Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n.º 990.10.286079-5

Autora: Prefeito Municipal de Ribeirão Preto

Objeto de impugnação: Lei n.º 12.284/2010, de 30/4/2010, do Município de Ribeirão Preto.

 

 

 

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal n.º 12.284/2010, de Ribeirão Preto, de origem parlamentar, que ‘Dispõe sobre a utilização de biocombustível na renovação da frota de veículos do Poder Público Municipal, e dá outras providências – Ao priorizar a utilização de biocombustível, no processo de renovação da frota de veículos do Poder Público Municipal, essa lei interferiu na esfera de discricionariedade do Prefeito, a quem compete a administração do Município – Violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes caracterizada (CE, arts. 5.º e 144) – Ação procedente.

 

Colendo Órgão Especial,

Eméritos Desembargadores:

 

            Cuida-se de ação proposta pelo Prefeito Municipal de Ribeirão Preto que visa a extirpar do ordenamento jurídico-constitucional vigente a Lei n.º 12.284/2010, de origem parlamentar, a qual ‘Dispõe sobre a utilização de biocombustível na renovação da frota de veículos do Poder Público Municipal, e dá outras providências’, cuja redação é a seguinte:

 

            Artigo 1º - O Poder Público Municipal, contemplando assim, a Administração Direta, Indireta e Fundacional de Ribeirão Preto, na renovação da frota de veículos de sua propriedade ou locados, deve priorizar a utilização de biocombustível, tais como, etanol e biodiesel.

 

            Artigo 2º - As despesas decorrentes do processo de renovação devem ser suportadas pelas dotações orçamentárias vigentes, precedidas de estudo de viabilidade técnico-financeira, de modo a optar sempre pelos princípios da qualidade e da economicidade e demais disposições legais que regem as despesas públicas.


            Artigo 3º - Os editais de licitação para a locação de veículos deverão, preferencialmente, selecionar veículos movidos a biocombustível, obedecidos os princípios da eficiência e economicidade.


            Artigo 4º - As despesas decorrentes da execução da presente lei, correrão por dotação orçamentária própria, suplementada se necessário.


            Artigo 5º - Esta lei entrará em vigor na data da sua publicação, revogando as disposições em contrário.

 

            Segundo consta na inicial, a referida lei padece de vício formal de iniciativa, pois compete ao Prefeito iniciar o processo legislativo quanto à matéria nela versada, e, por via de consequência, é incompatível com o princípio da independência e harmonia entre os Poderes.

         Houve concessão de liminar (fl. 30).

         O Procurador Geral do Estado optou por não defender a lei impugnada, que trata de matéria exclusivamente local, inexistindo, assim, interesse estadual na sua preservação.

         Apesar de notificada, a Câmara não prestou informações no prazo regimental (fl. 43).

 

             Em resumo, é o que consta nos autos.

 

            A ação é procedente.

         Com a edição da lei em epígrafe, o Legislativo imiscuiu-se novamente em assunto da alçada exclusiva do Prefeito, a quem cabe definir a necessidade e também o momento certo (oportunidade) de proceder-se à renovação da frota de veículos da Prefeitura e, inclusive, a escolha do tipo de combustível a ser utilizado, não podendo, no exercício dessa competência tipicamente administrativa, sofrer a interferência de outro Poder. 

         Ora, como se sabe, a função predominante da Câmara é a normativa, que a exerce por meio da edição de normas gerais, abstratas e obrigatórias de conduta. Ao Executivo compete basicamente a administração do Município, que compreende, a par de outras significativas atribuições, a gestão dos bens públicos e a aplicação das leis aos casos concretos.

         Quanto à matéria disciplinada na lei em exame, é bem de ver que, no processo de renovação da frota de veículos do Poder Público, ao Prefeito compete escolher a marca, o modelo e o tipo de combustível, a depender, obviamente, essa opção da necessidade ou do interesse público a ser atendido, pois, v.g., se a Prefeitura necessita de veículo para o transporte de cargas, não faria nenhum sentido adquirir veículo de passeio para esse fim.

         Como se sabe, a administração superior do Município compete ao Prefeito e, na abrangência dessa definição, compreende-se o poder de formular opções políticas e governamentais, desde que sempre as mais vantajosas ao atendimento do interesse público, e, nesse contexto, a priorização do biocombustível, nada obstante os elevados propósitos que nortearam a edição da norma em comento, nem sempre pode revelar-se a mais conveniente.

         Deveras, como a norma em questão alude expressamente à necessidade de resguardar a eficiência e economicidade, a adoção prioritária do biocombustível nem sempre se revela a opção mais vantajosa, pois o seu consumo é mais elevado em comparação com os derivados de petróleo (gasolina, óleo diesel) e, dependendo do preço praticado pelo mercado, sujeito a frequentes variações durante o ano, torna-se bem mais dispendiosa.

         De qualquer modo, como a renovação da frota de veículos do Poder Público municipal, ou mesmo a locação de veículos, são atos de competência privativa do Prefeito, que se situam na esfera de suas atribuições tipicamente administrativas, a iniciativa da Câmara de Vereadores de Ribeirão Preto de disciplinar o assunto por lei só pode ser interpretada como tentativa de implantação do ‘Estado Legal’, em que não há margem de liberdade ou discricionariedade ao administrador, cuja ação fica integralmente sujeita aos ditames legais. 

         Ocorre, porém, que o Prefeito não é mero cumpridor das ordens emanadas da Câmara. O sistema de separação de funções delineado pela vigente Constituição é bem definido: A Câmara legisla e, por sua vez, o Prefeito administra. E administrar significa, a par de outras coisas, a liberdade de ação e de opção administrativa nos limites circunscritos por lei (discricionariedade), o que, porém, não se equipara à liberdade total, sinônimo de anarquia. 

         É certo que, na sua correta acepção, o termo ‘priorizar’, que significa dar preferência a algo, não equivale a ‘obrigar’, mas sinaliza na prática que, se houver liberdade de escolha, diante das opções existentes no mercado e da necessidade a ser suprida, o Prefeito necessariamente terá que optar pelo biocombustível, ainda que no plano concreto essa opção possa não ser a mais vantajosa, e essa interferência do legislador, no exercício de poder tipicamente discricionário, é ofensiva ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes, mesmo considerando-se que a discricionariedade não equivale à liberdade total e que o Executivo está subordinado aos ditames da eficiência e economicidade.

         Por outro lado, nada obstante a terminologia empregada, cumpre obtemperar que essa lei não constitui mera carta de intenções. No seu comando está contida a seguinte mensagem subliminar: no processo de renovação da frota de veículos, o Prefeito deverá necessariamente optar pela aquisição de veículos que utilizem biocombustível, tais como etanol e biodiesel, desconsiderando, porém, tal propositura as variadas opções existentes no mercado, inclusive a novíssima tecnologia dos veículos híbridos e outras que surgirão futuramente.

         A eficiência e economicidade são princípios constitucionais e, obviamente, no exercício do seu poder discricionário, o Prefeito deverá sempre pautar-se pela obediência aos seus comandos, inclusive poderá ser responsabilizado civil, penal e administrativamente se vier a contrariá-los, mas, no plano da realidade, a opção pelo biocombustível nem sempre irá atender a esses ditames, o que serve para elidir qualquer argumento no sentido de que a norma em comento serve para prestigiar os referidos princípios.

         Não se vislumbra, em contrapartida, a violação da regra da iniciativa reservada, pois nem mesmo lei originária de projeto de autoria do Poder Executivo poderia impor restrição desarrazoada ao exercício de atividade tipicamente discricionária, o que, em termos práticos, implicaria em verdadeira renúncia a poder derivado diretamente da Constituição.

         Em suma, a Lei Municipal n. 12.284/2010, de Ribeirão Preto, é incompatível com o princípio da independência e harmonia entre os Poderes, que vem expressamente consagrado no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo, cuja observância é compulsória pelos Municípios, por força do art. 144 dessa mesma Carta Política.

         À vista do exposto, o Ministério Público opina pela procedência da presente ação direta a fim de ver declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 12.284/2010, de Ribeirão Preto, que é verticalmente incompatível com os arts. 5.º e 144 da Carta Paulista. 

 

                                São Paulo, 25 de novembro de 2010.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

krcy