Parecer
Autos nº. 990.10.243584-9
Requerente: Prefeito Municipal da Estância
Balneária de Caraguatatuba
Objeto:
Inconstitucionalidade da Lei n. 1.742, de 23 de setembro de 2009, da Estância
Balneária de Caraguatatuba
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Inconstitucionalidade da Lei n. 1.742, de 23 de setembro de 2009, da Estância Balneária de Caraguatatuba, que institui o Fundo Soberano de reserva do Município de Caraguatatuba.
2) Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Criação de despesas sem fonte específica de receita (art. 25 da Constituição Paulista).
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Caraguatatuba, tendo como alvo a inconstitucionalidade da Lei n. 1.742, de 23 de setembro de 2009, da Estância Balneária de Caraguatatuba, que institui o Fundo Soberano de reserva do Município de Caraguatatuba.
Sustenta o autor que o ato normativo impugnado, oriundo de iniciativa parlamentar, violou a regra da separação de poderes, por interferir diretamente na gestão das atividades administrativas do Município. Afirma que o texto legislativo combatido ofende o art. 176, incisos I e IV, da Constituição do Estado de São Paulo, uma vez que dá início a projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual, bem como vincula a receita orçamentária do fundo. Apontou-se, ainda, ofensa aos arts. 5º, 24, §2º, 25, 47, incisos II e XIV, 111 e 144 da Carta Paulista, bem como dos arts. 30, §1º, II, “a” e “c” e 39, incisos I, III e IV da Lei Orgânica do Município de Caraguatatuba.
Foi deferida a liminar, determinando-se a suspensão do dispositivo legal impugnado (fls. 37/44).
Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa para o ato normativo impugnado (fls. 58/60).
A Câmara Municipal não prestou informações (cf. certidão de fls. 62).
É o relato do essencial.
A Lei n. 1.742, de 23 de setembro de 2009, da Estância Balneária de Caraguatatuba, instituiu o Fundo Soberano de reserva do Município para utilização em ações de combate em casos de eventos desastrosos naturais ou provocados pela ação humana de que resultem prejuízo socioeconômico e ambiental considerável e cujo enfrentamento seja de caráter imediato. Segundo prevê o art. 2º de referido diploma, o “Fundo Soberano de Reserva será constituído através de conta especial a ser aberta para este fim especifico, à qual serão repassados até o vigésimo quinto dia do mês subsequente, 10 (dez por cento) do que for recolhido aos cofres municipais a titulo de royalties de qualquer natureza”.
Registre-se que, à luz do art. 4º da Lei n. 1.742, de 23 de setembro de 2009, o Fundo de Reserva do Município deliberará soberanamente sobre a oportunidade de liberação de recursos no combate a eventos desastrosos, os valores a serem despendidos de uma só vez ou em parcelas, bem assim sobre a aplicação de disponibilidades no mercado de capitais, desde que a aplicação permita a reconstituição dos recursos ao Fundo a qualquer momento.
Veja-se que Lei n. 1.742, de 23 de setembro de 2009, expressamente atribui ao Chefe do Poder Executivo providenciar local e instalações ideais para o funcionamento do Fundo Soberano, bem assim se necessário, destinar recursos humanos que bastem às suas necessidades (art. 8º).
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público.
De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
O
diploma impugnado, na prática, invadiu a
esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a
execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de
administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa:
a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa,
convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos,
individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos
segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência
dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local.
Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções
é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.
Esse
E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais
de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo
na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir
exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando
Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008;
ADI 12.345-0 - São
Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes.
Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação.
Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.
Não bastasse isso, a lei impugnada provocará, evidentemente, realização de despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes de receita para tanto.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo. Nesse sentido, apenas a título de exemplificação, confiram-se os julgados a seguir indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..
Diante
do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência
da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade
da Lei n. 1.742, de 23 de setembro de 2009, da Estância Balneária de
Caraguatatuba.
São Paulo, 18 de novembro de 2010.
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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