Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.247357-0

Requerente: Prefeito do Município de Santa Cruz do Rio Pardo

Objeto: §§ 2º e 3º do art. 62 da Lei Complementar nº 405, de 25 de março de 2010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, promovida por Prefeito, dos §§ 2º e 3º do art. 62 da Lei Complementar nº 405, de 25 de março de 2010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo. Dispositivos legais decorrentes de emenda parlamentar versando sobre a compensação da jornada de trabalho de servidores. Considerações sobre o poder de emendar e seus limites. Não acolhimento da alegação de que a emenda descaracterizou o projeto de lei do Prefeito ou gerou despesas não previstas no orçamento. Parecer pela improcedência.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida por Prefeito, tendo por objeto os §§ 2º e 3º do art. 62 da Lei Complementar nº 405, de 25 de março de 2010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo.

O promovente esclarece que os dispositivos impugnados são fruto de emenda parlamentar a projeto de lei subscrito pelo Prefeito.

Alega que a emenda desvirtuou a iniciativa, porque, ao vedar expressamente a compensação prévia da jornada de trabalho de servidores, acabou onerando a Administração com o pagamento de horas extras adicionais.

Divisa a violação do princípio da separação dos Poderes e indica como contrariados os arts. 5º; 24, § 2º, “1” e “4”; 25; 37; 47, II e 144 da Constituição do Estado.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 154).

O Presidente da Câmara Municipal apontou equívoco na redação da inicial e, no mérito, defendeu a constitucionalidade dos dispositivos impugnados, sustentando que o Poder Legislativo não extrapolou o âmbito de sua competência (fls. 173/181).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 164/166).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

O erro material apontado pelo Presidente da Câmara Municipal não compromete a intelecção da petição inicial, nem a identificação da tese jurídica que ela veicula. São claras as indicações dos dispositivos questionados e dos parâmetros de controle indicados, permitindo a análise do mérito.

E, segundo se extrai dessa peça, o Alcaide encaminhou à Câmara Municipal o projeto de lei complementar nº 24/2010, com o intuito de disciplinar plano de empregos e carreiras dos servidores técnicos da Saúde, seus padrões de vencimentos, normas gerais de enquadramento e outras providências.

O art. 62 desse projeto estava assim redigido:

Art. 62 – Nas hipóteses de compensação de jornada de trabalho devidamente justificadas e formalizadas pela chefia imediata, o servidor poderá integralizar no mesmo mês a totalidade de sua carga horária.

Esse dispositivo foi objeto de emenda modificativa.

Ao termo do processo legislativo, em decorrência dos vetos incidentes sobre o caput modificado e o § 1º acrescido, o dispositivo ficou assim:

Art. 62 – VETADO

§ 1º - VETADO

§ 2º - Nas hipóteses de compensação de jornada de trabalho, devidamente justificadas e formalizadas pela chefia imediata, o servidor deverá integralizar a totalidade de sua carga horária no mesmo mês;

§ 3º - Fica vedada a compensação prévia da jornada de trabalho dos funcionários.

Os dispositivos em apreço decorrem de emendas modificativas, impondo-se saber, para a solução deste processo, se são legítimas à luz do processo legislativo traçado pela Constituição do Estado.

Sabe-se que, uma vez apresentado o projeto pelo Chefe do Poder Executivo, está exaurida a sua atuação. Abre-se o caminho, em seguida, para fase constitutiva da lei, que se caracteriza pela discussão e votação públicas da matéria.

Nessa fase se sobressai o poder de emendar.

O poder de emendar é reconhecido pela doutrina tradicional e está reservado aos parlamentares enquanto membros do Poder incumbido de estabelecer o direito novo.

O Supremo Tribunal Federal o considera como prerrogativa dos membros do Congresso, como se intui do seguinte julgado:

“O exercício do poder de emenda, pelos membros do parlamento, qualifica-se como prerrogativa inerente à função legislativa do Estado - O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em "numerus clausus", pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção regalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa” (STF, Pleno, ADI nº 973-7/AP – medida cautelar. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19 dez. 2006, p. 34 –g.n.).

Mas o considera restrito, como se conclui do trecho acima destacado e do paradigmático julgado adiante transcrito:

Incorre em vício de inconstitucionalidade formal (CF, artigos 61, § 1º., II, "a" e "c" e 63, I) a norma jurídica decorrente de emenda parlamentar em projeto de lei de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, de que resulte aumento de despesa. Parâmetro de observância cogente pelos Estados da Federação, à luz do princípio da simetria. Precedentes. 2. Ausência de prévia dotação orçamentária para o pagamento do beneficio instituído pela norma impugnada. Violação ao artigo 169 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 19/98. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (ADI 2079/SC, STF - Pleno, rel. Maurício Corrêa, DJ 18.06.2004, p. 44; Ement. Vol. 2156-01, p. 73).

Reconhece-se haver, portanto, limites ao poder de emendar projetos de lei de iniciativa reservada do Poder Executivo, para evitar: (a) aumento de despesa não prevista, inicialmente; ou então (b) a desfiguração da proposta inicial, seja pela inclusão de regra que com ela não guarde pertinência temática; seja ainda pela alteração extrema do texto originário, que rende ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da proposta original.

Com essa premissa, entendo que as emendas em análise não se afiguram legítimas.

O § 2º do art. 62 reproduz, com uma novidade, a regra que constava do caput do projeto.

Tanto no projeto como na lei, foram previstas a compensação da jornada do trabalho, desde que devidamente justificada e formalizada pela chefia imediata.

No projeto, o servidor poderia integralizar a carga horária no mesmo mês; na lei, em decorrência da emenda, ele deverá fazê-lo.

Podem-se intuir as vantagens do texto original. Com base nele, facultar-se-ia ao servidor creditar-se de horas em qualquer dia do mês, inclusive no último, com a possibilidade de compensá-las nos meses seguintes.

Essa opção parece ter sido inviabilizada pela alteração proposta pelos Vereadores. É possível que os Edis tenham optado por uma disciplina mais restritiva para impedir que os “créditos” se acumulem e se transformem em afastamentos prolongados, com prejuízo para a Administração.

A emenda, de toda sorte, guarda pertinência temática com o projeto inicial e não traz regulação substancialmente distinta da que nele constava.

Salvo equívoco, a regulação também não gera despesas para a Administração. Sob esse aspecto, deve-se atentar para o fato de que a norma instituiu o “banco de horas”, de larga utilização entre os celetistas (art. 7º, XIII, da Constituição Federal e 59, § 2º, da CLT), que representa, essencialmente, a contraposição ao regime de pagamento das horas extras. Como a compensação fica condicionada à autorização da chefia, é o interesse público – e não o do servidor – que orientará, caso a caso, o deferimento desse benefício.

Pelos mesmos motivos, não se detecta inconstitucionalidade no § 3º do art. 62, também impugnado. De redação dúbia, esse dispositivo parece querer evitar que o servidor frua seu afastamento sob a promessa de pagar as horas devidas no futuro. Se assim é, a medida é moralizadora e poderia, como foi, ter sido forjada em emenda.

Diante do exposto, opino pela improcedência da presente ação, por entender que são constitucionais os §§ 2º e 3º do art. 62 da Lei Complementar nº 405, de 25 de março de 2010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo.

 

São Paulo, 27 de agosto de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

jesp