Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 994.09.222856-1 (185.686-0/0)

Requerente: Prefeito Municipal da Estância Balneária de Ubatuba

Objeto: Lei nº 3.234, de 29 de setembro de 2009, do Município da Estância Balneária de Ubatuba

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 3.234, de 29 de setembro de 2009, do Município da Estância Balneária de Ubatuba, que “autoriza o Poder Executivo a conceder desmembramento do lançamento tributário relativo ao IPTU e dá outras providências”. Alegação de que a norma, por tratar do parcelamento do solo urbano, demanda a iniciativa do Prefeito. Questão controvertida. Tribunal que pode julgar por fundamento diverso. Constatação de que a lei cria ônus e despesas para a Administração, inviabilizando a iniciativa parlamentar (art. 47, II c.c. o art. 144, CE). Irrelevância do caráter “autorizativo” da lei impugnada. Parecer pela declaração de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito, tendo por objeto a Lei nº 3.234, de 29 de setembro de 2009, do Município da Estância Balneária de Ubatuba, que “autoriza o Poder Executivo a conceder desmembramento do lançamento tributário relativo ao IPTU e dá outras providências”.

Sustenta o autor que o texto legal trata de parcelamento do solo urbano e, por isso, demandaria projeto de iniciativa do Executivo. Como a lei foi concebida por Vereador, teria havido ofensa ao princípio da separação dos poderes, contrariando-se os artigos 5º e 144 da Constituição Paulista.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 13).

O Procurador-Geral do Estado, embora regularmente citado, e o Presidente da Câmara Municipal não se pronunciaram em defesa de lei impugnada (fls. 26 e 27).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada originou-se de projeto do Vereador ROBÉRIO FREDIANI (fls. 11), para “autorizar” o Poder Executivo a “conceder desmembramento do lançamento tributário relativo ao IPTU – Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana – em tantas subunidades quantas forem constatadas no imóvel de propriedade” (art.1º).

Sustenta o Prefeito que a norma trata de parcelamento do solo urbano. Se ele estiver certo, será patente a inconstitucionalidade do ato normativo, pois toda política urbana exige amplos e prévios estudos a cargo da prefeitura ou de profissionais de notória especialidade por ela contratados, supervisionados pelo prefeito, inviabilizando, assim, as iniciativas da espécie quando subscritas no parlamento.

A tese do Alcaide se fragiliza, entretanto, diante da redação do art. 3º, segundo o qual “o desmembramento do lançamento tributário do IPTU não implica em desdobro do imóvel e/ou seu parcelamento, não servindo a instruir quaisquer procedimentos administrativos de tal espécie, permanecendo em vigor as normas próprias que regem a matéria”.

Esse dispositivo parece situar a lei na categoria das normas tributárias, no âmbito da qual a iniciativa é concorrente (art. 61, CF e art. 24, CE).

De toda sorte, embora por fundamento diverso, a lei se afigura inconstitucional.

Para a solução da lide, deve-se lembrar, com Alfredo Buzaid, que “o tribunal não se pronunciará sobre a constitucionalidade de uma lei, salvo em litígio regularmente submetido ao seu conhecimento” (Da ação direta, São Paulo: Saraiva, 1958, p. 22) e que, uma vez instaurada a relação processual do controle concentrado, nada impede que se julgue procedente a ação por causa de pedir diversa da exposta na inicial.

De fato, no julgamento da ADI n. 2.396/MS, a Ministra Ellen Gracie afirmou ser possível “pelos fatos narrados na inicial, verificar[-se] a ocorrência de agressão a outros dispositivos constitucionais que não os indicados na inicial” (Pleno do STF em 08/05/2003. Publicação: DJ de 1/8/2003, p. 100).

Aliás, no julgamento da ADI-MC n. 2396/MS, o Pleno do Supremo, em acórdão relatado pela mesma magistrada, foi mais incisivo: “O Tribunal não está adstrito aos fundamentos invocados pelo autor, podendo declarar a inconstitucionalidade por fundamentos diversos dos expendidos na inicial” (DJ de 14/12/2001, p. 23).

Desse modo, está aberta a possibilidade de se aferir a constitucionalidade da lei impugnada na inicial em face de qualquer dispositivo da Carta Bandeirante, ainda que o autor da ação não o tenha indicado expressamente.

E, no caso vertente, a lei projetada pelo vereador é inconstitucional porque somente ao Chefe do Poder Executivo assiste a iniciativa de leis que criem – como é o caso – obrigações e deveres para órgãos municipais (art. 47, inc. II da Constituição Estadual, de aplicação extensível aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta).

Note-se que a lei em análise impõe à Administração diversos ônus, como o de realizar vistoria técnica no local objeto do “desmembramento tributário”, a fim de constatar a situação fática, ou o de realizar atualização cadastral diante da constatação de construções (art. 2º, § 1º).

Essas providências administrativas aumentam as despesas da Prefeitura, sendo certo, também, que não se encontra na lei a fonte de tais recursos.

O Poder Legislativo invadiu claramente a seara da administração pública, da alçada exclusiva do Prefeito, violando-se a prerrogativa deste em analisar a conveniência e oportunidade das providências que a lei quis determinar. Bem por isso, a matéria somente poderia objeto de tramitação legislativa por proposta do próprio Chefe do Poder Executivo.

Ofendeu-se, igualmente, o princípio basilar da separação de poderes. Como já proclamou esse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa (art. 1º), o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui  um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIN 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 3.234, de 29 de setembro de 2009, do Município da Estância Balneária de Ubatuba.

São Paulo, 9 de abril de 2010.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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