Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº. 990.10.203402-0

Requerente: Prefeito Municipal de Bauru

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.584, de 21 de maio de 2008, de Bauru

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 5.584, de 21 de maio de 2008, de Bauru, que “proíbe novos pagamentos de pensões às viúvas de Prefeitos e Vereadores”.

2)      Remuneração na administração pública. Reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Executivo (art. 24, § 2º, n. 1 da Constituição Paulista). Emenda parlamentar que desfigura o projeto originário do Executivo.

3)      Revalidação de benefícios previdenciários (pensões para viúvas de ex-prefeitos e ex-vereadores) que foram revogados tacitamente a partir da nova ordem constitucional. Criação de benefício sem a correspondente fonte de custeio total (art. 218 da Constituição Paulista). Ausência de interesse público para a concessão do benefício (art. 128 da Constituição Paulista).

4)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Bauru, tendo como alvo a Lei Municipal nº 5.584, de 21 de maio de 2008, de Bauru, que, conforme respectiva rubrica, “proíbe novos pagamentos de pensões às viúvas de Prefeitos e Vereadores”.

Sustenta o requerente que a emenda parlamentar que alterou substancialmente o projeto de lei violou a reserva de iniciativa, bem como que foi desrespeitada a determinação constitucional de que benefícios previdenciários devem contar com específica fonte de receita para seu custeio.

Foi indeferido o pedido de liminar (17/v).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 24, 26/28).

A Câmara Municipal apresentou informações (fls. 30 e ss.).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 5.584, de 21 de maio de 2008, de Bauru, que, conforme respectiva rubrica, “proíbe novos pagamentos de pensões às viúvas de Prefeitos e Vereadores”, tem a seguinte redação (fls. 63):

“(...)

Art. 1º. Mantidas as atuais pensões, ficam proibidas novas concessões de pensões às viúvas de Prefeitos e Vereadores.

Art. 2º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.

(...)”

É relevante observar, entretanto, que o projeto de lei nº 50/2007 de autoria do Chefe do Executivo municipal, que deu ensejo à lei impugnada, foi apresentado originariamente com a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Ficam revogadas as Leis nº 2471, de 26 de dezembro de 1983, nº 2078, de 29 de junho de 1978 e nº 2280, de 08 de abril de 1981.

Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

(...)”

Pretendia o Chefe do Executivo, ao apresentar o referido projeto de lei, promover a revogação dos diplomas que, por serem anteriores à atual ordem constitucional (Constituição da República de 1988 e Constituição do Estado de 1989), não podiam ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade, nada obstante previssem benefícios previdenciários (pensões para viúvas de ex-prefeitos e de ex-vereadores, cf. cópias das referidas leis – fls. 35/39) sem indicarem a respectiva fonte de custeio, o que se mostra incompatível com parâmetros constitucionais aplicáveis à espécie.

Ocorre que, durante a tramitação legislativa, foi apresentada e aprovada emenda modificativa, fruto de iniciativa parlamentar (fls. 53), conferindo ao texto final, que se converteu em lei, a redação antes transcrita.

Em síntese, o Prefeito Municipal apresentou projeto de lei destinado a eliminar normas anteriores à Constituição que são com ela incompatíveis, mas em razão de emenda parlamentar, o resultado do processo legislativo foi a edição de lei inconstitucional.

É verdade, a título de esclarecimento, que sequer seria necessária a edição de lei revogadora, visto que as leis anteriores à atual ordem constitucional, por serem incompatíveis, foram tacitamente revogadas.

Entretanto, a iniciativa do Executivo destinou-se à eliminação de dúvidas quanto à vigência ou não das leis mais antigas, sendo, sob tal perspectiva, compreensível.

Em razão da emenda parlamentar, o resultado, de fato, foi que: (a) a Lei nº 5.584, de 2008, vedou a concessão de novos benefícios; (b) a Lei nº 5.584, contudo, em preceito manifestamente inconstitucional, manteve (ou seja, reinstituiu) benefícios previdenciários que foram tacitamente revogados com a nova ordem instituída pela Constituição da República de 1988, e pela Constituição Paulista de 1989.

Frise-se que, nada obstante a dicção legal tenha sido no sentido de que ficariam “mantidas as atuais pensões”, ela teve o condão, ao menos do ponto de vista normativo, de instituir ex novo tais benefícios, dada sua anterior revogação tácita.

Assim, a inconstitucionalidade decorre de duas razões: (a) primeiro, porque a emenda modificativa alterou de modo substancial o projeto de iniciativa reservada, ferindo, portanto, a reserva de iniciativa do Poder Executivo para projeto de lei tratando de remuneração na Administração Pública (art. 24, § 2º, n. 1 da Constituição do Estado); (b) segundo, na medida em que reinstituiu (nada obstante tenha utilizado a figura da “manutenção”), benefícios previdenciários inconstitucionais, ou seja, pensões concedidas a viúvas de ex-prefeitos e ex-vereadores, sem a existência da correspondente fonte de custeio total (art. 218 da Constituição do Estado).

Quanto ao primeiro aspecto (reserva de iniciativa relativamente à remuneração no âmbito da administração pública), não há dúvida quanto à exclusiva legitimidade do Chefe do Executivo para a apresentação de projeto de lei nessa matéria (art. 24, § 2º, n. 1).

Assim, embora sejam possíveis emendas parlamentares, elas não podem desfigurar a proposta originária, sob pena de violação indireta à reserva de iniciativa.

Nesse sentido já se posicionou o Col. STF, em precedentes que, mutatis mutandis são aplicáveis à espécie em exame. Confira-se:

“(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Reserva de iniciativa. Aumento de remuneração de servidores. Perdão por falta ao trabalho. Inconstitucionalidade. Lei 1.115/1988 do Estado de Santa Catarina. Projeto de lei de iniciativa do governador emendado pela Assembleia Legislativa. Fere o art. 61, § 1º, II, a, da CF de 1988 emenda parlamentar que disponha sobre aumento de remuneração de servidores públicos estaduais. Precedentes. (ADI 13, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 17-9-2007, Plenário, DJ de 28-9-2007.)

(...)

A iniciativa de projetos de lei que disponham sobre vantagem pessoal concedida a servidores públicos cabe privativamente ao chefe do Poder Executivo. Precedentes. Inviabilidade de emendas que impliquem aumento de despesas a projetos de lei de iniciativa do chefe do Poder Executivo. (ADI 1.729, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 28-6-2006, Plenário, DJ de 2-2-2007.)

(...)”

Mas não é só.

Como consignamos anteriormente, a legislação anterior (Leis nº 2471, de 26 de dezembro de 1983, nº 2078, de 29 de junho de 1978 e nº 2280, de 08 de abril de 1981), que criou benefícios previdenciários (pensões para viúvas de ex-prefeitos e ex-vereadores) foi tacitamente revogada com a nova ordem constitucional.

A Lei Municipal nº 5.584, de 21 de maio de 2008, de Bauru, a pretexto de manter tais benefícios, na verdade promoveu sua revalidação ou instituição ex novo, apresentando-se como materialmente inconstitucional.

A solução contida no ato normativo impugnado violou preceito constitucional expresso, segundo o qual “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total” (art. 195 § 5º da Constituição Federal, aplicável por força dos art. 218 e 144 da Constituição Estadual).

Pacífico é o entendimento a respeito da matéria, no Col. STF, conforme inúmeros precedentes, aqui indicados a título de exemplificação: RE 485.940, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 9-2-07, DJ de 20-4-07; RE 419.954 e RE 414.741, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-2-07, DJ de 23-3-07; RE 492.338, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 9-2-07, DJ de 30-3-07; ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-06, DJ de 17-11-06; entre outros.

A proibição de criação, majoração, ou extensão de benefício previdenciário sem a correspondente fonte de custeio total também tem sido afirmada por esse Col. Tribunal de Justiça de São Paulo, como se infere dos seguintes julgados:

“(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 1703, de 10 de dezembro de 1990, que ‘Dispõe sobre a complementação de aposentadoria e pensão de servidores aposentados por tempo de serviço ou idade, das pensionistas e viúvas de ex-servidores aposentados ou falecidos enquanto na ativa e dá outras providências’. Criação de previdência complementar sem a definição de sua fonte de custeio integral. Vulneração dos artigos 144 e 218 da Constituição Estadual, pela ausência de estrita observância ao disposto no art. 195, § 5º, da Constituição Federal. Pedido julgado procedente’ (TJSP, ADI 153.965-0/5, rel. des. Oscarlino Moeller, j. 26.03.08, v.u.).

(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 2969/93 do Município de Birigui, que dispõe sobre a denúncia de convênio firmado entre a Câmara Municipal de Birigui e o Instituto de Previdência do Estado de São Paulo e dá providências correlatas. Ofensa aos art. 111, 144 e 218 da Carta Paulista. Necessidade de prévia e correspondente fonte de custeio para a criação, majoração ou extensão de benefício previdenciário. Inobservância do princípio da impessoalidade, diante da obtenção de vantagens de um grupo minoritário. Ação julgada procedente. (TJSP, ADI 151.936-0/9-00, rel. des. Penteado Navarro, j. 20.02.08, v.u.).

(...)”

Nesse mesmo sentido, ainda: ADI nº 154.602-0/7, j. 10.09.2008, rel. des. Sousa Lima; ADI nº 158.764-0/4, rel. des. A. C. Mathias Coltro, j. 16.07.2008.

E nem seria possível considerar como fonte de custeio suficiente, pura e simplesmente, a previsão legal de que o pagamento do benefício será feito com recursos constantes de dotação orçamentária própria. Isso significaria, na prática, carrear todo o ônus financeiro ao erário municipal. Este acabaria sendo o único a financiar o pagamento dos benefícios.

Deve-se levar em conta que a Constituição Federal estabelece, a propósito, a necessidade de respeito à diversidade da base de financiamento (art. 194 VI da CF), bem como a participação, concomitante, de empregador e trabalhador no custeio da previdência (art. 195, I e II da CF). Ademais, é impossível desconsiderar, finalmente, o caráter contributivo do sistema previdenciário (art. 201 caput da CF).

A exigência de fonte de custeio total deve ser entendida como fonte de custeio que satisfaça os pressupostos do sistema estabelecido na Constituição Federal: (a) diversidade de base de financiamento; (b) caráter contributivo; (c) e participação de empregador e trabalhadores.

Assim, criar (ou manter) benefício por meio de lei, sem observar os parâmetros acima, que se resumem na necessidade de previsão de fonte de custeio total, significa violar frontalmente dispositivos constitucionais aplicáveis ao tema, em especial o art. 195, § 5º da CR/88, aplicável à hipótese por força dos art. 144 e 218 da Constituição Paulista.

Ademais, ao conceder (a pretexto de manter) os benefícios que discrimina, sem a previsão da correspondente fonte de custeio total, o legislador feriu diretamente o art. 128 da Constituição do Estado, pelo qual “as vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”.

Note-se que o ato normativo impugnado reinstituiu benefício que não encontra amparo, de forma alguma, no interesse público e nas exigências do serviço.

O único aspecto que o legislador municipal levou em consideração, na hipótese em exame, foi a situação financeira das beneficiárias (ou beneficiários) da pensão.

Não há, sequer superficialmente, nenhum dado no ato normativo em exame que indique a possibilidade de existência de qualquer interesse público, ou exigência decorrente do serviço, que tenha sido atendida em função da instituição do benefício.

Diante de todo o exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.584, de 21 de maio de 2008, de Bauru.

São Paulo, 21 de outubro de 2010.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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