Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.247363-5

Requerente: Prefeita do Município de Santa Cruz do Rio Pardo

Objeto: Lei n. 2.436, de 12 de maio de 2.010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo

 

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeita, da Lei n. 2.436, de 12 de maio de 2.010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo, que “reserva percentual das moradias populares e lotes a serem comercializados pelo município aos portadores de deficiência”. Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Ausência de indicação das receitas para fazer frente às despesas geradas pela execução do programa (art. 25 da Constituição Paulista). Parecer pela  procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pela Prefeita Municipal de Santa Cruz do Rio Pardo, tendo por objeto à Lei n. 2.436, de 12 de maio de 2.010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo que “reserva percentual das moradias populares e lotes a serem comercializados pelo município aos portadores de deficiência”.

Sustenta, em síntese, a autora que o ato normativo impugnado, oriundo de iniciativa parlamentar violou a regra da separação de poderes, e não indicou os recursos necessários para seu cumprimento, contrariando, desse modo, o disposto no art. 5º, bem como no art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

Foi deferida a liminar, para suspensão da eficácia do ato normativo (fls. 123).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações às fls. 137/142, em defesa da norma impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 133/135).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A Lei n. 2.436, de 12 de maio de 2.010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo, que “reserva percentual das moradias populares e lotes a serem comercializados pelo município aos portadores de deficiência”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica assegurada, a partir da publicação desta Lei, a destinação de cinco por cento (5%) das moradias populares, com as devidas adaptações, se necessárias, e lotes que vierem a ser comercializados pelo Município às pessoas portadoras de deficiência.

Parágrafo único- Caso não surgirem os 5% (cinco por cento) de portadores de deficiência físicas interessados, fica este percentual destinado aos idosos.

Art. 2º - O acesso ao benefício previsto por esta Lei, será objeto de regulamentação pelo Poder Executivo, no prazo de sessenta dias, contando da publicação desta Lei.

Art.3º - As despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 4º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

         A lei de iniciativa parlamentar, criou programa governamental, prevendo novas atribuições para órgãos da administração do Município.

A inconstitucionalidade decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Abstraindo dos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação. Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente.

Acrescente-se que para a realização do programa será necessária a realização de despesas, sendo certo que o ato normativo impugnado não indicou a fonte das respectivas receitas.

Em casos assim, esse Colendo Órgão Especial tem, reiteradamente, reconhecido a inconstitucionalidade da norma por violação ao disposto no art. 25 da Constituição Paulista.

Nesse sentido, apenas a título de exemplificação, confiram-se os julgados a seguir indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..

 

Diante desse quadro, deve ser declarada a inconstitucionalidade da Lei n. 2.436, de 12 de maio de 2.010, do Município de Santa Cruz do Rio Pardo, que “ reserva percentual das moradias populares e lotes a serem comercializados pelo município aos portadores de deficiência”.

 

São Paulo, 13 de setembro de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

          Subprocurador-Geral de Justiça

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