Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos n. 994.09.222786-0 (185.748.0/4-00)

Autor: Prefeito Municipal de Jundiaí

Objeto de impugnação: Lei Complementar n. 474, de 22 de maio de 2009, do Município de Jundiaí.

 

 

 

 

 

 

Ementa:

 

1)     Lei n. 474, de 22 de maio de 2009, do Município de Jundiaí, “que altera o Código Tributário para tributar, na forma que especifica, área de estacionamento de “shopping center”, hipermercado e estabelecimento congênere que onere o usuário pelo uso deste”, de autoria parlamentar.

2)   Aumenta a Planta de Valores do IPTU, com alegação da vedação de utilização do tributo com finalidade de confisco (art. 163, IV, da Constituição do Estado).

3)     Elevação de alíquota de ISS, para a prestação do mesmo tipo de serviço. Violação do princípio da isonomia (art. 111, 144 e 163, II, da Constituição do Estado de São Paulo).

4)     Parecer pela declaração de inconstitucionalidade.

 

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

 

 

 

 

O Prefeito Municipal de Jundiaí formulou a presente ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 474, de 22 de maio de 2009, do Município de Jundiaí, que “altera o Código Tributário, para tributar, na forma que especifica, área de estacionamento de “shopping center”, hipermercado e estabelecimento congênere que onere o usuário pelo uso deste”.

Informa o autor que o projeto de lei de autoria parlamentar que deu origem a lei questionada foi vetado pelo Chefe do Executivo, lastreado em parecer jurídico que concluiu pela inconstitucionalidade do respectivo projeto. No entanto, o veto foi derrubado na Câmara Municipal e o citado projeto de lei acabou sendo aprovado.

Sustenta que citada lei complementar padece de inconstitucionalidade, na medida em que o aumento de 75% (setenta e cinco por cento)  da Planta de Valores do IPTU, para shoppings centers, hipermercados e estabelecimentos afins, que explorem economicamente seus estacionamentos de veículos, não atende ao princípio da vedação ao confisco, recaindo de forma desproporcional sobre a propriedade imóvel, nos termos do inciso IV, do art. 163, da Constituição Paulista, além do que contraria o art. 33, do Código Tributário Nacional.

O aumento do IPTU apenas visa a inviabilizar o direito da livre iniciativa em cobrar pelo serviço de estacionamento disponibilizado aos clientes, violando os arts. 170 da Constituição Federal e art.  177 da Constituição Estadual.

Por fim, afirma que a instituição de ISS com alíquota de 5% (cinco por cento) para os shoppings centers, hipermercados e congêneres, sobre a cobrança do período de estadia dos veículos estacionados por seus clientes, fere o princípio da isonomia (Art. 163, II, da Constituição Estadual), eis que a legislação municipal estabelece a cobrança do ISS com alíquota de 4% (quatro por cento) para a guarda de veículos automotores de seus clientes.

Houve deferimento do pedido de medida liminar, sendo suspensa a eficácia da indigitada lei com efeitos ex nunc,  fls. 23/24.  

A fls. 38/39 estão as informações da Câmara Municipal.

Devidamente citado, o Procurador-Geral do Estado quedou-se inerte, fls. 69.

É o breve relato.

A Lei Complementar n. 474, de 22 de maio de 2009, do Município de Jundiaí, que “altera o Código Tributário, para tributar, na forma que especifica, área de estacionamento de “shopping Center”, hipermercado e estabelecimento congênere que onere o usuário pelo uso deste”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - O Código Tributário (Lei Complementar 460, de 22 de outubro de 2008), no Anexo I – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, passa a vigorar acrescido deste dispositivo:

11

Serviços de Guarda, Estacionamento, Armazenamento, Vigilância e Congêneres

                  %

11.01

(...)

11.01.01

(...)

 

 

(...)

(...)

 

 

 

11.01.05

Guarda e/ou estacionamento de veículos terrestres automotores em “shopping center”, hipermercado e estabelecimento congênere, cujo estacionamento, próprio ou não, coberto ou não, onere o usuário.

 

   5%

 

Art. 2º - O Código Tributário (Lei Complementar n. 460, de 22 de outubro de 2008) passa a vigorar acrescido deste artigo:

“Art. 116-A A Planta de Valores do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana- IPTU terá acréscimo de 75% (setenta e cinco por cento) sobre a área do estacionamento para ´shopping center`, hipermercado e estabelecimento  congênere que efetuar algum tipo de cobrança onerosa de seu estabelecimento de veículos, próprio ou não, coberto ou não, aos usuários”.

Art. 3º - O Poder Executivo, na área de sua competência, estabelecerá as formas de cálculo e arrecadação da tributação prevista nesta lei complementar, de forma que a sua aplicação se dê a partir de 1º de janeiro do ano subseqüente à sua publicação”.

Art. 4º - Esta lei complementar entra em vigor na data de sua publicação, produzindo seus efeitos a partir de 1º de janeiro do ano subseqüente “.

De fato, ao acrescer a Planta de Valores do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU, em 75% (setenta e cinco por cento) sobre a área do estacionamento para “shopping center”, hipermercado e estacionamento congênere que efetuar algum tipo de cobrança onerosa de seu estabelecimento de veículos, próprio ou não, coberto ou não, aos usuários, a lei impugnada se divorciou dos parâmetros constitucionais do art. 156,§1º, I e II, da Constituição Federal.

Recorde-se que, anteriormente à promulgação da EC 29/00, não se admitia a progressividade fiscal do IPTU, diante do caráter real desse tributo, incompatível com a dosimetria vinculada à capacidade econômica do contribuinte. A progressividade autorizada pelo primitivo § 1º do art. 156 da CF (“§ 1º - O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade”) era a extrafiscal, com vista exclusivamente à consecução dos objetivos traçados pelo art. 182, § 2º, da Carta Republicana.

Essa realidade perdurou até o dia 13 de setembro de 2000, quando foi promulgada a Emenda Constitucional nº 29. Por ela se alterou o § 1º do art. 156, da Constituição Federal, que passou a vigorar com a seguinte redação:

Art.156 ...

§ 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá: (NR)

I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e (AC)

II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel. (AC)

A partir daí, passou-se a entender que:

“o IPTU progressivo pode ser instituído tanto com fundamento no inciso II do § 4º do artigo 182 da Constituição Federal, para, atendendo a um preceito de política urbana, induzir o proprietário a fazer com que seu imóvel cumpra a função social, de acordo com o determinado no inciso XXIII do artigo 5º da Lei Magna, como também com supedâneo no artigo 156, § 1º, I e II, da Constituição da República” (INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 149.510-0/5, j. 14.11.2007, rel. ALMEIDA GUILHERME, v.u., grifei).

A progressividade que tem em vista a capacidade contributiva é aferível em função do próprio imóvel (e não da fortuna em dinheiro de seu proprietário). É o que se denomina progressividade fiscal, de que trata o art. 145, § 1º, primeira parte, c.c. o art. 156, § 1º, I, da CF.

A outra progressividade, chamada progressividade extrafiscal, decorre do art. 156, § 1º, II, CF. Nada tem a ver com a capacidade contributiva. As alíquotas diferentes são estabelecidas conforme a localização e do uso do imóvel e, segundo a doutrina (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 23ª. ed., rev., ampl. e atual. até a EC 53/2006, São Paulo: Malheiros, 2007, p. 107-115), dependem da edição do plano diretor. Aqui está em jogo a função social da propriedade.

No caso dos autos, o legislador local instituiu progressividade extrafiscal olvidando o modelo constitucional, pois aumentou em 75% (setenta e cinco por cento) a planta de valores do IPTU sobre a área do estacionamento para “shopping center”, hipermercado e estabelecimento congênere que efetuar algum tipo de cobrança onerosa de seu estacionamento de veículos, próprio ou não, coberto ou não, levando, pois em consideração para tanto, a localização e a utilização dos referidos estabelecimentos comerciais que oferecem referida prestação de serviço onerosa aos consumidores que os freqüentam.

 

Essa inovação não se ajusta à norma-padrão de incidência do tributo pré-traçada na Constituição Federal, do que decorre a sua inconstitucionalidade, na medida em que consiste em penalização dos citados contribuintes, posto que não pode ser deles exigido que paguem mais imposto porque estes colocam a disposição de seus freqüentadores o serviço oneroso de estacionamento de veículos.

Observe-se que o subjetivismo e a discricionariedade presente no referido acréscimo de IPTU, implicam numa quebra da segurança jurídica e, potencialmente, do direito de propriedade dos mencionados contribuintes, tendo em vista que em nenhum momento justificado.

Nem mesmo a autorização constitucional de alíquotas diferenciadas em função do uso do imóvel autoriza a opção do legislador municipal.

Quando a Constituição se refere ao tipo de uso do imóvel institui classificação genérica, para distinção de um imóvel residencial ou comercial, não concedendo com isso que a norma local, a pretexto de complementá-la, chegue a minúcias que dizem respeito ao comportamento do proprietário do imóvel, como ocorre no caso em tela, em que há majoração do IPTU em função da eventual cobrança do serviço de estacionamento de veículos exercido no bem objeto de tributação.

Além de todas essas dificuldades, as alíquotas a serem criadas numa lei que aplique a progressividade, deverão observar certos parâmetros quantitativos que impeçam de serem consideradas confiscatórias, pois tanto o art. 150, IV, da Constituição Federal, como o art. 163, IV, da Constituição do Estado de São Paulo, proíbem tributo com efeito de confisco.

No caso em concreto, no entanto, citados parâmetros não foram observados, razão pela qual o acréscimo do IPTU nos moldes em que ocorreu, tem efeito confiscatório, sendo inconstitucional.

É que o legislador local não observou o princípio da não confiscatoriedade, conduta marcada pelo equilíbrio e moderação.

O efeito do confisco está presente, na medida em que o acréscimo do IPTU em 75% (setenta e cinco por cento) sobre a área do estacionamento para “shopping center”, hipermercados e congêneres que efetuar algum tipo de cobrança onerosa de seu estacionamento é tão gravoso, que dificulta, ou melhor, praticamente inviabiliza aos referidos estabelecimentos comerciais a exploração da prestação onerosa do serviço de estacionamento de veículos.

Os tributos devem ser dosados com razoabilidade, de modo a valorizar a livre iniciativa, um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito a teor dos arts. 1º, V e art. 170, caput, ambos da Constituição Federal.

Entretanto, na hipótese em questão, aconteceu justamente o contrário.

O tributo jamais pode tolher a liberdade de exercício das atividades comerciais lícitas.

A abrupta e excessiva majoração noticiada implica em verdadeira sanção aos estabelecimentos comerciais acima nominados caso desejem cobrar estacionamento de seus clientes, agredindo com tal prática o princípio da não confiscatoriedade, já que trará sérias repercussões nas atividades e patrimônio dos contribuintes.     

O art. 1º, da mencionada lei, por outro lado, igualmente, padece de  inconstitucionalidade.

Isto porque, através do mesmo restou instituída a título de ISS, para guarda e/ou estacionamentos de veículos terrestres em  “shopping center”, hipermercado e congênere, cujo estacionamento, próprio ou não coberto ou não, onere o usuário, a alíquota de 5% (cinco por cento), enquanto item n. 11.01.01, do Código Tributário do Município de Jundiaí (Lei n. 460/2008), estipula à alíquota de 4% (quatro por cento), para igual tributo e mesmo tipo de prestação de serviço (fls. 46).  

Note-se, a autonomia legislativa consagrada aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, pois é limitada por diversos princípios previstos na Constituição do Estado de São Paulo.

Referidos princípios funcionam como uma limitação à autonomia municipal de autolegislação, consistente na edição de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar.

Por isso, a autonomia legislativa consagrada aos Municípios está sujeita a algumas regras fundamentais e impostergáveis.

Nesse contexto, igualmente, é inconstitucional o art. 1º, da Lei n. 474/2009 impugnado na presente ação direta, pois, sob o pretexto de agir nos estritos limites de sua autonomia legislativa, estabeleceu a título de ISS, alíquota superior do que anteriormente estipulada para o mesmo tipo de prestação de serviço, de forma  ofensiva ao princípio da isonomia, na medida em que tratou de maneira desigual, o mesmo tipo de prestação de serviço.

Ocorre que a Constituição do Estado de São Paulo, em seu art. 111, impõe ao Poder Público a observância do mencionado princípio fundamental, por força do art. 144 da Lei Maior Paulista.

Pode-se, pois, cotejar o conteúdo normativo do dispositivo legal citado, aos arts. 111 e 144 da Constituição do Estado e concluir-se pela inconstitucionalidade.

Ante o exposto, aguardo a procedência da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei n. 474, de 22 de maio de 2009, do Município de Jundiaí.

 

São Paulo, 08 de abril de 2010.

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

- Assuntos Jurídicos –

 

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