Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº. 990.10.266504-6

Requerente: Prefeito Municipal de Marília

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.025, de 30 de setembro de 2004, de Marília

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 6.025, de 30 de setembro de 2004, de Marília, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre “discriminação nas contas telefônicas das ligações locais e dá outras disposições”.

2)      Competência concorrente da União e dos Estados para legislar sobre consumo e responsabilidade por danos ao consumidor (art. 24, V e VIII da CR). Legislação municipal, de caráter suplementar, que deve se restringir aos assuntos de interesse local (art. 30, I e II da CR).

3)      Competência da União para prestar, diretamente ou indiretamente, mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações (art. 21, XI da CR).

4)      Lei municipal que trata de assunto de interesse geral viola a repartição constitucional de competências, atentando contra o princípio federativo, qualificável como princípio estabelecido (art. 144 da Constituição do Estado).

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Marília, tendo como alvo Lei Municipal nº 6.025, de 30 de setembro de 2004, de Marília, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre “discriminação nas contas telefônicas das ligações locais e dá outras disposições”.

Sustenta o autor que o diploma contraria o art. 144, o art. 275 e o art. 276, ambos da Constituição do Estado, bem como o art. 1º, art. 18, e 24, inciso V e VIII da CR.

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 63, 66/68).

A Câmara Municipal apresentou informações (fls. 70/79).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 6.025, de 30 de setembro de 2004, de Marília, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre “discriminação nas contas telefônicas das ligações locais e dá outras disposições”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Fica determinada a obrigatoriedade da discriminação das ligações locais nas contas telefônicas, no Município de Marília, de forma gratuita.

Parágrafo único. As discriminações mencionadas no ‘caput’ deste artigo, deverão conter:

I – data da ligação;

II – hora do telefonema;

III – duração da chamada;

IV – número do telefone chamado;

V – valor cobrado em cada ligação.

Art. 2º. A não observância da presente lei implicará na aplicação de multa no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) e em dobro na sua reincidência.

Art. 3º. O Poder Executivo regulamentará a presente lei no prazo de 60 (sessenta) dias, contados a partir da data de sua publicação.

Art. 4º. As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 5º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

É necessário ter presente, em primeiro lugar, que a “abertura da causa de pedir” em sede de controle concentrado de constitucionalidade permite que a inconstitucionalidade seja examinada e reconhecida por fundamento distinto daquele alegado na inicial da ação direta.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. STF:

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

(...)”

Confira-se ainda: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

E, na hipótese em exame, o fundamento pelo qual, em nosso sentir, deverá ser reconhecida a inconstitucionalidade da lei, é a violação de princípio estabelecido, nos termos do art. 1º da Constituição Paulista, e nos arts. 1º e 18 da Constituição da República.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos. Daí decorre a fixação da autonomia e dos seus limites, para Estados, Distrito Federal e Municípios.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I da CR/88). Mas na grande maioria dos casos, o desrespeito ao princípio reveste-se de maior sutileza.

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do Col. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...)

a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I). (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

(...)”

Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a Lei Municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

No caso em análise, é evidente que a lei municipal impugnada trata da defesa do consumidor, ao estabelecer exigência de detalhamento de informações nas contas de telefonia.

Mas é necessário compreender os limites à atuação do legislador municipal em matéria de defesa do consumidor.

Há competência concorrente entre a União e os Estados para legislar sobre consumo e responsabilidade por danos ao consumidor (cf. art. 24, V e VIII da CR), cabendo aos Municípios editar normas para suplementar a legislação federal e estadual naquilo que couber (art. 30, II da CR).

Mas como se trata de tema em que a competência legislativa é concorrente, é indispensável ter presente que: (a) cabe à União fixar normas gerais (art. 24, § 1º da CR); (b) o Município só pode legislar naquilo que se referir ao interesse local (interpretação sistemática do art. 30, I e II da CR).

Em síntese, nos casos de competência concorrente, a legislação estadual deve obsequiar as diretrizes fixadas em norma geral da União, sendo certo ainda que a legislação municipal suplementar, exclusivamente, deve limitar-se aos aspectos que são de interesse essencialmente local.

O serviço de telefonia é prestado, de modo uniforme, em todo o território nacional, na medida em que, nos termos do art. 21, XI da CR, compete à União explorar, “diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais”.

Para tanto foi criada a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), entidade reguladora do setor de telecomunicações, como autarquia especial criada pela Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472, de 16 de julho de 1997).

Assim, tratando-se de serviço da União (ainda que exercido mediante concessões), sua regulamentação deve ser uniforme em todo o território nacional, especialmente quanto aos aspectos que exigem tratamento padronizado, e, por isso, dizem respeito ao interesse geral.

Em outras palavras, não é viável a edição de lei municipal a respeito de aspectos do tema que exijam regulação uniforme, referindo-se, portanto, ao interesse geral.

É a clássica lição de José Afonso da Silva, para quem “o princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local (...)” (Curso de direito constitucional positivo, 28. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 478).

É de interesse manifestamente geral, não local, que haja uniformidade não só na prestação dos serviços de telefonia, mas também na documentação a seu respeito, relativamente aos dados que devem constar das faturas de serviços (contas de telefone).

Em caso envolvendo cobrança por serviços de telefonia, o Col. STF reconheceu a competência da União para legislar, nos termos da ementa a seguir transcrita:

“(...)

Projeto de lei estadual de origem parlamentar. Veto total. Promulgação da lei pela assembleia. Norma que disciplina forma e condições de cobrança pelas empresas de telecomunicações. Matéria privativa da União. (ADI 2.615-MC, Rel. Min. Nelson Jobim, julgamento em 22-5-2002, Plenário, DJ de 6-12-2002.)

(...)”

Nessa mesma linha, em outro caso o Col. STF reconheceu que cabe à União regulamentar o tema. Do Informativo STF nº 434 constou a notícia do seguinte precedente, que se aplica, mutatis mutandis, ao caso em exame:

“(...)

O Tribunal, por maioria, deferiu medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Governador do Distrito Federal para suspender a eficácia da Lei distrital 3.426/2004, que dispõe sobre a obrigatoriedade de as empresas concessionárias, prestadoras de serviços de telefonia fixa, individualizarem, nas faturas, as informações que especifica, sob pena de multa, e dá outras providências — v. Informativo 368. Entendeu-se que a lei impugnada, a princípio, viola os artigos 21, XI e 22, IV, da CF, mediante ingerência na regulamentação da exploração de serviços de competência da União. Ressaltou-se que o DF tem competência para instituir, arrecadar e fiscalizar o ICMS incidente sobre os serviços de comunicação (CF, art. 155, II), dispondo, no seu exercício, de prerrogativa para criar deveres instrumentais ao sujeito passivo da obrigação, dentre os quais o de emitir e escriturar notas fiscais que comprovem a ocorrência do fato gerador. Esclareceu-se que essa prerrogativa, entretanto, não é absoluta, pois a CF atribui à União a competência privativa para ‘explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais’ (CF, art. 21, XI). Acrescentou-se que a União também possui, privativamente, competência para legislar sobre telecomunicações (CF, art. 22, IV) e que não há lei complementar autorizando os Estados a legislar, especificamente, sobre essa matéria. ADI 3322 MC/DF, rel. Min. Cezar Peluso, 2.8.2006.

(...)”

Partindo do senso comum, não parece fazer sentido que em determinados Municípios as contas de telefone contem com certas informações, e nos demais sejam elaboradas de modo diverso, sendo evidentemente necessário e mais adequado que em todos os lugares nos quais tal serviço seja prestado, as informações sejam consolidadas de modo padronizado.

Isso demonstra a incompatibilidade vertical entre a Lei Municipal nº 6.025, de 30 de setembro de 2004, de Marília, e o princípio federativo, manifestado através da repartição constitucional de competências, na medida em que o legislador municipal ingressou em área inerente à atuação do legislador federal, caracterizando-se, dessa forma, a contrariedade ao disposto no art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.025, de 30 de setembro de 2004, de Marília.

São Paulo, 20 de outubro de 2010.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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