Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.273380-7

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Objeto: Alíneas “b”, “d” e “f”, do inciso I, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, do inciso II, alíneas, “a”, ”b” e “c”, do inciso III, alíneas “b”, “c”, “d” e “e”, do inciso IV, do inciso VI, todas do art. 6º, art. 8º, incisos I a XVI e §§1º e 2º, incorporados ao texto da Lei Municipal n. 6.609, de 18 de dezembro de 2009, do Município de Guarulhos, pelo acréscimo publicado em 17 de março de 2.010.

 

Ementa:

1) Ação Direta de Inconstitucionalidade, promovida por Prefeito, das alíneas “b”, “d” e “f”, do inciso I, das alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, do inciso II, das alíneas, “a”, ”b” e “c”, do inciso III; alíneas “b”, “c”, “d” e “e”, do inciso IV; do inciso VI, todas do art. 6º e do art. 8º, incisos I a XVI e §§1º e 2º, incorporados ao texto da Lei Municipal n. 6.609, de 18 de dezembro de 2009, do Município de Guarulhos, pelo acréscimo publicado em 17 de março de 2.010.

2)  Abertura da causa de pedir, e possibilidade de reconhecimento de inconstitucionalidade por “arrastamento”, de dispositivos não impugnados, em controle concentrado de constitucionalidade.

3) Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui programa e gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 25; 47, II e XIV; 144 e 176, I, da CE.

 

 

 

Colendo Órgão Especial

                Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo por objeto as alíneas “b”, “d” e “f”, do inciso I; as alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, do inciso II; as alíneas, “a”, ”b” e “c”, do inciso III; alíneas “b”, “c”, “d” e “e”, do inciso IV e do inciso VI, todos do art. 6º e do art. 8º, incisos I a XVI e §§1º e 2º, incorporados ao texto da Lei Municipal n. 6.609, de 18 de dezembro de 2009, do Município de Guarulhos, pelo acréscimo publicado em 17 de março de 2010.

A inicial indica a violação dos arts. 5º; 25; 47, II e XIV; 144 e  176, I, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

Em resumo, a inicial debate-se pela violação do princípio da separação dos poderes; pelo vício de iniciativa; pela ofensa ao art. 25 da Constituição Paulista, no que concerne à geração de despesas.

Os dispositivos legais impugnados tiveram a vigência e eficácia suspensas, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 61 vº).

A Presidente da Câmara Municipal prestou informações, defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada (fls. 67/70).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 76/78).

Eis em síntese o relatório.

A Lei n. 6.609, de 18 de dezembro de 2009, do Município de Guarulhos, de autoria parlamentar, criou o Programa Intersetorial de Atendimento à População de Rua no âmbito do Município de Guarulhos e tem a seguinte redação: (fls. 51/54).

“Art. 1º - Fica criado o Programa Intersetorial de Atendimento à População de Rua, no âmbito do Município de Guarulhos, nos termos desta Lei.

 Art. 2º - O Programa Intersetorial de Atendimento à População de Rua, objeto desta Lei tem como objetivo o atendimento pleno das necessidades da população de

social, referenciando-se para tanto no grupo familiar.

§ 1º - O objetivo do Programa Intersetorial de Atendimento à População de Rua abrange iniciativa e ação global de todo e qualquer órgão da estrutura do Poder Executivo, visando possibilitar a interação entre os mesmos de forma articulada, gerando redes de inclusão, juntamente com outros programas, serviços e projetos que atendam às necessidades dos integrantes do grupo familiar.

§ 2º - Para  efeito do cumprimento do disposto nesta Lei, considera-se como “grupo familiar”:

I – a família onde todos seus integrantes podem ser caracterizados como “moradores de rua”;

II - a família onde um ou mais dos seus integrantes podem ser caracterizados como “moradores de rua”, e que, para a reinserção deste(s) membro(s) no grupo familiar, se faça necessária a intervenção direta do Poder Público pelos mecanismos previstos no Programa, visando atender não só às carências individuais, mas também aquelas do grupo familiar.

Art. 3º - Na implementação e desenvolvimento do Programa Intersetorial de atendimento à População de Rua, atender-se-ão de maneira diferenciada os integrantes do grupo familiar que, por faixa etária ou por condição e desvantagem, tiverem agravada a sua situação de vulnerabilidade tais como as crianças, os adolescentes, os portadores de deficiência física ou mental e os idosos.

Art. 4º - Os equipamentos sociais de atendimento direto aos programas sociais bem como os abrigos, distribuídos no âmbito do Município de Guarulhos, serão dotados de infra-estrutura física adequada ao atendimento integrado da população assistida.

Art. 5º - O Poder Executivo realizará o Censo dos Moradores de Rua e implantará o banco de dados, a fim de subsidiar estudos que orientem a adoção de políticas públicas específicas, que propiciem a inclusão e proteção social deste segmento da população.

§ 1º - A realização do censo previsto no caput deste artigo,

deverá possibilitar a identificação de informações precisas relacionadas às causas que geraram a condição de “moradores de rua” do segmento social em questão.

§ 2º - A implantação do banco de dados relativo ao Programa Intersetorial de Atendimento à População de Rua deverá respeitar a identidade dos envolvidos no processo, tanto para acompanhamento dos programas e projetos correlatos adotados, como para a análise da trajetória de inclusão social ou não da população de “moradores de rua”, a fim de possibilitar a avaliação quantitativa das políticas públicas em andamento.

§ 3º - O banco de dados relativo ao Programa Intersetorial de Atendimento à População de Rua deverá ser atualizado mensalmente, através de informações obtidas pelo cruzamento de dados dos diversos programas e projetos  afins e, para tanto, a sistematização deste procedimento será  normatizada pelas autoridades competentes.

§ 4º - O banco de dados relativo ao Programa Intersetorial de Atendimento à População de Rua centrará suas informações na família ou nas pessoas objeto desta intervenção, bem como no acompanhamento de sua trajetória, objetivando avaliar a necessidade de continuidade das estratégias adotadas pelo Poder Executivo, em função dos resultados obtidos.

Art. 6º - Na implementação do Programa Intersetorial de Atendimento à População de Rua, o Poder Executivo buscará desenvolver ações integradas, estabelecidas de forma hierarquizada, numa escala de atendimento às prioridades emergências das pessoas e famílias “moradores de rua”, de modo a possibilitar a sua inserção na sociedade, até que se possa constatar a autonomia e a emancipação destes grupos familiares, por meio de iniciativas específicas, capazes de:

I – viabilizar-lhes acesso ao emprego e ao crédito:

a)  viabilizar a inserção dos “moradores de rua” em programas e projetos de qualificação e capacitação profissional,com o objetivo de propiciar oportunidades de empregabilidade e de geração de renda;

b) VETADO;

c) incentivar a criação de cooperativas e grupos de trabalho, orientando a população de “moradores de rua” na produção de bens e/ou serviços que possam vir a ser absorvidos pelos órgãos da administração direta, indireta e fundacional do Município de Guarulhos;

d) VETADO;

e) implantar Programa de Estágio Remunerado para jovens entre quinze e vinte e cinco anos, nos órgãos da administração municipal;

f) VETADO;

g) realizar uma pesquisa prévia de localização, e com base na interpretação e avaliação dos dados obtidos, implantar depósitos para a guarda de material de trabalho daqueles inseridos no mercado informal de trabalho;

II- viabilizar-lhes acesso à moradia através de mecanismos diferenciados, a fim de reagrupar e preservar a integridade do grupo familiar:

a) VETADO;

b) VETADO;

c) VETADO;

d) VETADO;

e) VETADO;

III- VETADO:

a) VETADO;

b) VETADO;

c) VETADO;

IV- garantir-lhes o acesso à educação:

a) viabilizar a inserção dos “moradores de rua” em programas e projetos de alfabetização de jovens e adultos;

b) VETADO;

c) VETADO;

d) VETADO;

e) VETADO;

VI- viabilizar a emissão de documentos de identidade, tais como:

a) Certidão de Nascimento;

b) Carteira de Identidade;

c) Carteira de Trabalho e Previdência Social;

d) Título de Eleitor; e

e) registro no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda.

§ 1º - O Poder Executivo, através da Secretaria Municipal da Educação, cuidará para que todos os jovens de quinze a vinte anos, integrantes das famílias de “moradores de rua”, que não tiverem concluído o Ensino Fundamental, se encontrem matriculados no Programa de Educação Juvenil, e acompanhará sua frequência  e rendimento de maneira sistemática.

Art. 7º - O órgão gestor do Programa será a Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania.

Art. 8º - VETADO.

I- VETADO;

II- VETADO;

III- VETADO;

IV- VETADO;

V- VETADO;

VI- VETADO;

VII-VETADO;

VIII- VETADO:

IX- VETADO;

X- VETADO;

XI- VETADO;

XII- VETADO;

XIII- VETADO;

XIV- VETADO;

§ 1º - VETADO;

§ 2º - VETADO;

Art. 9º - As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão à conta da Secretaria Municipal de Assistência Social;

Parágrafo único. Constituir-se-ão ainda recursos financeiros para a implantação e o desenvolvimento do programa:

I – doações públicas ou privadas;

II- subvenções, contribuições, transferências e participações dos Municípios em convênios e contratos relacionados com a execução das políticas públicas na área do desenvolvimento e assistência social;

III- operações de crédito com organismos nacionais e internacionais;

Art. 10 -  O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo máximo de 90 (noventa) dias, a contar da data da sua publicação.

Art. 11- Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 12- Ficam revogadas todas as disposições em contrário”.

Como o Chefe do Executivo vetou os dispositivos legais anteriormente descriminados da lei aprovada na Câmara, mas seu veto foi afastado pela apreciação do Poder Legislativo, posteriormente foram promulgados e publicados os referidos dispositivos legais, sob a lei com o mesmo número, nos termos das disposições da Lei Orgânica Municipal de Guarulhos. Assim, a Lei Municipal nº 6.609, nos termos do acréscimo publicado em 17 de março de 2010, passou a ter a seguinte redação:

“Art. 1º. As alíneas b, d e f, do inciso I do art. 6º da Lei n. 6.609, de 18 de dezembro de 2009, passam a ter as seguintes redações:

“b) implantar Banco de Empregos especializado no atendimento das necessidades específicas da população de moradores de rua”;

d) reservar vagas na área de prestação de serviços temporários, na quantidade necessária, de forma a possibilitar a inserção dos destinatários desta ação nas diversas frentes de trabalho, distribuídas no âmbito da cidade de Guarulhos, especialmente na área de construção de habitações populares;

f) implementar projeto de gratuidade no transporte, para garantir o retorno ao lar daqueles que, inseridos no mercado informal de trabalho e possuindo moradia, pernoitam nas ruas;”

Art. 2º - As alíneas a, b, c, d, e e do inciso II do art. 6º da Lei 6.609, passam a ter as seguintes redações:

“a) criar unidades de acolhimento noturno, destinadas ao trabalhador do mercado informal que possui moradia e que, por motivo de trabalho pernoita nas ruas;

  b) proporcionar abrigo provisório compatível com os padrões de conforto, privacidade e higiene para todas aquelas pessoas e famílias que passam por situações temporárias de risco, por um período não superior a seis meses;

 c) intensificar o número de entrega de cestas básicas;

d) adequar alternativas de moradia definitiva na forma de assentamento de famílias, por meio de implantação de kit/construção, kit/reforma e kit/ampliação;

e) destinar, como mínimo, cinco por cento das unidades habitacionais populares, construídas pela Prefeitura da Cidade de Guarulhos, dirigidas à população de baixa renda, às famílias de “moradores de rua”;”

Art. 3º - As alíneas a, b e c do inciso III do art. 6º da Lei n. 6.609/09, passam a ter as seguintes redações:

“a) designar grupos de profissionais em saúde do “Programa Saúde da Família” par promover, prevenir e preservar a saúde da população objeto desta Lei;

b) realizar convênio com Restaurantes Populares mantidos pelos Poderes Públicos Municipal e Estadual no âmbito do Município de Guarulhos, de modo a garantir a alimentação diária e balanceada das famílias de “moradores de rua”;

c) combater a desnutrição infantil através da distribuição mensal de dois quilos de leite em pó, enriquecido com vitaminas e sais minerais, para cada criança entre dois e doze anos de idade, observando a devida orientação quanto aos critérios básicos de higiene e portabilidade da água utilizada;”

Art. 4º - As alíneas, b, c, d e e do inciso IV do art. 6º da Lei n. 6.609/09, passam a ter as seguintes redações:

“b) implantar turmas especiais nas unidades de acolhimento noturno, destinadas ao trabalhador do mercado informal que possui moradia e que, por motivo de trabalho pernoita nas ruas;

c) organizar cursos de formação e qualificação visando capacitar professores voluntários e/ou da rede pública, para atender às turmas constituídas por “moradores de rua”;

d) reservar, cinco por cento da dotação orçamentária destinada ao Programa Municipal de Bolsa Familiar para a Educação-Bolsa- Escola, estabelecido pela Lei n. 5727/01, para a concessão do auxílio ás famílias de “moradores de rua”;

e) realizar convênios com entidades legalmente constituídas, visando implantar tele-salas de aula nos conjuntos habitacionais populares e nas áreas de assentamento de famílias de “moradores de rua”;

Art. 5º - O inciso V do art. 6º  da Lei n. 6.609/09, passa a ter a seguinte redação:

“V- fornecer atendimento especializado de caráter técnico –pedagógico, aos portadores de deficiência física e/ou mental, e de caráter médico e psicológico aos alcoólicos, aos portadores de DST/AIDS, aos usuários de drogas e, em especial às mulheres grávidas integrantes das famílias de “moradores de rua”, visando garantir-lhes toda a assistência necessária à convivência segura e a sua reintegração ao seio familiar e da sociedade”.

Art. 8º - O Poder Executivo constituirá uma Comissão Executiva com  atribuições de supervisionar e coordenar a implementação do Programa, bem como proceder a avaliações periódicas do mesmo, visando aprimorar a qualidade de seu desenvolvimento, composta de representantes de cada órgão, instituição ou entidades a seguir indicadas:

I – um representante do Gabinete do Prefeito;

II- dois representantes da Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania;

III- um representante da Secretaria Municipal de Educação;

IV- um representante da Secretaria Municipal de Saúde.

V- um representante da Secretaria Municipal de Habitação;

VI- um representante da Secretaria Municipal do Trabalho;

VII- um representante do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente;

VIII- um representante do Conselho Municipal de Assistência Social;

IX- um representante do Conselho Municipal de Educação;

X- um representante do Conselho Municipal Antidrogas - COMAD;

XI- um representante do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente;

XII- um representante das entidades de defesa dos direitos do idoso;

XIII- um representante das entidades de defesa dos direitos dos portadores de deficiência física ou de necessidades especiais; e

XIV- dois representantes das famílias de “moradores de rua”.

§1º Os membros integrantes  da Comissão Executiva serão formalmente designados pelos órgãos, instituições ou entidades que os representam, à exceção dos dois representantes das famílias de “moradores de rua”, que deverão ser selecionados pelos assistentes sociais da Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania, dentre aqueles que se revelarem com melhores condições de bem representar aquela parcela da população.

§2º - Não serão remunerados os serviços prestados pelos membros integrantes da Comissão Executiva, sendo estes considerados como relevantes serviços prestados à municipalidade.”

Art. 7º - Esta Lei entra em vigor  na data de sua publicação”.

Antes de examinar, propriamente, o mérito da ação direta, é oportuno observar que a “abertura da causa de pedir” em sede de controle concentrado de constitucionalidade permite que a inconstitucionalidade seja examinada e reconhecida por fundamento distinto daquele alegado na inicial da ação direta.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. STF:

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

(...)”

Confira-se ainda: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

Ademais, a mesma premissa dogmática que inspira o controle concentrado de constitucionalidade - a defesa da plenitude normativa da Constituição - justifica maior flexibilidade com relação à interpretação do pedido formulado na ação direta, de sorte a permitir o reconhecimento da inconstitucionalidade de outros dispositivos da lei que não tenham especificamente sido impugnados pelo autor, na medida em que relacionados diretamente aos que o foram.

Esse entendimento foi assentado pelo Col. STF, como se infere do precedente a seguir transcrito:

“(...)

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Embargos de Declaração. Questões relacionadas à violação do devido processo legal, do contraditório e à inconstitucionalidade por arrastamento. 3. Natureza objetiva dos processos de controle abstrato de normas. Não identificação de réus ou de partes contrárias. Os eventuais requerentes atuam no interesse da preservação da segurança jurídica e não na defesa de um interesse próprio. 4. Informações complementares. Faculdade de requisição atribuída ao relator com o objetivo de permitir-lhe uma avaliação segura sobre os fundamentos da controvérsia. 5. Extensão de inconstitucionalidade a dispositivos não impugnados expressamente na inicial. Inconstitucionalidade por arrastamento. Tema devidamente apreciado no julgamento da Questão de Ordem. 6. Inexistência de omissão, obscuridade ou contradição. 7. Embargos de declaração rejeitados (ADI-ED 2982 /CE, Rel. Min. GILMAR MENDES, j. 02/08/2006, Tribunal Pleno, DJ 22-09-2006, PP-0002, EMENT VOL-02248-01, PP-00171, g.n.). No mesmo sentido a ADI 1144/RS, Rel. Min. EROS GRAU, j. 16/08/2006, Tribunal Pleno, DJ 08-09-2006, PP-00033, EMENT VOL-02246-01, PP-00057.

(...)”

A declaração de inconstitucionalidade por arrastamento é possível, sempre que: (a) o reconhecimento da inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal torna despidos de eficácia e utilidade outros preceitos do mesmo diploma, ainda que não tenham sido impugnados; (b) o mesmo vício se estenda a outros dispositivos da lei, ainda que não impugnados; (c) nos casos em que o efeito repristinatório restabelece dispositivos já revogados pela lei viciada que ostentem o mesmo vício; (d) quando há, na lei, dispositivos que não foram impugnados, mas guardam direta relação com aqueles cuja inconstitucionalidade é reconhecida.

Essa solução tem sido reconhecida pacificamente pelo E. STF (v.g.: ADI 3255/PA, rel.Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, j.22/06/2006, T. Pleno, DJe-157 DIVULG 06-12-2007, DJ 07-12-2007 PP-00018, EMENT VOL-02302-01, PP-00127; ADI 3645/PR, rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 31/05/2006, T. Pleno, DJ 01-09-2006 PP-00016, EMENT VOL-02245-02 PP-00371, LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 75-91).

Note-se que a declaração da inconstitucionalidade de preceitos legais, até mesmo quando não mencionados expressamente pelo autor, é viável em razão da natureza objetiva do processo de controle abstrato de normas, em que não se identificam réus ou partes contrárias, mas exclusivamente o interesse veiculado, pelo requerente, no sentido da preservação da segurança jurídica e da plenitude normativa da Constituição.

Feitas essas observações, torna-se possível o exame do mérito da ação direta.

Como se infere dos autos, a Lei 6.609, de 18 de dezembro de 2009 é fruto de iniciativa parlamentar. Foi, inicialmente, promulgada e publicada em 18 de dezembro de 2009, com veto parcial com relação às alíneas “b”, “d” e “f”, do inciso I, às alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, do inciso II, às alíneas, “a”, ”b” e “c”, do inciso III, às alíneas “b”, “c”, “d” e “e”, do inciso IV, ao inciso VI, do art. 6º, ao art. 8º, incisos I a XVI e §§1º e 2º (fls. 55). Como a Câmara Municipal afastou o veto, a Lei Municipal nº 6.609, foi novamente publicada, agora em 17 de março de 2010, só para fins de eficácia dos dispositivos legais anteriormente mencionados, cujo veto foi afastado (fls. 60).

Ocorre que o vício (inconstitucionalidade), no caso em exame, atinge a lei como um todo, e não apenas os dispositivos legais que estão sendo impugnados.

A razão é singela.

A Lei Municipal nº 6.609, aqui globalmente considerada (tanto o texto inicialmente publicado como o texto final que contou com a inclusão dos dispositivos legais anteriormente mencionados, (cujo veto foi afastado) trata de diploma, de iniciativa parlamentar, que versa sobre matéria tipicamente administrativa.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram a Vereadora, autora do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara institui um programa e cria obrigações, onerando a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

O legislador está instituindo serviço público.

Não há dúvida, porém, que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação e funcionamento de serviços públicos é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade de criar um serviço público social para dar assistência aos moradores de rua e fixar as regras para a sua prestação. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Com efeito, ao Executivo cumpre com exclusividade formular a opção política de prestar os serviços públicos diretamente ou delegá-los a particulares, como também celebrar convênios, acordos e parcerias com entes públicos e privados, não podendo, no exercício dessas atribuições, sofrer nenhum tipo de interferência estranha da Câmara.

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

Nota-se, por fim, que a instituição do programa em questão gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

Sob esse aspecto, é de se notar que a instituição do programa gera despesa para o Município que não está coberta pela lei orçamentária, o que se incompatibiliza com as disposições dos artigos 25 e 176, I, da Constituição do Estado.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infrigem esses comandos:

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.609 de Guarulhos, em sua integralidade, ou seja, tanto com relação ao texto publicado em 18 de dezembro de 2009, como em relação ao texto publicado em 17 de março de 2010.

 

São Paulo, 03 de novembro de 2010.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

vlcb