Autos nº 990.10.218985-6
Autor: Prefeito Municipal
de Guarulhos
Objeto de impugnação: §§ 1º e 2º do art. 3º e art. 12 e seus parágrafos da Lei Municipal
n. 6.628, de 17 de março de 2010.
Ementa:
1) §§ 1º e 2º do art. 3º e art. 12
e seus parágrafos da Lei Municipal n. 6.628, de 17 de março de 2010, de
iniciativa parlamentar, que institui o programa municipal de fomento ao teatro
e à dança para a cidade de Guarulhos;
2) Inconstitucionalidade formal subjetiva
pelo vício de iniciativa e pela ofensa ao Princípio da Separação e da Harmonia
entre os Poderes (art. 5º, caput, da
Constituição do Estado);
3) Parecer pela procedência.
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Colendo
Órgão Especial
O
Prefeito Municipal de Guarulhos ingressou com a presente ação direta
objetivando a declaração de inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º do art. 3º e
art. 12 e seus parágrafos da Lei Municipal n. 6.628, de 17 de março de 2010, de
iniciativa parlamentar, que institui o programa municipal de fomento ao teatro
e à dança para a cidade de Guarulhos.
O
autor da ação alega a inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, em
face dos incisos II e XIV do art. 47 e do art. 144 da Constituição do Estado de
São Paulo. Alega, ainda, inconstitucionalidade material por ofensa ao princípio
da separação de poderes. Nesse caso, haveria afronta ao art. 5º, incisos II e
XIX do art. 47 e art. 144 da Constituição Estadual.
Ao
despachar a inicial (fls. 55), sua Excelência, o Desembargador Relator, Dr. ARMANDO
TOLEDO, deferiu o pedido de suspensão liminar, por entender presentes os
requisitos legais.
Notificada,
a Câmara Municipal prestou informações (fls. 69/77) e sustentou a
constitucionalidade da lei.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 65/67).
É
o breve relato.
O
pedido de declaração de inconstitucionalidade é procedente e, no nosso
entender, deve atingir a Lei n. 6.628, de 17 de março de 2010, uma vez que a lei
municipal ora questionada, como exposto na inicial, invade esfera de
competência privativa do Prefeito e, em conseqüência, é inconstitucional.
À
evidência que a lei municipal questionada, embora contenha proposta louvável, invade
competência privativa do chefe do Poder Executivo municipal.
Dispor,
por exemplo, sobre a instituição de programa municipal, atribuindo obrigações
ao Chefe do Poder Executivo e aos órgãos municipais, é matéria referente à
administração municipal.
Assim,
apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para deflagrar processo legislativo
para aprovação de lei com o conteúdo da que se pretende ver declarada como
inconstitucional, sob pena de indevida interferência de um Poder sobre o outro.
Postulado
básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes,
constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de
observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma
Carta Estadual, e que assim dispõe:
Artigo 5º.
São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário.
Este
dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na
idéia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes
que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas
de um sobre o outro.
Todavia,
o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois,
observa a doutrina que “o princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou
distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto,
entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das
respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções
principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com
os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que,
teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles
Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991, p. 585).
Como
conseqüência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual,
perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder
competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder
Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como,
por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento.
Em
essência, a separação ou divisão de poderes “consiste um confiar cada uma das
funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos
diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos:
(a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no
exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que,
além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente
independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José
Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros,
2006, 2ª ed., p. 44).
Também
por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos
mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e
disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder
Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina: “É a esse arranjo,
mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial
de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os
ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios
recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances),
tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers) (...)
A
distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a
determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através
da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação,
isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em
funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão
admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer.
Não
é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas
exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que
a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua
natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional,
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
Assim, se em princípio a competência normativa
é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de
natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de
terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à
iniciativa legislativa do Poder Executivo.
Esse
desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra
do art. 144 da Constituição Estadual – permite assentar as seguintes
conclusões: a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser
exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada
competência; b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa
legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; c) há
matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da
legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de
reserva de norma do Poder Executivo.
A
propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa
legislativa: “Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus
vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e
privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem
reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as
que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal
Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).
Portanto,
irradia-se do princípio da separação de poderes a própria técnica jurídica de
freios e contrapesos com a previsão de iniciativa legislativa reservada ao
Chefe do Poder Executivo em matéria administrativa.
Posto
isso, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta
a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 6.628,
de 17 de março de 2010, do município de Guarulhos.
São Paulo, 13 de setembro de
2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
/md