Parecer
Autos nº. 990.10. 286080-9
Requerente: Prefeito do Município de Ribeirão Preto
Objeto: Lei nº 12.299, de 14 de maio de 2.010, do Município de Ribeirão Preto
1) Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 12.299, de 14 de maio de 2.010, do Município de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que cria o “Dia do Bebê” e dispõe sobre atribuições do Poder Executivo.
2) Procedência em parte, no que se refere ao estabelecimento de atribuições do Poder Executivo. Inconstitucionalidade formal subjetiva pelo vício de iniciativa e pela ofensa ao Princípio da Separação e da Harmonia entre os Poderes (art. 5º, caput, da Constituição do Estado) e ao art. 25, da Constituição do Estado de São Paulo
3) Parecer pela procedência parcial.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, tendo por objeto a Lei n.º 12.299, de 14 de maio de 2.010, do Município de Ribeirão Preto, que institui e inclui no calendário oficial de eventos do Município de Ribeirão Preto o “Dia do Bebê”.
O autor argumenta que a lei nasceu na Câmara Municipal e que, determinando à Administração que patrocine e divulgue eventos comemorativos ao “Dia do Bebê”, gera despesas para as quais não foram indicados recursos orçamentários. Diz que o ato normativo discrimina religiões e é incompatível com os arts. 5º, 25, 37, 47,II, III, 144 e 176, I todos da Constituição do Estado de São Paulo.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 31).
O Presidente da Câmara Municipal deixou de prestar informações a fls. 44.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 41/43).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
A Lei nº 12.299, de 14 de maio de 2010, do Município de Ribeirão Preto, que instituiu e incluiu no calendário oficial de eventos do Município de Ribeirão Preto o “Dia do Bebê“, tem a seguinte redação:
Art. 1º. – Fica instituído no Município de Ribeirão Preto o “Dia do Bebê”, que será comemorado, anualmente, no dia 15 de outubro.
§1º - O “Dia do Bebê” passa a integrar o calendário oficial de Datas e Eventos do Município de Ribeirão Preto.
§2º - Durante a semana em que se comemorar o “Dia o Bebê”, serão promovidos encontros, palestras, e outras atividades que envolvam a sociedade.
Art. 2º- Constituem objetivos a serem atingidos:
I- Fomentar a potencializar as ações governamentais e não governamentais em torno das questões básicas que envolvem as crianças de 0 a 6 anos;
II- Palestras, atividades comunitárias e ações educativas junto a população do município, sobre relação mãe-bebê, com objetivo de sensibilizar a comunidade sobre importância do pré-natal para a saúde do bebê, prevenção de acidentes no primeiro ano de vida, direitos da gestante e do recém-nascido e outros aspectos relacionados ao tema;
III- Incentivos às ações no âmbito municipal para aproximar a comunidade das questões sociais, estimulando adequadamente o desenvolvimento pleno das capacidades e potencialidade das crianças e suas famílias.
Art. 3º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.
A Lei Municipal impugnada pela presente ação direta é, realmente, inconstitucional, pois acaba por afrontar o princípio da separação de poderes.
Por
isso, há violação do disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a
seguinte redação:
Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
À
evidência que a lei municipal questionada, embora contenha proposta louvável, invade
competência privativa do chefe do Poder Executivo municipal.
Assim,
apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para deflagrar processo legislativo
para aprovação de lei com o conteúdo da que se pretende ver declarada como
inconstitucional, sob pena de indevida interferência de um Poder sobre o outro.
Postulado
básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes,
constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de
observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma
Carta Estadual, e que assim dispõe:
Artigo
5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo,
o Executivo e o Judiciário.
Este
dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na
idéia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes
que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas
de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é
fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que “o princípio da separação
dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada)
significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho
harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão
(poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em
caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou
pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência”
(J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1991, p. 585).
Como
conseqüência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual,
perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder
competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder
Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como,
por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a
separação ou divisão de poderes “consiste um confiar cada uma das funções
governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes
(...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a)
especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no
exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que,
além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente
independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José
Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros,
2006, 2ª ed., p. 44).
Também
por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos
mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e
disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder
Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina: “É a esse arranjo,
mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial
de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os
ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios
recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances),
tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers) (...)
A
distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a
determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através
da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação,
isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em
funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão
admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não
é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas
exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que
a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza
específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
Assim, se em princípio a competência normativa
é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de
natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de
terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à
iniciativa legislativa do Poder Executivo.
Esse
desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra
do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes
conclusões: a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser
exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência;
b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa
reservada em matérias inerentes à Administração Pública; c) há matérias
administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade
consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma
do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória
da iniciativa legislativa: “Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente,
de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva,
expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas
municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e
165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal
Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).
Portanto,
irradia-se do princípio da separação de poderes a própria técnica jurídica de
freios e contrapesos com a previsão de iniciativa legislativa reservada ao
Chefe do Poder Executivo em matéria administrativa.
Desta feita, ao dispor que durante a semana em que se comemorar o “Dia do Bebê”, a Prefeitura deve promover encontros, palestras, e outras atividades que envolvam a sociedade, a Câmara Municipal invadiu seara alheia – da administração pública – violando a prerrogativa do Prefeito de analisar a conveniência e oportunidade dessas providências.
Razão assiste ao promovente, ademais, quando diz que o dispositivo impugnado viola o art. 25 da Constituição do Estado.
Com efeito, o patrocínio de eventos, a promoção de
encontros, palestras, e outras atividades que envolvam a sociedade, geram
despesas. E a lei, como visto, não contém a indicação dos recursos necessários
para suportá-las, cumprindo anotar que, na dicção desse Sodalício, não basta
que o gasto seja imputado à conta “de verbas próprias do orçamento vigente”. Confiram-se, a título de
exemplificação, as seguintes decisões: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas
Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007,
v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.
Nesse
contexto, são inconstitucionais os parágrafos 1º e 2º, do art.1º, 2º e 3º, do
diploma normativo impugnado. Porém, não há razão para se declarar a
inconstitucionalidade do art. 1º “caput”, que cria o “Dia do Bebê”.
Posto isso, aguardo o julgamento de procedência parcial da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º, do art.1º, 2º e 3º, da Lei Municipal n. 12.299, de 14 de maio de 2.010, do Município de Ribeirão Preto.
São Paulo, 22 de novembro de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico