Parecer
Processo n. 994.09.223520-1 (185.276-0/0-00)
Requerente: Prefeito Municipal de Mirassol
Objeto: Lei n. 3.243, de 21 de maio de
2009, do Município de Mirassol
Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 3.243/09, do Município de Mirassol. Obrigação de fazer (limpeza e manutenção). Imóveis. Poder de Polícia. Multa pelo descumprimento. Argüição de confisco. Improcedência. 1. A proibição do confisco é limitação constitucional ao poder de tributar (art. 163, IV, CE). 2. Há se distinguir entre multa instituída como obrigação tributária acessória (ou secundária), ou sanção pelo descumprimento desta, da multa estabelecida como sanção por ato ilícito desprovida de caráter tributário (e dissociada da atividade tributária), que não se sujeita ao art. 160, § 1º, CE. 3. Sanção pecuniária que é instrumento da imperatividade e da exigibilidade da polícia administrativa na medida em que o poder público a instituiu colimando a coação do administrado para o cumprimento de obrigação de fazer. 4. Embora tendo natureza não tributária nem por isso se exonera a observância dos princípios de proporcionalidade e de razoabilidade (art. 111, CE), até porque a vedação do confisco os expressa em nível mais particularizado. 5. A multa não aponta para exagero ou excesso, senão potencialidade coativa para o administrado cumprir a obrigação positiva imposta, cuja dimensão não ofende a parâmetros razoáveis e proporcionais.
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se
de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 3.243, de 21 de
maio de 2009, do Município de Mirassol, de iniciativa parlamentar, que dispõe
sobre a obrigatoriedade, pelos proprietários, de limpeza e manutenção de
imóveis, e impõe penalidades, alegando que a previsão de multa pelo
descumprimento implica violação aos arts. 160, § 1º, e 163, IV, da Constituição
Estadual (fls. 02/18). A Câmara Municipal prestou informações defendendo a
constitucionalidade da lei (fls. 54/57) e a douta Procuradoria-Geral do Estado
declinou de sua participação na lide (fls. 49/51).
2. É
o relatório.
3. A
lei local impugnada impõe ao proprietário, inquilino, condômino, titular de
domínio útil e possuidor de imóvel localizado na zona urbana ou de expansão
urbana a obrigação de limpeza, prescrevendo as sanções de advertência e multa
pelo descumprimento.
4. Argumenta
o Chefe do Poder Executivo de Mirassol que a multa prevista – de R$ 4,00
(quatro reais) por metro quadrado, calculados sobre a área total do terreno em
desacordo, e o dobro do valor da última autuação em caso de reincidência (arts.
4º, §§ 1º e 3º, e 5º) - tem caráter confiscatório, e, portanto, viola o § 1º do
art. 160 e o inciso IV do art. 163 da Constituição Estadual, que reproduzem o §
1º do art. 145 e o inciso IV do art. 150 da Constituição Federal.
5. A proibição do confisco, no campo do
direito tributário, significa a vedação da utilização de tributo com a
finalidade de drástica apropriação, total ou parcial, do patrimônio ou da renda
do contribuinte, comprometidas com obrigação tributária insuportável,
abrangendo as multas decorrentes do descumprimento da obrigação tributária
(STF, AI-AgR 482.281-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 30-06-2009,
v.u., DJe 20-08-2009). O exame da
configuração do confisco, nesses casos, é orientada pelo princípio da
proporcionalidade, como se verifica dos seguintes arestos:
“A desproporção entre o desrespeito à norma
tributária e sua conseqüência jurídica, a multa, evidencia o caráter
confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em
contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal” (STF,
ADI 551-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, 24-10-2002, v.u., DJ
14-02-2003, p. 58).
“IPI. MULTA MORATÓRIA. ART. 59. LEI 8.383/91.
RAZOABILIDADE. A multa moratória de 20% (vinte por cento) do valor do imposto
devido, não se mostra abusiva ou desarrazoada, inexistindo ofensa aos
princípios da capacidade contributiva e da vedação ao confisco. Recurso
extraordinário não conhecido” (STF, RE 239.964-RS, 1ª Turma, Rel. Min. Ellen
Gracie, 15-04-2003, v.u., DJ 09-05-2003, p. 61).
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL.
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. MULTA. VEDAÇÃO DO EFEITO DE CONFISCO.
APLICABILIDADE. RAZÕES RECURSAIS PELA MANUTENÇÃO DA MULTA. AUSÊNCIA DE
INDICAÇÃO PRECISA DE PECULIARIDADE DA INFRAÇÃO A JUSTIFICAR A GRAVIDADE DA
PUNIÇÃO. DECISÃO MANTIDA. 1. Conforme orientação fixada pelo Supremo Tribunal
Federal, o princípio da vedação ao efeito de confisco aplica-se às multas. 2.
Esta Corte já teve a oportunidade de considerar multas de 20% a 30% do valor do
débito como adequadas à luz do princípio da vedação do confisco. Caso em que o
Tribunal de origem reduziu a multa de 60% para 30%. 3. A mera alusão à mora,
pontual e isoladamente considerada, é insuficiente para estabelecer a relação
de calibração e ponderação necessárias entre a gravidade da conduta e o peso da
punição. É ônus da parte interessada apontar peculiaridades e idiossincrasias
do quadro que permitiriam sustentar a proporcionalidade da pena almejada.
Agravo regimental ao qual se nega provimento” (STF, RE-AgR 523.461-MG, 2ª
Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 06-04-2010, v.u., DJe 22-04-2010).
6. A
proibição do confisco expressa tradicional limitação constitucional ao poder de
tributar. Todavia, há se distinguir entre multa instituída como obrigação
tributária acessória (ou secundária) ou sanção pelo descumprimento desta da
multa estabelecida como sanção por ato ilícito desprovida de caráter tributário
(e dissociada da atividade tributária), e que não se sujeita ao princípio da
capacidade contributiva (art. 160, § 1º, Constituição Estadual), como emerge da
situação apresentada em que a sanção pecuniária é instrumento da imperatividade
(poder extroverso) e da exigibilidade do exercício da polícia administrativa
(poder de polícia) na medida em que o poder público a instituiu colimando a
coação do administrado para o cumprimento de obrigação de fazer.
7. Embora
tendo natureza não tributária nem por isso se exonera a observância dos
princípios de proporcionalidade e de razoabilidade (art. 111, Constituição
Estadual).
8. É
bem verdade que a Suprema Corte não teve a oportunidade de pronunciar-se pela
extensão da proibição do confisco às multas não-tributárias. Neste sentido:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. VEDAÇÃO DO USO DE
TRIBUTO COM EFEITO DE CONFISCO. APLICABILIDADE ÀS MULTAS. ART. 150, IV DA
CONSTITUIÇÃO. AUSÊNCIA DE DISTINÇÃO A RESPEITO DO TIPO DA MULTA. PROCESSUAL
CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. ALEGADA INAPLICABILIDADE DO ART. 150, IV DA
CONSTITUIÇÃO À MULTA DE CARÁTER NÃO-TRIBUTÁRIO. INOVAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. Não
cabe à parte inovar em agravo regimental, trazendo à discussão questão que não
tenha sido objeto do recurso extraordinário. Agravo regimental a que se nega
provimento” (STF, AI-AgR 539.833-MG, 2ª Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa,
20-04-2010, v.u., DJe 27-05-2010).
9. No exame da exigência de contribuição
pela estada de veículo apreendido, o Superior Tribunal de Justiça constatou a
existência de taxa e reafirmou a necessidade de observância da proibição ao
confisco:
“RECURSO
ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ N.º
08/2008. ADMINISTRATIVO. VEÍCULO. AUSÊNCIA DE REGISTRO E LICENCIAMENTO. ART.
230, V, DO CTB. PENAS DE MULTA E
APREENSÃO. MEDIDA ADMINISTRATIVA DE REMOÇÃO. LIBERAÇÃO CONDICIONADA AO
PAGAMENTO DE MULTAS JÁ VENCIDAS
E DAS DESPESAS COM REMOÇÃO E DEPÓSITO, ESTAS LIMITADAS AOS PRIMEIROS TRINTA
DIAS. ART. 262 DO CTB. PRECEDENTES DE AMBAS AS TURMAS DE DIREITO PÚBLICO.
1. Liberação
do veículo condicionada ao pagamento das multas já vencidas e regularmente notificadas.
1.1. Uma das
penalidades aplicadas ao condutor que trafega sem o licenciamento, além da multa, é a apreensão do veículo, cuja liberação
está condicionada ao prévio pagamento das multas impostas, taxas e despesas de remoção e estada, nos termos
do art. 262 do CTB.
1.2. A
autoridade administrativa não pode exigir o pagamento de multas em relação às quais não tenha
sido o condutor notificado, pois a exigibilidade pressupõe a regular
notificação do interessado, que poderá impugnar a penalidade ou dela recorrer,
resguardando, assim, o devido processo legal e a ampla defesa, garantias constitucionalmente
asseguradas.
1.3. Se a multa já está vencida, poderá ser
exigida como condição para liberar-se o veículo apreendido, quer por ter-se
esgotado o prazo de defesa sem manifestação do interessado, quer por já ter sido
julgada a impugnação ou o recurso administrativo. Do contrário, estar-se-ia
permitindo que voltasse a trafegar sem o licenciamento, cuja expedição depende
de que as multas já vencidas sejam
quitadas previamente, nos termos do art. 131, § 2º, do CTB.
1.4. Caso a multa ainda não esteja vencida, seja
porque o condutor ainda não foi notificado, seja porque a defesa administrativa
ainda está em curso, não poderá a autoridade de trânsito condicionar a liberação
do veículo ao pagamento da multa,
que ainda não é exigível ou está com sua exigibilidade suspensa. Se assim não
fosse, haveria frontal violação ao princípio do contraditório e da ampla
defesa, com a adoção da vetusta e odiosa fórmula do solve et repete.
1.5. No
caso, a entidade recorrente condicionou a liberação do veículo ao pagamento de
todas as multas, inclusive, da
que foi aplicada em virtude da própria infração que ensejou a apreensão do veículo,
sem que fosse franqueado à parte o devido processo legal.
1.6. Nesse
ponto, portanto, deve ser provido apenas em parte o recurso para reconhecer-se
que é possível condicionar a liberação do veículo apenas à quitação das multas regularmente notificadas e já
vencidas.
1.7.
Precedentes de ambas as Turmas de Direito Público.
2. Pagamento
das despesas de depósito somente pelos primeiros trinta dias de apreensão.
2.1. A pena
de apreensão, nos termos do art. 262 do CTB, impõe o recolhimento do veículo ao
depósito ‘pelo prazo de até trinta dias, conforme critério a ser estabelecido
pelo CONTRAN’. Assim, por tratar-se de penalidade, não pode ser ultrapassado o
prazo a que alude o dispositivo.
2.2. Nada obstante,
a retenção do veículo como medida administrativa, que não se confunde com a
pena de apreensão, deve ser aplicada até que o proprietário regularize a
situação do veículo, o que poderá prolongar-se por mais de 30 dias, pois o art.
271 do CTB não estabelece qualquer limitação temporal.
2.3. Assim,
não há limites para o tempo de permanência do veículo no
depósito.
Todavia, o Estado apenas poderá cobrar as taxas de estada até os primeiros
trinta dias, sob pena de confisco.
2.4. O
proprietário deve proceder a regularização hábil do veículo, sob pena de ser
leiloado após o nonagésimo dia, a teor do que determina o art. 5º da Lei
6.575/78.
2.5. Esta
Corte assentou entendimento de que as despesas de estada dos veículos em
depósito possuem natureza jurídica de taxa, e não de multa sancionatória, pois presentes a compulsoriedade e a
prestação de uma atividade estatal específica, consubstanciada na guarda do veículo
e no uso do depósito.
2.6. Nesses
termos, o prazo de 30 dias previsto no art. 262 do CTB garante ao contribuinte,
em atenção ao princípio do não-confisco
(art. 150, inciso IV, da CF/88), que não poderá ser taxado de modo indefinido
e ilimitado, além desse prazo, afastando assim a possibilidade, não remota, de
que o valor da taxa ultrapasse o do veículo apreendido.
2.7.
Precedentes de ambas as Turmas de Direito Público.
3. Recurso
especial provido em parte. Acórdão submetido ao rito do
art. 543-C
do CPC e da Resolução STJ n.º 08/2008” (STJ, REsp 1.104.775-RS, 1ª Seção, Rel.
Min. Castro Meira, 24-06-2009, v.u., DJe 01-07-2009).
10. Mercê
de precedente pronunciando que “a jurisprudência é pacífica no sentido de que
multa não é tributo, podendo ela ter efeito confiscatório” (STJ, AgRg no Ag
436.173-BA, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, 21-05-2002, v.u., DJ 05-08-2002,
p. 217), não se alija o exame da razoabilidade e da proporcionalidade na medida
em que constitui parâmetro de aferição da legitimidade constitucional de
qualquer ato normativo, especialmente daqueles que, encartados no poder de
polícia, implicam interferência ou tangenciamento à esfera de direitos do
particular pelo poder público.
11. Até
porque, em essência, o princípio constitucional tributário da vedação do
confisco expressa em nível mais particularizado os princípios de razoabilidade
e de proporcionalidade.
12. Pois,
o substantive due process of law constitui limite ao Poder
Legislativo, exigente da elaboração normativa com justiça, reasonableness
(razoabilidade) e racionality (racionalidade), devendo ostentar real e
substancial nexo com o objetivo que se quer atingir e respeito à isonomia,
enquanto o procedural due process of law garante às pessoas um
procedimento judicial justo, com direito de defesa. O princípio da
proporcionalidade expressa o sentido de justa medida, contendo a proibição do
excesso, padrão para avaliação da compatibilidade entre meios e fins, de modo a
evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os direitos fundamentais e
discriminações infundadas.
13. Avulta
a importância do princípio da razoabilidade ao pregar proporcionalidade entre
os meios utilizados e os fins a alcançar a coerência lógica e racional do ato
com seu escopo. Embora se confundam e se distingam amiúde, proporcionalidade e
razoabilidade, no
fundo, entrosam-se com a dimensão da igualdade na lei (proibição de normas
discriminatórias desarrazoadas) e perante a lei (vedação da execução da norma
com tratamento discriminatório desarrazoado).
14. No
exame da proporcionalidade, impõe-se a verificação da adequação, da necessidade
e da proporcionalidade em sentido estrito, pois, como assinala J. J. Gomes
Canotilho o princípio da proporcionalidade passou de uma visão restrita (medida
para as restrições administrativas da liberdade individual) para um sentido
mais amplo, da proibição do excesso em qualquer atividade pública, guiando-se
pelo “controlo exercido pelos
tribunais quanto à adequação dos meios administrativos (sobretudo coactivos) à
prossecução do escopo e ao balanceamento concreto dos direitos ou interesses em
conflito” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
Coimbra: Livraria Almedina, 1998, pp. 259-265), impondo subprincípios como
conformidade (adequação entre meios e fins), exigibilidade ou necessidade
(direito a menor desvantagem possível) e proporcionalidade (justa medida), como
componente essencial do Estado de Direito, que tende a proteger o indivíduo
contra todas as ingerências supérfluas do poder público, ditadas, supostamente,
pelo interesse coletivo.
15. A
observância destes princípios conduz a erradicação de atos estatais excessivos
e arbitrários na medida em que se traduz uma exigência positiva e material
relacionada ao conteúdo dos atos restritivos de direitos fundamentais,
estabelecendo limites em sua intervenção.
16. No
caso sob exame, a exigência estatal consubstanciada na multa não aponta para
exagero ou excesso, pois, seu montante, que não ultrapassa o valor venal do
imóvel, como se infere da própria petição inicial (fls. 06/07), tem
potencialidade coativa para o administrado cumprir a obrigação positiva
imposta, e cuja dimensão não ofende a parâmetros razoáveis e proporcionais.
17. Opino
pela improcedência da ação.
São Paulo, 23 de junho de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj