assunto, sem nenhuma margem ao exercício da atividade regulamentar pelo Poder Executivo – Afronta ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes caracterizada (CE, art. 5.º) – Procedência.

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Eméritos Desembargadores:

 

         Cuida-se de ação movida pelo Prefeito Municipal de Ubatuba que visa à declaração de inconstitucionalidade das Leis n.os 3.260, de 30/11/2009 (‘Regulamenta a atividade de tatuagens de verão nas praias do município e transfere as licenças expedidas com base na Lei n.º 1.294/93, para a presente Lei’), 3.261, de 30/11/2009 (‘Altera e dá nova redação ao Art. 2.º da Lei n.º 2.232, de 9 de setembro de 2002, modificado pela Lei n.º 3.161, de 19 de dezembro de 2008, que dispõe sobre licença para portadores de necessidades especiais’) e 3.293, de 15/1/2010 (‘Altera e dá nova redação ao art. 2.º, renumera o parágrafo único criado pela Lei 3.162, de 19 de dezembro de 2008, como parágrafo 1.º e cria o parágrafo 2.º no art. 2.º, altera o art. 6.º e seu item I, cria os parágrafos 1.º a 8.º no art. 6.º, altera o item V e cria o item VI do art. 7.º da Lei 1680 de 19 de dezembro de 1997, que regulamenta a atividade de esportes náuticos no Município’).

                  Segundo a argumentação exposta na inicial, as leis em epígrafe seriam inconstitucionais porque a Câmara invadiu a esfera de atuação tipicamente administrativa do Prefeito, com a consequente violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes, sem prejuízo da inobservância do preceito constitucional que consagra a iniciativa reservada em matéria tributária, verificando-se, assim, a ofensa aos arts. 5.º e 144 da Carta Estadual.    

                   Ao despachar a inicial, o Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator José Roberto Bedran    concedeu liminar – ante a presença dos requisitos autorizadores do fumus boni juris e periculum in mora – para suspender a eficácia e a vigência das Leis n.os 3.260/2009, 3.261/2009 e 3.293/2010, até o final julgamento da presente ação direta de inconstitucionalidade. 

                   Citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Constituição Paulista, o Procurador Geral do Estado assinalou que a sua intervenção, na espécie, não é obrigatória, mas sim condicionada à existência de interesse estadual na preservação da norma atacada, ausente nesse caso.

                   Apesar de notificada, a Câmara não prestou informações no prazo regimental (fl. 53).

 

                               Em resumo, é o que consta nos autos.

 

                   Como se sabe, a atividade preponderante da Câmara é a legislativa, isto é, a edição de leis, enquanto que o Poder Executivo foi constitucionalmente encarregado da administração do Município, o que, em termos práticos, significa aplicar a lei aos casos concretos.

                   Por força do disposto no art. 37 da Constituição Federal, a administração pública em todos os níveis obedecerá ao princípio da legalidade, que significa a sua subordinação ao império da lei ou, consoante o abalizado magistério de HELY LOPES MEIRELLES (Cf. ‘Direito Administrativo Brasileiro’, Malheiros, São Paulo, 28.ª edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, 2003, pág. 86), ‘na administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza’.

                   Como o Município detém o status de ente federativo dotado de autonomia (CF, art. 18, ‘caput’), a Constituição outorgou-lhe competência para legislar sobre os assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (CF, art. 30, I e II).

                   Com relação a essa autonomia legislativa, é conveniente registrar que, em regra, a iniciativa das leis é geral ou concorrente, nos termos do art. 61, caput, da Carta Magna, mas há certos assuntos que foram especialmente confiados ao Executivo, como aqueles previstos no inciso II, ‘a’ a ‘f’, do referido artigo, e a ratio essendi para tanto é ‘o interesse preponderante da Administração Pública sobre certas matérias’ (Cf. JOSE AFONSO DA SILVA, ‘Processo Constitucional de Formação das Leis’, Malheiros, 2.ª edição, pág. 179).

                   Vistos esses aspectos de ordem geral, tem-se no caso sob exame que a Câmara Municipal de Ubatuba editou leis versando sobre matéria de interesse local, qual seja a regulamentação de atividades nos limites de seu território, decorrência do poder de polícia.

                   Na definição de HELY LOPES MEIRELLES (ob. cit., pág. 127), poder de polícia ‘é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado’.

                   Como o art. 5.º, II, da Constituição Federal, dispõe que ‘ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’, consagração do princípio da legalidade, é evidente que a restrição, pelo Poder Público, ao exercício de uma atividade particular só pode ser feita mediante lei e desde que, por óbvio, o interesse coletivo a justifique.

                   Assim é que, por meio de restrições impostas às atividades individuais que afetem a coletividade, cada cidadão transfere parcelas mínimas de seus direitos à comunidade e, por sua vez, o Estado lhe retribui em segurança, ordem, higiene, sossego, moralidade e outros benefícios públicos, propiciadores do conforto individual e o bem-estar geral; para efetivar essas restrições individuais em prol da coletividade, o Estado utiliza-se desse poder discricionário, que é o poder de polícia administrativa, mas, em se tratando de um poder tipicamente discricionário, a norma legal que o confere não minudeia o modo e as condições da prática do ato de polícia, aspectos esses os quais são confiados ao prudente critério do administrador público (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., pág. 131).

                   Pois bem, as Leis n.os 3.260/2009, 3.261/2009 e 3.293/2010, de iniciativa parlamentar, foram editadas com o propósito de disciplinar o exercício de atividades particulares nos limites territoriais do Município de Ubatuba, típica manifestação do poder de polícia, mas, olvidando-se de que este se trata de um poder discricionário, o legislador municipal foi muito além do que poderia, ao dispor pormenorizadamente sobre o modo e as condições da prática do ato de polícia, com usurpação de prerrogativa própria da função executiva e a consequente ofensa ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes, que vem expressamente consagrado no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo.

                   Com efeito, as leis municipais em comento trataram de aspectos concretos, v.g. a determinação do número de licenças que serão expedidas, a identificação dos locais em que desenvolvidas as atividades sob controle estatal, os critérios para a obtenção de licença, etc., sem margem para a atuação discricionária do Prefeito, portanto, em sentido contrário ao fundamento do poder de polícia, que – conforme visto – é poder tipicamente discricionário.

                   Nessa ordem de idéias, cumpre acrescentar que a concentração de poderes estatais no órgão legislativo, com o acúmulo de funções executivas, pode resultar no indesejado Estado legal, que ‘se relaciona con un concepto político referente a la organización fundamental de los poderes, concepto según el cual debe la autoridad administrativa, en todos los casos y respecto a todas las materias, subordinarse al órgano legislativo, en el sentido de que no podrá actuar sino em ejecución o por autorización de una ley’ (Cf. R. CARRÉ DE MALBERG, ‘Teoría general Del Estado’, FCE, p. 451), em contraposição ao Estado de Direito, consagrador da independência e harmonia entre os Poderes.

                   De resto, a alegação de ofensa à iniciativa reservada em matéria tributária deve ser repelida, porquanto o Excelso Pretório já se mostrou refratário a essa tese (RTJ 133/1044).

                   Assim, na espécie, como a Câmara usurpou atribuição do Prefeito, o Ministério Público requer a procedência da presente ação direta a fim de ver declarada a inconstitucionalidade das Leis n.os 3.260/2009, 3.261/2009 e 3.293/2010, do Município de Ubatuba, ante sua incompatibilidade com os arts. 5.º e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.   

 

                                   São Paulo, 16 de novembro de 2010.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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