Parecer
Autos nº. 994.08.011246-1 (173.020-0/0)
Requerente: Prefeito Municipal de Martinópolis
Objeto: art.49, inc.IV e art.61, da Lei Complementar nº 38, do Município de Martinópolis (Estatuto dos Funcionários Públicos do Município)
Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Art.49, inc.IV e art.61, da Lei Complementar nº 38, do Município de Martinópolis (Estatuto dos Funcionários Públicos do Município). Previsão de pagamento de indenização, no ato de exoneração de servidores públicos. 2) Violação do princípio da isonomia (art. 5º caput, e art. 39 § 3º da CR/88, c.c. o art. 144 da CE). Desrespeito à disparidade constitucionalmente estabelecida entre o regime dos servidores estatutários (titulares de cargos públicos) e o regime de servidores celetistas (titulares de empregos públicos). Criação de benefício assimilado à indenização compensatória contra a despedida indevida (art. 7º, I da CR/88), ou ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (art. 7º, III da CR/88). 3) Violação do princípio do interesse público e das exigências do serviço (art. 128 da CE).
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Martinópolis, tendo por objeto os seguintes dispositivos legais: art.49, inc.IV e art.61, da Lei Complementar nº 38, do Município de Martinópolis (Estatuto dos Funcionários Públicos do Município).
Sustenta o autor que as normas legais acima especificadas afrontam os princípios que norteiam a Administração Pública, tutelados pelo art.37 da Constituição Federal e art. 111 da Constituição Bandeirante.
Os dispositivos legais tiveram a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 173/174).
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 273/275).
O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 273 e segs., em defesa dos dispositivos legais impugnados.
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Prefacialmente,
como anota Celso Antônio Bandeira de Mello, “o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as
situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar
pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por
fim, consoante averbado insistentemente, cumpre ademais que a diferença do
regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta” (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade,
3ªed., 12ª tir., São Paulo, Malheiros, 2004, p.35). No mesmo sentido,
confira-se: José Afonso da Silva, Curso
de direito constitucional positivo, 13ªed., São Paulo, Malheiros, 1997,
p.215.
A
diferenciação feita pelo legislador é possível, quando, objetivamente,
constatar-se um fator de discrímen que dê razoabilidade à diferenciação de
tratamento contida na lei, pois, a igualdade pressupõe um juízo de valor, e um
critério justo de valoração, proibindo o arbítrio, que apenas ocorrerá “quando a disciplina legal não se basear num:
(i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer
diferenciação jurídica sem um fundamento razoável” (J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição,
3ª ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1998, p. 400/401).
Pois
bem.
Não
se pode equiparar integralmente a situação de servidores públicos cuja relação
com a Administração Pública é estatutária, com aqueles cuja relação com o Poder
Público é empregatícia, com aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho.
Ou
seja, nem todos os direitos assegurados aos titulares de emprego público
(vínculo celetista) poderão ser aplicados aos titulares de cargos públicos
(vínculo estatutário).
Isso
decorre de uma simples razão: alguns dos direitos fundamentais assegurados aos
trabalhadores regidos pela CLT (privados ou públicos) já são confortados por
outras características ou direitos decorrentes da relação funcional existente
dos titulares de cargo e a Administração Pública, dado seu caráter estatutário.
Exemplo
mais significativo disso, é a inexistência do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço para os titulares de cargos públicos.
Dada
a situação que tal benefício (FGTS) busca preservar, observada a possibilidade
sempre iminente de perda do emprego, não encontra espaço tal garantia no regime
estatutário do servidor público titular de cargo. Para assegurar a posição
pessoal deste último (além da qualidade do próprio serviço público prestado),
existe a garantia da estabilidade (art. 41 da CR/88).
Não
é por outra razão, contrario sensu,
que a própria sistemática constitucional assegura a estabilidade, preenchidas
certas condições, apenas aos titulares de cargos públicos, excluindo dela os
titulares de empregos públicos.
Como
observa em sede doutrinária, a propósito, a Ministra Carmen Lúcia Antunes
Rocha, “a estabilidade como propriedade
jurídica somente pode ser conferida, pois, a uma parcela de servidores
públicos, dela se excluindo o empregado público, sujeito a regime jurídico que
estranha a regra do art. 41 da Constituição da República (...)” (Princípios constitucionais dos servidores
públicos, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 254).
Note-se,
ainda a tal propósito, que justamente em razão da diversidade de situações existentes
entre o regime jurídico estatutário e a relação fundada na CLT, é que a própria
Constituição da República determina a aplicação, aos titulares de cargos
públicos (estatutários) não de todos, mas apenas alguns dos direitos sociais
aplicáveis aos empregados (públicos ou privados), nos termos da redação do
art. 39 §3º da CR/88, com remissão a apenas alguns incisos do art. 7º da
própria Carta.
Trata-se
de extensão aos servidores ocupantes de cargos públicos, de apenas alguns
direitos sociais (cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.576;
Hely Lopes Meirelles, Direito
Administrativo Brasileiro, cit., p.481)
Como
acentua Edmir Netto de Araújo, ao cotejar a condição do servidor estatutário
com a do servidor celetista, “é evidente
que os regimes jurídicos não são iguais (...) a doutrina entende que a todos os
servidores (inclusive, no que couber, aos celetistas) se aplicam as disposições
gerais constantes do art. 37 e 38, seus incisos e parágrafos, da CF (...), mas
que os art.s 39 e 41 e seus dispositivos se aplicam somente (...) aos assim
chamados servidores públicos, titulares de cargos públicos” (Curso de Direito Administrativo, São
Paulo, Saraiva, 2005, p. 390/391).
Essa
disparidade de tratamento – na hipótese destacada como exemplo para o
raciocínio, a não aplicação da estabilidade ao servidor celetista – vem sendo
reafirmada pelo E. STF. Confira-se: (AI 465.780-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa,
julgamento em 23-11-04, DJ de 18-2-05; AI 660.311-AgR, Rel. Min. Eros Grau,
julgamento em 9-10-07, DJ de 23-11-07; AI 387.498-AgR, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, julgamento em 23-3-04, DJ de 16-4-04; RE 242.069-AgR, Rel. Min.
Carlos Velloso, julgamento em 22-10-02, DJ de 22-11-02; entre outros.
Note-se
que para o empregado (público ou privado), a Constituição da República
assegura, entre outros direitos sociais, a proteção contra despedida arbitrária
ou sem justa causa, inclusive com a previsão da indenização compensatória (art.
7º, I da CR/88), bem como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, nos termos
do (art. 7º, III da CR/88).
Tais
direitos não são assegurados aos ocupantes de cargos públicos (estatutários) -
como já afirmado -, por força da discriminação contida no art. 39, § 3º da
CR/88.
Trata-se,
portanto, de discriminação constitucional expressa, fundada em relevante fator
de diversificação de tratamento, consistente na diversidade de regime jurídico
existente entre o titular de cargo público e o titular de emprego público.
Isso
significa afirmação do princípio da igualdade, consistente, nessa percepção, em
tratar desigualmente os desiguais.
Em
conclusão, é legítimo afirmar que o legislador municipal violou o princípio
da isonomia, na medida em que criou vantagem pecuniária para titular de
cargo em comissão que, na prática, ainda que sob denominação diversa,
confere-lhe direitos sociais similares àqueles contidos no art. 7º, I e III da
CR/88 (indenização compensatória e Fundo de Garantia), proscritos da relação
jurídica estatutária por força do art. 39 § 3º da CR/88.
Esse
é um consistente fundamento para o reconhecimento da inconstitucionalidade das
normas legais do município de Martinópolis que concedem aos servidores públicos,
por ocasião da sua exoneração, indenização compensatória.
Ao
fazê-lo, em síntese, o legislador municipal violou o princípio da isonomia, que
no caso decorre do art. 5º caput e do
art. 39 § 3º da CR/88, e aplica-se aos Municípios por força do art. 144 da
Constituição Paulista.
Não bastasse isso, a vantagem financeira criada pelos dispositivos impugnados não atende ao disposto no art. 128 da Constituição Paulista, assim redigido:
“Art. 128 – As
vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando
atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.”
Vale ponderar que tal princípio pode também ser extraído da exigência de eficiência e moralidade na Administração Pública, nos termos do art. 37 caput da CR/88.
Note-se
que os atos normativos impugnados concederam benefício que não encontra amparo,
de forma alguma, no interesse público e nas exigências do serviço.
O
único aspecto que o legislador municipal levou em consideração, na hipótese em
exame, foi a melhoria da situação financeira de determinada gama de servidores
públicos, por ocasião de sua exoneração. A perspectiva em que, de forma clara,
se deu a instituição da “indenização compensatória decorrente de exoneração”,
foi exclusivamente a do maior conforto e comodidade dos respectivos
beneficiários.
Não
há, sequer superficialmente, nenhum dado nos atos normativos em exame que
indique a possibilidade de existência de qualquer interesse público, ou
exigência decorrente do serviço, que tenha sido atendida em função da
instituição do benefício.
Anote-se,
por derradeiro, que como já amplamente noticiado, em incidente de
inconstitucionalidade, o Egrégio Órgão Especial desta Corte já se pronunciou a
respeito deste assunto, nos termos seguintes:
"Pela análise do artigo 61 da Lei nº 2.218/00 -
atual artigo 61 da Lei Complementar nº 38/03 - Estatuto dos funcionários
públicos do Município de Martinópolis - verifica-se que realmente houve afronta
aos princípios constitucionais da moralidade e da supremacia do interesse
público (art. 37, CF, e 111, da Constituição do Estado de São Paulo). O servidor estatutário é regido por lei
própria e conta com o benefício da estabilidade no serviço público, podendo
somente ser demitido por meio de processo administrativo, norteado pelos
princípios da ampla defesa e do contraditório, que comprove a justa causa. Não podendo, portanto, ser dispensado ex-officio. Se a dispensa for a pedido do servidor - como
ocorre no presente caso - da mesma forma se torna inconstitucional o pagamento
da indenização, já que o desejo da dispensa é do próprio servidor, não havendo
o porquê de se indenizá-lo, ausente, o interesse público." (Incidente de Inconstitucionalidade de Lei nº
144.149-0/0, Relator Exmo. Des. Viana Santos)
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do art.49, inc.IV e art.61, da Lei Complementar nº 38, do Município de Martinópolis (Estatuto dos Funcionários Públicos do Município).
São Paulo, 28 de janeiro de 2010.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos -
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