Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº 990.10.248394-0

Requerente: Prefeito Municipal de Bauru

Objeto: Lei Municipal n. 5.777, de 22 de setembro de 2009

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 5.777, de 22 de setembro de 2009, de iniciativa parlamentar, que transforma via pública em corredor comercial e de serviços. Violação dos arts. 5º; 47, II e XIV; 111, caput; 144, 180,caput e inciso I; art.181,caput e seu parágrafo 1º, todos da Constituição do Estado. Parecer pela procedência.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal de Bauru, tendo como alvo a Lei Municipal n. 5.777, de 22 de setembro de 2009, de iniciativa parlamentar, que transforma via pública em corredor comercial e de serviços.

Alegação de se tratar de lei que invade a esfera de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo Municipal, além do que houve ausência de planejamento.

Foi deferido o pedido de liminar (fls. 21/24).

A Câmara Municipal prestou as necessárias informações, a partir de fls. 38, pleiteando a improcedência da ação, pois entende que não há qualquer vício de inconstitucionalidade.

O Senhor Procurador-Geral do Estado foi devidamente citado e se manifestou a fls. 34/36.

É o relato do essencial.

Com efeito, é possível afirmar que a lei impugnada ofende frontalmente diversos dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo, adiante indicados: art. 5º; art. 47, incisos II e XIV; art. 111 caput; art. 144; art. 180 caput, e inciso II; art. 181 caput, e seu §1º.

Embora o Município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do sistema federativo (art.1º e art.18 da Constituição Federal), esta autonomia não tem caráter absoluto, pois, limita-se ao âmbito pré-fixado pelo ente estrutural e hierarquicamente superior, vale afirmar, a Constituição Federal (José Afonso da Silva. Direito constitucional positivo, São Paulo: Malheiros, 1997, p.459), de modo que a autonomia municipal deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual (Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 9ª ed., p. 285). Essa autonomia municipal, na lição de José Afonso da Silva (op. cit., p. 591), envolve quatro capacidades básicas: (a) capacidade de auto-organização (elaboração de lei orgânica própria); (b) capacidade de autogoverno (eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais); (c) capacidade normativa própria (autolegislação, mediante                                                                                          competência para elaboração de leis municipais); (d) capacidade de auto-administração (administração própria para manter e prestar serviços de interesse local). Nas quatro capacidades acima estão configuradas: (a) a autonomia política (capacidades de auto-organização e de autogoverno); (b) autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de suas competências); (c) autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais); (d) autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas).

A autonomia do Município, entretanto, deve respeitar o princípio da separação dos poderes, contando o art.5º da Constituição do Estado com a expressa previsão de que eles atuam de forma independentemente e harmônica, regra, aliás, que também consta do art.2º da Constituição Federal, igualmente aplicável no âmbito estadual por força do art.144 da Constituição Bandeirante.

Segundo Hely Lopes Meirelles explica, as atribuições do Prefeito são de natureza governamental e administrativa, sendo certo que atua sempre “por meio de atos concretos e específicos, de governo (atos políticos) ou de administração (atos administrativos), ao passo que a Câmara desempenha suas atribuições típicas editando normas abstratas e gerais de conduta (leis). Nisso se distinguem fundamentalmente suas atividades. O ato executivo do Prefeito é dirigido a um objetivo imediato, concreto e especial; o ato legislativo da Câmara é mediato, abstrato e genérico(...) O prefeito provê in concreto, em razão do seu poder de administrar; a Câmara provê in abstracto em virtude de seu poder de regular. Todo ato do prefeito que infringir a prerrogativa da Câmara – como   também   toda deliberação da Câmara que invadir ou                                                                                                    retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c.c. o art.31), podendo ser invalidado pelo Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1993, p.523).

A lei local em análise ofendeu a separação que deve ocorrer no exercício das funções estatais ao ingressar na esfera de competência reservada ao Poder Executivo. De fato, não se trata de verdadeiro ato normativo, dotado das características de abstração e generalidade, de que ordinariamente reveste-se a lei. Ao contrário, ao levar ao extremo a individualização do seu objeto, consistente em transformar em corredor comercial determinada via pública, interferindo diretamente no zoneamento urbano e, por conseguinte, na disciplina urbanística da urbe. Trata-se de verdadeiro ato normativo de efeitos concretos que, em essência, é um ato administrativo com forma de lei (José Cretella Júnior. Controle jurisdicional do ato administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.403).

É justamente considerando a concreção e delimitação da abrangência da manifestação da vontade da Administração Pública, que Edmir Netto de Araújo conceitua o ato administrativo como sendo “a declaração de vontade do Estado, nessa qualidade, exteriorizada por agente competente e no exercício de suas funções, visando a produção de efeitos jurídicos conformes ao interesse público, por ela objetivados, determinados ou admitidos pelo ordenamento jurídico, em matéria administrativa” (Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 437-438).

Viável afirmar que a lei local analisada, ao regular situação específica e concreta, configurou, na prática, ato de efeitos concretos, por estar despido das características de abstração, generalidade e impessoalidade. E, assim sendo, considerando que a iniciativa legislativa partiu de vereadores da Câmara Municipal, conclui-se que o Legislativo praticou ato cuja competência recai na esfera do Executivo Municipal.

Por igualdade de razões, a Constituição Estadual, em dispositivo aplicável aos Municípios em função do seu art.144, prevê, nos incisos II e XIV do seu art.47 as atribuições privativas do Chefe do Executivo para “exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual”, bem como “praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo”.

Vale, a propósito, colacionar precedentes deste egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acolhendo, em hipóteses análogas, a tese da inconstitucionalidade por violação da separação de poderes:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei 3.801, de 01 de julho de 2004, do Município de Valinhos, que ‘cria zona corredor 1 – ZC1, nas ruas Martinho Leardine e Pedro Leardine e altera o zoneamento de Z2A para Z3B no JD. Paiquerê e no Condomínio residencial Millenium’. Lei apenas em sentido formal. Incompetência do Poder Legislativo Municipal. Matéria afeta ao Poder Executivo. Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes. Ação procedente” (TJSP, ADI 119.158-0/3, Rel. Des. Denser de Sá, 02-02-2006).

“Inconstitucionalidade. Ação Direta. Lei Complementar Municipal 1.482/03. ‘Autoriza, em caráter excepcional, atividades de prestação de serviços (clínicas de acupuntura, terapias e meditações) em trecho da Avenida Sumaré...’.Lei de iniciativa exclusiva do Prefeito. Ofensa à Constituição Estadual. Vício de iniciativa. Ação procedente. Inconstitucionalidade declarada”(TJSP, ADI 115.322-0/3-00, Ribeirão Preto, Rel. Des. Barbosa Pereira, 27-07-2005).

Evidencia-se a inconstitucionalidade por violação ao disposto no art. 5º, art. 47 incisos II e XIV, e art. 144 caput, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

Ademais, a Constituição Estadual prevê objetivamente a necessidade de planejamento em matéria urbanística. O art. 180 caput da Carta Bandeirante, ao tratar do tema, indica os critérios a serem observados, pelo Estado e pelos Municípios, no “estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano”. Entre eles, de conformidade com o inciso I do referido artigo, encontra-se a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução de problemas, “plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes”. O art.181 da Constituição Estadual, por sua vez, prescreve que a “lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes”; enquanto o respectivo §1º estabelece que “os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade do território Municipal”.

Cumpre recordar que a exigência do plano diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”, está assentada no §1º do art.182 da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre da regra contida no art.144 da Constituição do Estado de São Paulo. E o art.182 caput da CF disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. O inciso VIII do art.30 da Constituição Federal prevê a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

Infere-se dos dispositivos acima apontados que a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei, e as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município.

A sistemática constitucional, quanto à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo, torna patente que o casuísmo, evidenciado em atos normativos que regulam situações delimitadas e concretas, não é admissível. O ato normativo que individualiza determinada situação, como ocorreu com a lei local focalizada, modificando o uso de imóveis situados em determinada   via    pública,    de    forma   pontual, viola diretamente a                                                                                             sistemática constitucional na matéria. Pois, qualquer modificação legislativa que envolva a ocupação e uso do solo deve ser realizada dentro de um contexto de planejamento, e de diretrizes gerais. Não se admite, nesse quadro, a ordenação individualizada e dissociada do contexto da utilização de todo o solo urbano.

Tratando da elaboração do plano diretor do ordenamento urbano, anota Hely Lopes Meirelles que ”toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua formação; a cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua renovação”; acrescendo que “a elaboração do plano diretor é tarefa de especialistas nos diversificados setores de sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do Prefeito, que transmitirá as aspirações dos munícipes quanto ao desenvolvimento do Município e indicará as prioridades das obras e serviços de maior urgência e utilidade para a população” (Direito Municipal Brasileiro. cit., pp. 393- 395).

Tratando especificamente do problema da ocupação e uso do solo, anota José Afonso da Silva que a respectiva ordenação é um dos aspectos fundamentais do planejamento urbanístico, salientando ainda, quanto às hipóteses de alteração de zoneamento, que “recomenda-se, nessas alterações, muito critério, a fim de que não se façam modificações bruscas entre o zoneamento existente e o que vai resultar da revisão. É preciso ter em mente que o zoneamento constitui condicionamento geral à propriedade, não indenizável, de tal maneira que uma simples liberação inconseqüente ou um agravamento menos pensado podem valorizar demasiadamente alguns imóveis, ao mesmo tempo que                                                                                   desvalorizam outros, sem propósito. É conveniente que o zoneamento resultante da revisão ou da alteração constitua uma progressão harmônica do zoneamento revisado ou alterado, para não causar impactos, que, por sua vez, geram resistências que dificultam sua implantação e execução. É prudente avançar devagar, mas com firmeza, energia e justiça” (Direito Urbanístico, São Paulo: Malheiros, 2006, p. 251).

Cumpre finalmente destacar a importância do planejamento urbanístico e da necessária razoabilidade de que se deve revestir a legislação elaborada nesta matéria, recordando Toshio Mukai, que “a ocupação e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os da coletividade”  (Temas atuais de direito urbanístico e ambiental, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p. 29).

Deste modo, padece de inconstitucionalidade o ato normativo oriundo do Legislativo municipal que, sem qualquer estudo prévio consistente, e de forma casuística, altera o zoneamento de imóveis especificamente indicados, ferindo frontalmente o disposto nos art. 180 caput e inciso II, art. 181 caput e §1º, ambos da Constituição Estadual; bem como, por força do art. 144 da Constituição Estadual, o art. 182 caput e §1º, e o art. 30, inciso VIII da Constituição Federal.

Por fim, a lei local ao permitir destinação peculiar (note-se: comercial) para determinados imóveis violou o princípio da impessoalidade, adotado expressamente no art. 111 caput da Constituição do Estado de São Paulo, bem como no art. 37 caput da Constituição Federal, aplicável por força do art. 144 da Carta Bandeirante.

A propósito, recorda Celso Antônio Bandeira de Mello, que “a Administração tem que tratar todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis(...) O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia” (Curso de direito administrativo, São Paulo: Malheiros, 2000, p.84). E conforme expõe Hely Lopes Meirelles, tratando-se de zoneamento urbano, “normas edilícias devem evitar o quanto possível essas súbitas e freqüentes modificações de uso, que afetam instantaneamente a propriedade e as atividades particulares, gerando instabilidade no mercado imobiliário urbano e intranqüilidade na população citadina (...) O Município só deve impor ou alterar zoneamento quando essa medida for exigida pelo interesse público, com real vantagem para a cidade e seus habitantes” (Direito Municipal Brasileiro. cit., p. 407). Deste modo, as inovações legislativas urbanísticas impendem planejamento neutro e objetivo, racional e imparcial, não inculcando mudanças tópicas capazes de criar desequilíbrio subjetivo determinado.

Posto isso, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei                                                                                                Municipal n. 5.777, de 22 de setembro de 2009, de Bauru.

São Paulo, 16 de setembro de 2010.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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