Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.218994-5

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Objeto: Lei nº 6.606, de 17 de março de 2010, do Município de Guarulhos

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 6.606, de 17 de março de 2010, do Município de Guarulhos, que “cria o programa de contratação de pessoas em situação de rua pelas empresas vencedoras de licitação pública no Município de Guarulhos”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui programa e gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 25; 47, II e XIV; 144 e 176, I, da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo por objeto a Lei nº 6.606, de 17 de março de 2010, que “cria o programa de contratação de pessoas em situação de rua pelas empresas vencedoras de licitação pública no Município de Guarulhos”.

O autor noticia que o projeto iniciou-se na Câmara Municipal, em que pese caber exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que criam atribuições para os órgãos da administração pública. Explica, também, que o ato normativo enseja despesas não cobertas pelo orçamento. Por essas razões, indica como violados os arts. 5º, 25 e 176, I, da Carta Paulista.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 51/56).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 71/79, em defesa da lei impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 67/69).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada tem o seguinte teor:

LEI Nº 6.606, DE 17 DE MARÇO DE 2010.

Autoria: Vereador Jonas Dias.

CRIA O PROGRAMA DE CONTRATAÇÃO DE PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA PELAS EMPRESAS VENCEDORAS DE LICITAÇÃO PÚBLICA NO MUNICÍPIO DE GUARULHOS.

O Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos, Senhor ALAN NETO, nos termos dos §§ 7º e 9º do artigo 44 da Lei Orgânica do Município de Guarulhos, promulgada em 05 de abril de 1990, FAZ SABER que, em decorrência do silêncio do Senhor Chefe do Executivo em relação ao comunicado de rejeição, na Sessão Ordinária realizada em 09 de março de 2010, do Veto Parcial aposto ao Autógrafo nº 130/09 referente ao Substitutivo nº 02 apresentado pelo próprio autor ao Projeto de Lei nº 105/09, de autoria da Vereador JONAS DIAS, promulga a seguinte Lei:

Art. 1º Os §§ 1º e 2º do art. 1º da Lei nº 6.606, de 17 de dezembro de 2009, passam a ter as seguintes redações:

“§ 1º Na contratação de trabalhadores em situação de rua o percentual não pode ser inferior a 2% (dois por cento) do pessoal contratado.

§ 2° Será garantida a contratação de pelo menos 1 (uma) pessoa em situação de rua quando o percentual for inferior a uma vaga.”

Art. 2º O art. 2º da Lei nº 6.606/09, passa a ter a seguinte redação:

“Art. 2º O Executivo Municipal, através dos órgãos competentes, será responsável pela seleção dos candidatos às vagas, a partir de cadastro próprio e único com base em informações oficiais e de entidades com atuação no setor.

Parágrafo único. As associações deverão estar devidamente registradas no Conselho Municipal de Assistência Social nos termos da legislação vigente.”

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Câmara Municipal de Guarulhos, 17 de março de 2010.

ALAN NETO

Dita lei, segundo penso, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara institui um programa, buscando assegurar a contratação de “trabalhadores em situação de rua”, e, por meio dele, acaba criando obrigações para a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Com efeito, a criação de programas e a forma de sua execução são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço público.

Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo sobre o tema é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, conseqüentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade de estabelecer o programa e fixar as regras para a sua prestação. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Também procede o argumento de que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

Sob esse aspecto, é de se notar que a instituição do programa gera despesa para o Município que não está coberta pela lei orçamentária, o que se incompatibiliza com as disposições dos artigos 25 e 176, I, da Constituição do Estado.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infrigem esses comandos:

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 6.606, de 17 de março de 2010, do Município de Guarulhos, que “cria o programa de contratação de pessoas em situação de rua pelas empresas vencedoras de licitação pública no Município de Guarulhos”.

 

São Paulo, 16 de setembro de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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