Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 994.09.224086-5 (184.070-2/00)

Requerente: Prefeito Municipal de Pirapozinho

Objeto: art. 61, incisos X (segunda parte), XI, XII e XVI da Lei Orgânica Municipal de Pirapozinho.

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 61, incisos X (segunda parte), XI, XII e XVI da Lei Orgânica Municipal de Pirapozinho.

2)      Violação da regra da separação de poderes. Dispositivos que criam deveres para o Chefe do Executivo que não se compatibilizam com a independência e harmonia entre os poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).

3)      Violação do princípio da simetria. Criação de sistema de controle externo que não encontra parâmetro constitucional (art. 144 e art. 150 da Constituição Estadual).

4)      Inconstitucionalidade reconhecida.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal de Pirapozinho, tendo como alvo o art. 61, incisos X (segunda parte), XI, XII e XVI da Lei Orgânica Municipal de Pirapozinho.

Sustenta que os dispositivos violam o princípio da separação de poderes, sendo incompatíveis com nosso ordenamento constitucional.

Foi concedida a liminar para a suspensão da eficácia dos preceitos impugnados (fls. 68/70).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 80/84).

O Senhor Procurador-Geral do Estado, citado, declinou de realizar a defesa do ato normativo (fls. 101/103).

É o relato do essencial.

A ação procede.

Eis o teor dos dispositivos impugnados, da Lei Orgânica do Município de Pirapozinho, com destaque (negrito) para as expressões impugnadas pelo autor da ação direta:

“(...)

Artigo 61 – Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

X- Enviar, mensalmente, e até o dia 20 do mês subsequente, balancete de receitas e despesas da Prefeitura Municipal, com seus respectivos documentos comprobatórios, incluindo cópias daqueles empenhados e não pagos no decorrer de cada mês.

XI- Enviar mensalmente à Câmara Municipal, cópias xerográficas de contratos, recibos, bem como relatórios dos gastos de todos os órgãos vinculados à Administração direta e indireta, e qualquer entidade filantrópica ou assistencial que receba verba ou auxílio público.

(...)

XIII- Comunicar à Câmara Municipal, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas, o recebimento por parte da Municipalidade, de qualquer auxílio ou verba recebida do Estado ou União.

(...)

XVI- Encaminhar a Câmara Municipal, até o décimo dia útil, relação das licitações realizadas no mês anterior, acompanhada de cópias autênticas dos processos licitatórios, de forma integral, constando empresas participantes, atas elaboradas pela Comissão de Licitação, bem como todos os procedimentos pertinentes a cada processo.

(...)”

O ato normativo em exame cria deveres para o Chefe do Executivo Municipal, consistentes no encaminhamento mensal detalhado e completo de boa parte (senão toda ela) da documentação relativa à administração financeira e orçamentária do Município (além de envio de relatório sobre receitas e despesas, encaminhamento de “documentos comprobatórios, incluindo cópias daqueles empenhados e não pagos no decorrer de cada mês”; “cópias xerográficas de contratos, recibos, bem como relatórios dos gastos de todos os órgãos vinculados à Administração direta e indireta”; comunicação quanto ao recebimento de “qualquer auxílio ou verba recebida do Estado ou União”; encaminhamento de “relação das licitações realizadas no mês anterior, acompanhada de cópias autênticas dos processos licitatórios, de forma integral, constando empresas participantes, atas elaboradas pela Comissão de Licitação, bem como todos os procedimentos pertinentes a cada processo”).

Entretanto, a inconstitucionalidade decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art.5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local. Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação.

Assim, se qualquer emenda constitucional tendente a abolir o princípio será inconstitucional, por ofensa à cláusula pétrea contida no art. 60, § 4º, III da CR/88, também será verticalmente incompatível com o texto constitucional ato normativo de menor hierarquia que venha a conflitar com referido núcleo constitucional imodificável.

Deste modo, no caso em exame, ao detalhar o sistema de controle da Administração Direta ou Indireta do Município o legislador instituiu metodologia que importa verdadeira capitis diminutio para a Administração, sujeitando-a a restrições inexistentes no paradigma constitucional federal ou estadual.

Como anota a propósito Hely Lopes Meirelles, mais uma vez, “(...) é evidente que essa fiscalização externa, realizada pela Câmara, deve conter-se nos limites do regramento e dos princípios constitucionais, em especial o da independência e harmonia dos Poderes” (Direito municipal brasileiro, cit., p. 609).

Tanto a Constituição Federal, como a Estadual, já estabelecem formas de controle interno e externo, cuja essência deve ser seguida pelo legislador Municipal.

Recorde-se a propósito o art. 31, § 1º da CR/88 prevê que o controle externo da Câmara Municipal sobre o Executivo será “exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver”.

Por outro lado, o art. 33 da Constituição Paulista prevê que o controle externo seja exercido pela Assembléia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas, com várias atribuições contidas em seus diversos incisos, que, em linhas gerais, replicam as atribuições do Tribunal de Contas da União, cf. art. 71 da CR/88.

Por seu turno, o art. 150 da Carta Paulista reitera a existência de sistemas de controle interno em cada Poder e externo pela Câmara Municipal, com remissão expressa ao art. 31 da CR/88.

Deste modo, dentro dos sistemas de controle interno e externo, previstos tanto no texto da Constituição Federal como na Estadual, não se identifica, nem de modo distante, metodologia de fiscalização que se assemelhe àquela adotada pelo legislador municipal nos dispositivos impugnados na presente ação.

A matéria já foi pacificada pelo E. STF, como se infere dos seguintes precedentes que, mutatis mutandis, são aplicáveis ao caso:

"Os dispositivos impugnados contemplam a possibilidade de a Assembléia Legislativa capixaba convocar o Presidente do Tribunal de Justiça para prestar, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a ausência injustificada desse Chefe de Poder. Ao fazê-lo, porém, o art. 57 da Constituição capixaba não seguiu o paradigma da Constituição Federal, extrapolando as fronteiras do esquema de freios e contrapesos — cuja aplicabilidade é sempre estrita ou materialmente inelástica — e maculando o Princípio da Separação de Poderes. Ação julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão ‘Presidente do Tribunal de Justiça’, inserta no § 2º e no caput do art. 57 da Constituição do Estado do Espírito Santo." (ADI 2.911, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 10-8-06, DJ de 2-2-07, g.n.).

"Separação e independência dos Poderes: freios e contra-pesos: parâmetros federais impostos ao Estado-Membro. Os mecanismos de controle recíproco entre os Poderes, os ‘freios e contrapesos’ admissíveis na estruturação das unidades federadas, sobre constituírem matéria constitucional local, só se legitimam na medida em que guardem estreita similaridade com os previstos na Constituição da República: precedentes. Conseqüente plausibilidade da alegação de ofensa do princípio fundamental por dispositivos da Lei estadual 11.075/98-RS (inc. IX do art. 2º e arts. 33 e 34), que confiam a organismos burocráticos de segundo e terceiro graus do Poder Executivo a função de ditar parâmetros e avaliações do funcionamento da Justiça (...)." (ADI 1.905-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-11-98, DJ de 5-11-04)

"A fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é um dos contrapesos da Constituição Federal à separação e independência dos Poderes: cuida-se, porém, de interferência que só a Constituição da República pode legitimar. Do relevo primacial dos 'pesos e contrapesos' no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma infraconstitucional — aí incluída, em relação à Federal, a Constituição dos Estados-Membros —, não é dado criar novas interferências de um Poder na órbita de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra ou princípio da Lei Fundamental da República. O poder de fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembléia Legislativa, no dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando atuem em representação (ou presentação) de sua Casa ou comissão." (ADI 3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 15-4-04, DJ de 28-5-04, g.n.)

Esse posicionamento tem, do mesmo modo, sido prestigiado por esse E. Tribunal de Justiça:

“INCONSTITUCIONALIDADE - Ação direta - Inconstitucionalidade do art. 136, da Lei Orgânica do Município de Franca - Ocorrência - Parágrafo que estabelece prazo para a remessa de cópias de decretos e portarias pelo Prefeito aos Vereadores, sob cominação de nulidade - Inadmissibilidade - Limites constitucionais estabelecidos para o controle externo parlamentar ou legislativo sobre atos do Poder Executivo extrapolados - Inconstitucionalidade declarada, comunicada a decisão à Câmara Municipal para a suspensão da execução dessa norma - Art. 90 da Constituição do Estado”. (Relator: Carlos Ortiz - Ação direta de Inconstitucionalidade 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Dispositivo da Lei Orgânica que determina ao Prefeito remeter cópia à Câmara de cada balancete mensal e a publicá-los - Normas que extravasam os limites do controle externo e da fiscalização próprios do Poder Legislativo - Invasão, ademais, de esfera de atuação reservada ao Chefe do Executivo - Desobediência ao princípio da harmonia e independência entre os Poderes - Inconstitucionalidade reconhecida - Ofensa aos artigos 5º, 150 e 170 da Constituição Estadual - Pedido procedente.” (Ação Direta de Inconstitucionalidade n.096.538-0 - São Paulo - Órgão Especial - Relator: Viseu Júnior - 12.02.03 - V.U.)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Municipal de Miracatu nº 1.299, de 15.4.2005, que impõe ao Prefeito a obrigação de encaminhar ao legislativo municipal todos os editais de licitações abertas pelo Município para que sejam afixados em local próprio – Inadmissibilidade – Clara violação ao princípio da independência e harmonia entre os poderes, com ofensa explícita aos arts. 5º, 144 e 150 da Constituição do Estado de São Paulo – As atribuições do Prefeito, como administrador do Município, concentram-se em planejamento, organização e direção dos serviços e obras da Municipalidade – Para a execução de tais atividades, o Prefeito dispõe de poderes correlacionados a comando, coordenação e controle de empreendimentos no Município – Se a Câmara Municipal interfere na competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo local, imobilizando a atuação deste no que concerne aos assuntos de política administrativa, ainda que a pretexto de exercer a função fiscalizadora de controle externo, privativa do Tribunal de Contas, configura-se infração à Carta Estadual – Ação procedente.” (Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 123.145-0/9-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator: Aloísio de Toledo César – 19.04.06 – M.V.)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 1.674, de 21 de outubro de 2005, do Município de Avanhandava, que “dispõe sobre a instituição de controle externo da qualidade da água distribuída à população de Avanhandava pelo DAAEA” – Lei de iniciativa de Vereador – Promulgação pelo Presidente da Câmara Municipal – Matéria afeta à Administração Ordinária – Competência reservada ao Poder Executivo – Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes e da iniciativa legislativa – Ação procedente. (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 128.082-0/7-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator: Denser de Sá – 19.07.06 – V.U.).

“Ementa: Constitucional - Ação direta de inconstitucionalidade - Lei 10.127/08, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa e editada pelo Poder Legislativo local, depois de veto - Comando de remessa obrigatória à Câmara de Vereadores, pelos Conselhos Municipais da Criança e do Adolescente - CMDCA e de Assistência Social - CMAS, bem como pela Secretaria Municipal de Assistência Social, de relatório bimestral acerca das atividades das parcerias subvencionadas pelo Executivo, além de exarar pareceres a respeito -  ingerência do Legislativo na Administração local - Maltrato ao princípio da independência dos Poderes - Ofensa aos arts. 5º, caput; 37; 47, II e XV; 111 e 144 da Constituição do Estado - Precedente - Inconstitucionalidade declarada” (ADI 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008).

Assim, os dispositivos impugnados na presente ação, nitidamente: (a) violaram o necessário equilíbrio e harmonia que devem existir entre o Poder Legislativo e o Executivo; (b) fizeram-no criando sistemática de controle não prevista na nossa ordem constitucional; (c) desrespeitaram, dessa forma, o “modelo” traçado pelo constituinte para exercício do sistema de “freios e contrapesos”.

Daí a violação aos arts. 5º, 144 e 150 da Carta Estadual.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados na inicial.

São Paulo, 26 de janeiro de 2010.

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

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