Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n.º 990.10.243880-5

Autor: Prefeito Municipal de Santa Cruz do Rio Pardo

Objeto de impugnação: Lei n.º 2.435, de 12 de maio de 2010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo.

 

 

 

 

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei n.º 2.435, de 12/5/2010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo, de origem parlamentar, que cria o “Programa Cidadão Amigo do Verde”, por meio do qual os munícipes são autorizados a assumir a manutenção de praças e áreas públicas – Violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes – A Câmara pode legislar genérica e abstratamente sobre a colaboração do particular com o Poder Público, sem, contudo, impor ao Prefeito a implantação de ‘programa de governo’ que, em última análise, visa a concretizar essa colaboração – Configurada a afronta aos arts. 5.º, 37, 47, II, e 144 da Carta Estadual – Ação procedente.

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Eméritos Desembargadores:

 

         Cuida-se de ação movida pelo Prefeito Municipal de Santa Cruz do Rio Pardo que visa à declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 2.435, de 12/5/2010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo, originária do PL n.º 44/2010, de iniciativa parlamentar, que ‘Dispõe sobre a criação do Programa Cidadão Amigo do Verde’, cuja redação é a seguinte:

 

 

                       

 

 

 

         Segundo consta na inicial, a Câmara invadiu a esfera de atribuições privativas do Prefeito, no que tange ao planejamento e gerenciamento dos serviços públicos municipais, acarretando, tal iniciativa, a contrariedade dos arts. 5.º, 24, § 2.º, 2, 25, 37, 47, inciso II, 144, 174, incisos I a III, e 176, inciso I, da Constituição do Estado de São Paulo.

         No seu despacho inicial, o Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator BORIS KAUFFMANN deferiu a liminar para suspender – com efeito ex nunc – a eficácia da Lei n.º 2.435/2010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo, até o final julgamento desta ação.

         Citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Carta Paulista, o Procurador-Geral do Estado defendeu a exegese que condiciona sua intervenção nos processos de fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação da lei impugnada, ausente neste caso (fls. 105/107).

         Notificada, a Câmara de Vereadores de Santa Cruz do Rio Pardo, representada por seu Presidente, prestou informações no prazo regimental, aduzindo, em contraposição ao pedido, que: a matéria disciplinada no ato legislativo em comento é de competência municipal e não há reserva de iniciativa em favor do Executivo; a Câmara é competente para dispor sobre todos os assuntos de interesse local, consoante o disposto no art. 30, inciso I, da Constituição Federal, e, desse modo, a iniciativa em análise é plenamente válida.

                        Em resumo, é o que consta nos autos.

         A ação é procedente, malgrado os fundamentos invocados nas informações da Câmara.              

         Com efeito, a lei em exame propôs-se a regulamentar aspectos concernentes à colaboração do particular com o Poder Público, por meio de programa que autoriza os munícipes a procederem à manutenção de praças e áreas públicas na cidade de Santa Cruz do Rio Pardo.

         É certo que a gestão de bens públicos e a direção, coordenação, planejamento e execução dos serviços públicos competem exclusivamente ao Prefeito, com a colaboração dos órgãos públicos a ele subordinados, mas, ‘prima facie’, nada impede que o particular colabore com o Poder Público na manutenção de praças e áreas públicas, nos moldes disciplinados na lei municipal em exame, o que não implica, em absoluto, na mudança de destinação desses bens, que continuam afetados a uma finalidade de interesse público.

         Pois bem, na vigente Constituição não há nenhuma cláusula de reserva de iniciativa em prol do Executivo acerca dessa matéria, o que torna insubsistente a alegação nesse sentido posta na inicial, com o prevalecimento, na espécie, da competência legislativa plena da Câmara para dispor sobre assunto cujo interesse é predominantemente local.

         Na espécie, porém, o problema reside no fato de a Câmara não haver se limitado a disciplinar a colaboração do particular com o Poder Público, indo muito além do permitido, ao instituir o programa “Cidadão Amigo do Verde”, que verdadeiramente impõe ao Prefeito uma prática administrativa, sem respeitar a independência e harmonia entre os Poderes.

         A prerrogativa de contar com a colaboração do particular, na manutenção de bens públicos, não pode ser subtraída do Prefeito, a quem compete a direção superior da administração municipal; decorre, daí, que a Câmara invadiu a esfera de atribuições próprias da função executiva, ao instituir programa de governo contra a vontade de quem de direito.

         Como se sabe, a função predominante da Câmara é a normativa, mediante a edição de normas gerais e abstratas de conduta, cuja observância é compulsória. Ao Executivo, por sua vez, compete a aplicação da lei aprovada pela Câmara ao caso concreto, isto é, verificar se a hipótese abstratamente descrita em lei amolda-se ao plano da realidade.

         Nesse contexto, a Câmara pode regulamentar a colaboração dos particulares com o Poder Público, o que decorre do exercício legítimo de sua função normativa, mas não pode impor a implantação de programa criado com esse propósito, porquanto a opção política de transferir ou não a manutenção de praças e áreas públicas ao particular, e avaliar o momento mais adequado de fazê-lo, será sempre do Prefeito, que, no caso em análise, teve subtraída essa prerrogativa, em detrimento da independência e harmonia entre os Poderes.

         Desse modo, não assiste nenhuma razão à Câmara Municipal de Santa Cruz do Rio Pardo ao reclamar que vem sendo tolhida no exercício de sua função normativa, visto que, na realidade, o que esse Egrégio Tribunal de Justiça tem coibido – na condição de tutor da ordem constitucional estadual (CF, art. 125, § 2.º) – é o indisfarçável propósito de administrar o Município por meio de leis, num autêntico ‘Estado Legal’, em contraposição ao Estado Democrático de Direito, que consagra a separação de funções com o fito de impedir o arbítrio estatal mediante a concentração de poderes num único órgão ou agente.

         Por outro lado, deve ser afastada a alegação de afronta dos arts. 24, § 2.º, 2, 25, 174, I a III, e 176, I, da Carta Estadual, pois o problema de inconstitucionalidade aqui apontado nada tem a ver com inobservância da regra que instituiu a reserva de iniciativa, nem com o aumento da despesa pública ou inobservância das disposições orçamentárias vigentes.

         Especificamente quanto ao art. 25, que é muito citado nas ações dessa natureza, é bem de ver que a sua correta exegese desautoriza a conclusão de que a Câmara não pode aprovar projeto de lei que implique na criação ou aumento de despesa pública, à medida que a norma em comento proíbe apenas a sanção, ato que é privativo do Executivo, detentor do poder político de sanção ou veto, sem vincular o Parlamento, que tem o poder de rejeitar o veto e, inclusive, de autorizar a realização de despesas não previstas no orçamento.  

         Em suma, a Câmara pode legislar geral e abstratamente sobre a colaboração do particular com o Poder Público; mas, se desejar o auxílio do particular na manutenção de parques e áreas públicas –, desde que tal iniciativa não decorra de imposição legal, o que não tem respaldo jurídico-constitucional –, o Prefeito deverá aplicar a lei que rege o assunto, em obediência ao princípio da legalidade, que deve pautar toda atuação administrativa.

         Assim, feitas essas considerações, o parecer é pela procedência da presente ação direta de inconstitucionalidade, visto que a Lei n.º 2.435/2010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo, é contrária aos arts. 5.º, 37, 47, II, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

           

                                São Paulo, 22 de novembro de 2010.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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