Parecer
Autos nº. 990.10.255924-6
Requerente: Prefeito do Município de São José do Rio Preto
Objeto: Lei nº 10.627, de 11 de maio de 2010, do Município de São José do Rio Preto.
Ementa: Regularização de obras irregulares e desdobro de lotes. Lei de iniciativa do Legislativo. Atividade própria do Executivo. Vício de iniciativa. Inconstitucionalidade verificada.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Cuida-se de ação direta objetivando a
declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 10.627, de 11 de maio de 2010, do Município de São José do
Rio Preto, que: "dispõe
sobre a regularização de obras irregulares e desdobro de lotes no Município de
São José do Rio Preto, e dá outras providências".
Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex tunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 29 e 107).
A Câmara Municipal prestou informações
(fls. 43/47), em defesa da constitucionalidade da norma.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato
impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 110/112).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
A questão deve ser analisada à luz dos arts. 5º, 180 e 181, todos da Constituição Estadual.
Assim dispõe a lei impugnada, no que interessa:
“Art. 1º - Ficam sujeitas à regularização as construções que não atendam os dispositivos contidos no título IV - Capítulo V, Seção VII, do Código Civil Brasileiro, quando a mesma possuir um corredor aberto com medidas situadas entre 1,00 metro e 1,50 metros ou poço para ventilação e iluminação com dimensão não inferior a 1,00 metro e área não inferior a 3,00 metros quadrados, no caso de existir abertura para iluminação e ventilação.
Parágrafo Único - A regularização de que trata o caput deste artigo deverá ser solicitada mediante requerimento ao Poder Público, acompanhado de anuência por escrito do(s) proprietário(s) lindeiro(s) da parte irregular ao imóvel, devidamente identificados e localizados em croquis do quarteirão.
Art. 2º - Todos os imóveis que estejam incluídos na Lei 4007/86 (Lei do sistema viário) poderão ter suas construções e acréscimos regularizados, obedecidas as exigências contidas na presente Lei.
Art. 3º - No ato da solicitação da regularização, todas as construções deverão estar cobertas, entendendo-se por obras cobertas, em condições normais de uso, e desde que:
I- as obras atendam aos usos determinados pela Lei de Zoneamento em vigor;
II- à parte reformada, ampliada ou construída seja considerada para efeito de incidência do IPTU;
III- todos os pedidos de regularização sejam apresentados com projetos elaborados por profissionais habilitados, de acordo com normas vigentes na Secretaria Municipal de Obras;
IV- que, as construções embargadas e paralisadas antes da promulgação da presente Lei, em decorrência do referido embargo, também poderão solicitar a sua regularização, independente do estágio da construção na data da solicitação;
V- as construções regularizadas que tenham efetuado o pagameno da taxa de licença.
Art. 4º - As construções provisórias disciplinadas pela Lei nº 8480, de 13 de novembro de 2001, não serão consideradas para efeito de expedição de "habite-se", porém deverão ser apresentados projetos com os respectivos responsáveis técnicos, caso contrário ficarão sujeitas às penalidades da presente Lei.
Art. 5º - As regularizações das obras mediante Alvará deverão ser solicitadas dentro do prazo de até 120 (cento e vinte) dias, a contar da data de publicação da presente Lei, ficando, nesse período, suspensa a aplicação de quaisquer penalidades.
Art. 6º - Após a regularização das construções e acréscimos regulares, anistiados pela presente Lei, a execução de outros acréscimos ou construções que infrinjam a Lei de Zoneamento em vigor, ficam sujeitas a todas as medidas cabíveis para a regularização ou demolição.
Art. 7º - As construções executadas em desacordo com a Lei de Zoneamento em vigor, posteriormente à publicação desta Lei, ficam sujeitas a todas as medidas cabíveis para a regularização ou demolição.
Art. 8º - A constatação de irregularidades, verificadas por ocasião do cadastramento a ser realizado pela Secretaria Municipal de Finanças, será objeto de notificação por parte da Secretaria Municipal de Obras, na qual constará o prazo de 60 (sessenta) dias a contar do recebimento da mesma, para que o notificado protocole o projeto de regularização sob pena de serem tomadas as medidas judiciais cabíveis para a demolição do acréscimo ou construção irregular.
Art. 9º - A infração referente a supressão de taxa de permeabilidade ficará suspensa desde que o infrator execute obras que tenham como função a retenção de águas pluviais u atenda a Lei de permeabilidade em vigor.
Art. 10 - Poderá ocorrer o desdobro de lotes no Município, os quais deverão ser solicitados dentro do prazo de até 120 (cento e vinte) dias, a contar da data de publicação da presente Lei, apenas nos seguintes casos:
I- quando houver duas edificações com a parte estrutural findadas, possuindo cobertura ou, quando se tratar de obras inacabadas em decorrência de embargos municipais, independentemente do estágio na data da solicitação junto a Prefeitura; e/ou
II- quando existir escritura lavrada com data anterior à vigência da presente Lei em nome de duas pessoas; e/ou
III- que a área de cada parte desdobrada não seja inferior a 125,00 m²; e/ou
IV- que a largura mínima do(s) corredor(es) de acesso à parte dos fundos do imóvel não seja inferior a 1,50 metros; e/ou
V- que inexistia qualquer abertura de iluminação ou ventilação junto às divisas das partes desdobradas; e/ou
VI- eu possua alvará de construção para duas residências, já expedido anteriormente a promulgação desta lei.
Art. 11 - Ficam excluídos do artigo 10 os imóveis localizados em zona 01 e zona 11 da Lei de Zoneamento vigente.
Art. 12 - Para o benefício do artigo 10 o interessado deverá apresentar título de propriedade devidamente registrado junto ao cartório de registro de imóveis, sendo que o benefício será concedido apenas uma única vez para cada proprietário.
Art. 13 - Permite a regularização de obras multifamiliares, obedecendo as exigências contidas nesta Lei.
Art. 14 - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação."
Resulta claro, da simples leitura do
texto legal, que o Poder Legislativo adentrou competência material e exclusiva
do Poder Executivo, pois claramente emitiu comando que interfere com a
administração municipal, ao editar lei que "dispõe sobre a regularização
de obras irregulares e desdobro de lotes no Município de São José do Rio Preto,
e dá outras providências".
São confiadas ao Poder Executivo e ao
Poder Legislativo funções diferenciadas e independentes, de acordo com a
estrutura da organização política da República, inclusive quanto ao município,
que é sua parte integrante. Bem por isso a Constituição Federal procurou
estabelecer as atribuições do Poder Executivo e Poder Legislativo, fixando
funções adequadas à organização dos poderes, no que foi seguida pela
Constituição do Estado de São Paulo.
O Prefeito, enquanto chefe do Poder
Executivo, exerce tarefas específicas à atividade de administrador, tendente à
atuação concreta, devendo planejar, organizar e dirigir a gestão das coisas
públicas.
Em sua função normal e predominante sobre
as demais, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e
obrigatórias de conduta. Esta é a sua função específica, bem diferenciada da do
Executivo, que é a de praticar atos concretos de administração. Por meio da edição de leis, a Câmara ditará
ao prefeito as normas gerais da administração, sem chegar, no entanto, à
prática administrativa. Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da
Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com
caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os
mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de
administração (Cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro,
Malheiros, 14ª. ed., 2006, pág. 605).
Aplicado esse raciocínio ao caso em
exame, temos que a tarefa de adaptar a legislação sobre o uso e ocupação do
solo urbano ao plano físico é privativa do Prefeito, que, no exercício dessa
atividade, de natureza tipicamente administrativa, não pode sofrer nenhum tipo
de interferência indevida do Legislativo local.
Bem a propósito, ao examinar essa
questão, o Plenário desse Egrégio Tribunal de Justiça, em antigo aresto
relatado pelo eminente jurista Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, concluiu que
“... constituem matéria
legislativa as regras imperativas, gerais e abstratas que diferenciam as
construções de habitações das de comércio e indústria, e, ainda, distinguem as
habitações, as casas comerciais e industriais, em diversos tipos, e, a final,
prescrevem restrições ao direito de construir, conforme a zona residencial,
comercial ou industrial e de forma mais ou
menos rígida, segundo critérios exclusivos ou de predominância. E mais,
constituem matéria legislativa as regras imperativas gerais e abstratas que
determinam recuos, estabelecem alturas de prédios, normas sobre fachadas e
gradis. Enfim, as que estabelecem as regras imperativas gerais e abstratas de
zoneamento. Já a especificação de uma via pública, no seu todo ou em parte, se
estrita ou prevalentemente residencial é obra administrativa, atividade
concreta e específica de caráter casuístico, em função do desenvolvimento
local, das exigências dos bairros, das manifestações dos próprios logradouros
públicos, em consonância com a fisionomia que assume no seu evolver, suscetível
de se modificar por exigências urbanísticas do Município, interesse dos
munícipes, só possível de ser bem sentidos pelo Executivo, no seu quotidiano
contacto com a vida da cidade, atuando em matéria da sua alçada administrativa,
particularizando a lei” (TJSP, Pleno, RT 289/456).
No mesmo sentido é a lição de Hely:
“a
lei estabelecerá as diretrizes, os critérios, os usos admissíveis, tolerados e
vedados nas zonas previstas; o decreto individualizará as zonas e especificará
os usos concretamente para cada local. O zoneamento, no seu aspecto
programático e normativo, é objeto de lei, mas na sua fase executiva - em
cumprimento da lei - é objeto de decreto” (Cf. ob. cit., pág. 553/554).
Resumindo o ponto até aqui analisado: o
conteúdo da lei impugnada é próprio de ato administrativo, de responsabilidade
do Prefeito e, portanto, de sua exclusiva iniciativa. A atividade do Legislativo invade a seara a
este reservada e incide em inconstitucionalidade, por ofensa ao artigo 5º,
caput, da Constituição do Estado de São Paulo.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 10.627, de 11 de maio de 2010, do Município de São José do Rio Preto.
São Paulo, 16 de setembro de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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