Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 990.10.227418-7

Requerente: Prefeito do Município de Catanduva

Objeto: Lei nº 4.927, de 08 de março de 2010, do Município de Catanduva

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito.  Lei nº 4.927, de 08 de março de 2010, do Município de Catanduva. Criação de "PROGRAMAS ORIENTADOS DE ATIVIDADES FÍSICAS NAS UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE E DEMAIS POSTOS DE SAÚDE DO MUNICÍPIO".   Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 25; e 144 da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Catanduva, tendo por objeto a Lei nº 4.927, de 08 de março de 2010, daquele Município, que "AUTORIZA A INSTITUIÇÃO DE PROGRAMAS ORIENTADOS DE ATIVIDADES FÍSICAS NAS UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE E DEMAIS POSTOS DE SAÚDE DO MUNICÍPIO".

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que a lei em questão cria obrigações para a administração pública, havendo usurpação por parte do Poder Legislativo, de atribuições pertinentes a atividades próprias do Poder Executivo; além de criar aumento de despesas à administração pública, sem indicação dos recursos disponíveis próprios para atender aos novos encargos, divisando ofensa ao art. 25 da Constituição do Estado.

Aponta inconstitucionalidade face aos artigos 25 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 19).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 35/37, em defesa da lei impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 31/33).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada do Município de Catanduva, que gera despesas para poder público, assim dispõe:

“Artigo 1º – Fica autorizado o Poder Executivo a criar e a instalar programas de atividades físicas nas Unidades Básicas de Saúde e demais postos de saúde do Município de Catanduva.

Art. 2º - As atividades deverão seguir critérios específicos para cada caso clínico.

Art. 3º - As atividades deverão ser orientadas por profissionais da área de Educação Física, os quais deverão trabalhar em consonância com os demais profissionais da área da saúde.

Art. 4º - Esta lei será regulamentada pelo Poder Executivo, no prazo de 90 dias.

Art. 5º - As despesas decorrentes desta lei correrão por conta de dotação orçamentária própria, suplementadas se necessário."

Dita lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara criou um programa de diagnóstico de dislexia, na rede municipal de ensino, onerando, desta forma, a Administração.   Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, conseqüentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25, da Constituição Bandeirante.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infrigem esses comandos:

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui  um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Mana Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIN 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.927, de 08 de março de 2010, do Município de Catanduva.

São Paulo, 14 de setembro de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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