Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 990.10.246607-8

Requerente: Prefeito do Município de Andradina

Objeto: Lei nº 2.601, de 30 de abril de 2.010, do Município de Andradina

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito.  Lei nº 2.601, de 30 de abril de 2.010, do Município de Andradina. Criação do Programa de diagnóstico Precoce do Diabetes e Anemia Infantil em toda a Rede Municipal de Ensino na cidade de Andradina. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 25; e 144 da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Andradina, tendo por objeto a Lei nº 2.601, de 30 de abril de 2.010, daquele Município, que “dispõe sobre a criação do Programa de Diagnóstico Precoce do Diabetes e Anemia Infantil em toda a Rede Municipal de Ensino na Cidade de Andradina e dá outras providências”.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que a lei em questão cria obrigações para a administração pública, havendo usurpação por parte do Poder Legislativo de atribuições pertinentes a atividades próprias do Poder Executivo e aponta transgressão aos art. 40, incs. I e IV, da Lei Orgânica Municipal e 24,§2º, itens 1 e 4 da Constituição Estadual.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 48 e vº).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações                       (fls. 51/54).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 91/93).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada do Município de Andradina assim dispõe:

“Artigo 1º – Fica criado, no âmbito do Município de Andradina, o “Programa de Diagnóstico Precoce do Diabetes e Anemia Infantil”, a ser desenvolvido, anualmente, em todos os alunos matriculados na  rede municipal de ensino, nas creches e outros estabelecimentos que recebem merenda escolar no Município.

Art. 2º - O programa será realizado, desenvolvido e acompanhado por técnicos ligados às áreas municipais de saúde e educação.

Art. 3º - Fica o Poder Executivo autorizado a firmar convênios ou fazer parcerias com órgãos federais, estaduais, municipais e privados, para a realização dos exames necessários à constatação da anemia e do diabetes.

Parágrafo único. Os exames referidos no caput deste artigo serão realizados anualmente, de preferência no primeiro mês do ano letivo, para a detecção dos portadores de diabetes e anemia.

Art. 4º - O Poder Executivo elaborará, através do órgão competente, um cardápio especial para servir na merenda dos alunos referidos no art. 1º, que apresentarem diabetes e anemia infantil.

Art. 5º - Esta Lei será regulamentada pelo Poder Executivo no prazo de 60 (sessenta) dias após sua publicação.

Art. 6º - As despesas decorrentes com a execução da presente Lei correrão por conta de verbas próprias, suplementadas se necessário.

Art. 7º - Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

 

Dita lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara criou um programa de prevenção ao diabetes e anemia infantil, onerando, desta forma, a Administração.   Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25, da Constituição Bandeirante.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infrigem esses comandos:

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.601, de 30 de abril de 2.010, do Município de Andradina, que “dispõe sobre a criação do Programa de Diagnóstico Precoce do Diabetes e Anemia Infantil em toda a Rede Municipal de Ensino na Cidade de Andradina e dá outras providências”.

São Paulo, 24 de novembro de 2010.

 

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

vlcb