AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

Processo n.º 990.10.253013-2

Autor: Prefeito Municipal de Guarujá

Objeto de impugnação: Lei Municipal n.º 3.732, de 9 de fevereiro de 2009, de Guarujá (“Fica o Poder Executivo autorizado a fornecer a medicação básica padronizada na rede pública para a utilização de emergência, em todas as Unidades de Urgência e Emergência gerenciadas pelo município, que funcionam 24 horas por dia, e dá outras providências”).

 

 

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal n.º 3.732/2009, de Guarujá, que ‘autorizou’ o Poder Executivo a fornecer medicação básica padronizada na rede pública. A prática de atos de administração ordinária prescinde de prévia autorização parlamentar. O Executivo necessita de autorização parlamentar apenas para a prática de atos de administração extraordinária, nas hipóteses expressamente previstas na Constituição. Violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes caracterizada. Lei Autorizativa. A circunstância de a lei não impor obrigação, mas simplesmente autorizar a prática de ato que é próprio da função executiva, não se afigura suficiente para afastar a eiva de inconstitucionalidade, ante a invasão de competência material do Executivo. Precedentes do STF. Procedência.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

                    Trata-se de ação na qual se pretende ver declarada a inconstitucionalidade do diploma normativo em epígrafe, de origem parlamentar, cuja redação é a seguinte:

“Art. 1.º - Fica o Poder Executivo autorizado a fornecer a medicação básica padronizada na rede pública para a utilização de emergência, em todas as Unidades de Urgência e Emergência gerenciadas pelo município, que funcionam 24 horas por dia, mantendo um dispensário de medicamentos, que deverá funcionar nesse período integral, para fornecimento de remédios, a título gratuito, aos pacientes atendidos na rede pública.

Parágrafo Único – O município regulamentará a distribuição dos medicamentos dentro das especificações do atendimento.

Art. 2.º - Fica o Poder Executivo autorizado a regulamentar a presente Lei por decreto no prazo de Cento e Vinte dias a contar da data de sua publicação.

Art. 3.º - As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta de verbas próprias do orçamento vigente, suplementadas se necessário, ficando o Poder Executivo autorizado a buscar parcerias no Poder Público, iniciativa privada e junto a entidades filantrópicas para viabilização da presente Lei.

Art. 4.º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

                Segundo consta na inicial, a Lei Municipal n.º 3.732/2009, de Guarujá, é inconstitucional porque: a matéria nela disciplinada – fornecimento de medicação básica padronizada na rede municipal – é de iniciativa reservada ao Executivo; interfere na separação dos poderes; cria despesa sem previsão de receitas. Há indicação de ofensa aos arts. 5.º, 24, § 2.º, 2, 25, 47, XI e XIV, da Carta Paulista.           

Houve concessão de liminar (fl. 43).

         Citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Carta Paulista, o Procurador-Geral do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação da norma objeto do controle de constitucionalidade, ausente, porém, neste caso, em que a lei impugnada trata de matéria exclusivamente local.

                Apesar de notificada, a Câmara Municipal de Guarujá não prestou informações no prazo regimental (fl. 56).

               Em resumo, é o que consta nos autos.

               Nada obstante os elevados propósitos que nortearam a edição da lei em exame, a presente ação deverá ser julgada procedente.

                 Como se sabe, o governo municipal é de funções divididas.

                  Basicamente, a Câmara legisla e o Prefeito administra. Na prática, a atividade de legislar se resume à edição de leis sobre os assuntos de interesse local (CF, art. 30, I), sem embargo da competência municipal para suplementar a legislação federal ‘no que couber’ (CF, art. 30, II). Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto.                  

                   Por força do modelo de divisão de competências adotado pela vigente Constituição, o Prefeito é encarregado do planejamento, organização, execução e controle dos serviços públicos municipais, não podendo – no exercício desse mister – sofrer nenhum tipo de interferência estranha da Câmara.

                  O fornecimento de medicação básica à população em geral, na rede pública municipal, constitui atividade concernente ao serviço público municipal de saúde.

                Segundo HELY LOPES MEIRELLES, ‘os serviços de saúde pública, higiene e assistência social incluem-se na categoria das atividades comuns às três entidades estatais, que, por isso, podem provê-los em caráter comum, concorrente ou supletivo (CF, art. 23, II e IX).       

                  Ao Município sobram poderes para editar normas de preservação da saúde pública, nos limites de seu território, uma vez que, como entidade estatal que é, está investido de suficiente poder de polícia inerente a toda Administração Pública, para a defesa da saúde e bem-estar dos munícipes.’ (Cf. ‘Direito Municipal Brasileiro’, Malheiros, São Paulo, 8.ª edição, 1996, atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro, Yara Darcy Police Monteiro e Célia Marisa Prendes, pp. 326/327).         

        Conforme acima visto, a prestação de serviço público na área da saúde insere-se na órbita de atribuições ordinárias do Prefeito e, para a execução dessa atividade, que possui caráter tipicamente administrativo, o chefe do Poder Executivo não necessita de nenhuma autorização especial da Câmara.

                   É bem verdade que há certos atos de administração extraordinária que, para sua prática, o Executivo necessita de autorização prévia da Câmara. Assim, por exemplo, é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar (CF, art. 49, II); autorizar o Presidente e o Vice-Presidente da República a se ausentarem do País, quando a ausência exceder a quinze dias (CF, art. 49, III); autorizar referendo e convocar plebiscito (CF, art. 49, XV); autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais (CF, art. 49, XVI).

                   Contudo, a Constituição não prevê em nenhuma de suas passagens a necessidade de autorização especial para a prática de ato que é próprio da função executiva: o fornecimento de medicação básica padronizada à população, donde se conclui que, na espécie, houve invasão da esfera de competência do Prefeito pela Câmara.

                   Deveras, a competência para definir se o Poder Público deve ou não fornecer medicação básica padronizada na rede pública é do Prefeito, igualmente a de estabelecer o tipo de medicamento a ser disponibilizado à população, atividades que integram a política de governo na área da saúde pública.

                  Como a saúde é direito de todos e dever do Estado (CF., art. 196), o fornecimento gratuito de medicação ao povo é decorrência natural e, para a implantação desse verdadeiro programa de governo, o Prefeito deverá proceder à indicação de recursos na lei orçamentária para a aquisição de medicamentos e, uma vez aprovada a realização da despesa, a sua concretização dar-se-á por meio de processo licitatório ou afim.

                   Ao conceder autorização para o Prefeito praticar ato de administração ordinária, para o qual não se exige prévia autorização parlamentar, bastando a simples previsão da despesa na lei orçamentária, a Câmara de Vereadores de Guarujá tencionou direcionar a atuação executiva à implantação de programa de governo na área da saúde, sem ser competente para tanto.

                   Em princípio, reza a boa doutrina, “a Câmara pode, por deliberação do plenário, indicar medidas administrativas ao prefeito adjuvandi causa, isto é, a título de colaboração e sem força coativa ou obrigatória para o Executivo, o que não significa prover situações concretas por seus próprios atos ou impor ao Executivo a tomada de medidas específicas de sua exclusiva competência e atribuição” (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., p. 430), mas, no caso sob exame, a Câmara de Vereadores de Guarujá não formulou simples indicação ao Prefeito, mas sim procurou impor a este a adoção de medida – o fornecimento gratuito de medicação – que é de sua competência e atribuição exclusiva.

                   Assim, na espécie, é nítida a violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes, pois, no delicado sistema de relacionamentos concebido pelo constituinte originário, o Executivo necessita de autorização prévia do Legislativo apenas para a prática de atos expressamente previstos na Constituição. 

                   Nessa ordem de ideias, cumpre acrescentar que a circunstância de tratar-se de ‘lei autorizativa’ não se afigura suficiente para afastar a eiva de inconstitucionalidade ora identificada, pois, consoante o abalizado magistério de SERGIO RESENDE DE BARROS (Cf. ‘Leis Autorizativas’, Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, São Paulo, v. 29, pp. 259-267, 2000), a inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade, ante a invasão de competência material do Poder Executivo.

                   Bem a propósito, ao examinar iniciativa semelhante, o Supremo Tribunal Federal decidiu que ‘o só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa’ (Rp. 993/RJ, Rel. Min. NERI DA SILVEIRA, j. em 17/3/1982).

                   Em tais circunstâncias, o parecer é pela procedência da presente ação direta.

                            São Paulo, 13 de janeiro de 2011.

 

 

                                      Sérgio Turra Sobrane

                             Subprocurador-Geral de Justiça

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