Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº. 990.10.243671-3

Requerente: Prefeito do Município de São José do Rio Preto

Objeto: Lei nº 10.623, de 30 de abril de 2010, do Município de São José do Rio Preto

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 10.623/10, do Município de São José do Rio Preto, que “institui a separação de resíduos recicláveis descartados pelos órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, na fonte geradora, desde que a destinação seja às associações e cooperativas dos catadores de materiais recicláveis e dá outras providências”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui programa e gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 25; 47, II e XIV; 144 e 176, I, da CE. Parecer pela procedência da ação.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo por objeto a Lei nº 10.623/10, do mesmo Município, que “institui a separação de resíduos recicláveis descartados pelos órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, na fonte geradora, desde que a destinação seja às associações e cooperativas dos catadores de materiais recicláveis e dá outras providências”.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que cabe exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que criem atribuições para os órgãos da administração pública, divisando ofensa princípio da separação dos poderes, previsto no art. 5º da Constituição do Estado.

Cita, ainda, que as providências determinadas pelo ato normativo geram despesas para as quais não foi indicada a fonte de custeio, havendo, sob esse aspecto, ofensa ao art. 25 da Carta Paulista.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 26).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações sobre o processo legislativo (fls. 40 e ss.).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 36/38).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada decorre do PL nº 201/09, de autoria do Vereador OSCARZINHO PIMENTEL.  Por ela se determina a separação dos resíduos recicláveis descartados pela Administração pública municipal e sua destinação a associações e cooperativas de catadores (art. 1º e 2º).

O ato normativo estabelece requisitos para a habilitação dos catadores (art. 3º) e a forma de comprová-los (art. 4º) perante a Comissão para a Coleta Seletiva Solidária, órgão composto por três servidores designados (art. 5º), sobre o qual recaem outras atribuições (art. 4º, pár. único; art. 5º, § 2º; art. 6º).

Embora louvável a iniciativa, a lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara institui programa para a destinação dos resíduos recicláveis, e, ao fazê-lo, cria obrigações para a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Não há dúvida, porém, que a forma de prestação de serviços públicos é matéria de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação e funcionamento de serviços públicos é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, conseqüentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Desse modo, o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade de criar o programa em análise e fixar as regras para a sua execução, inclusive criando órgão na Administração (no caso, a comissão formada por servidores). Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

Sob esse aspecto, é de se notar que a instituição do programa gera despesa para o Município que não está coberta pela lei orçamentária, o que se incompatibiliza com as disposições dos artigos 25 e 176, I, da Constituição do Estado.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infrigem esses comandos:

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 10.623/10, do Município de São José do Rio Preto, que “institui a separação de resíduos recicláveis descartados pelos órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, na fonte geradora, desde que a destinação seja às associações e cooperativas dos catadores de materiais recicláveis e dá outras providências.

 

São Paulo, 16 de agosto de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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