Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 994.09.224712-9 (184.465.0/5-00)

Requerente: Prefeita Municipal de Rosana

Objeto: art. 87, § 2º, I, § 3º, § 4º, I, II, III, § 5º, § 7º, § 8º; art. 87-A, seus incisos e § 1º; e art. 60, parágrafo único; todos da Lei Orgânica Municipal de Rosana, nos termos da Emenda à Lei Orgânica Municipal nº 002/2005, de 02 de dezembro de 2005.

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Dispositivos da Lei Orgânica Municipal de Rosana, com a redação conferida pela Emenda à Lei Orgânica nº 02/2005, de 02 de dezembro de 2005 (art. 87, § 2º, I, § 3º, § 4º, I, II, III, § 5º, § 7º, § 8º; e art. 87-A, seus incisos e § 1º; e art. 60, parágrafo único). Tipificação de crimes de responsabilidade do Prefeito e estabelecimento de regras relativas ao respectivo processo e julgamento.

2)      Abertura da causa de pedir na ação direta de inconstitucionalidade. Possibilidade de conhecimento da alegação por fundamento não apontado pelo autor.

3)      Precedentes do E. STF e do TJSP. Súmula nº 722 do E. STF. Competência legislativa da União (art. 22, I CR/88).

4)      Princípio federativo (art. 1º e 18 da CR/88, e art. 1º da Constituição Paulista). Manifestação através da repartição constitucional de competências. Princípio estabelecido de observância obrigatória pelos Municípios (art. 29, caput da CR/88, e art. 144 da Constituição Paulista).

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Excelentíssima Senhora Prefeita Municipal de Rosana, tendo como alvo dispositivos da Lei Orgânica do Município (art. 87, § 2º, I, § 3º, § 4º, I, II, III, § 5º, § 7º, § 8º; art. 87-A, seus incisos e § 1º; e art. 60, parágrafo único), nos termos da Emenda à Lei Orgânica Municipal nº 002/2005, de 02 de dezembro de 2005), alegando que houve contrariedade ao disposto no art. 22, I da CR/88.

Foi indeferido o pedido de liminar (fls. 21/23).

A Câmara Municipal prestou informações, sustentando que: (a) esse E. Tribunal de Justiça é incompetente para apreciar inconstitucionalidade de Lei Municipal tomando como parâmetro dispositivo da Constituição da República; (b) ilegitimidade da Prefeita para a propositura da ação direta; (c) inépcia da inicial; (d) constitucionalidade dos dispositivos glosados na inicial (fls. 40/56).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo (fls. 137/139).

É o relato do essencial.

Os dispositivos da Lei Orgânica do Município de Rosana, impugnados na ação direta, na redação decorrente da Emenda à Lei Orgânica Municipal nº 2/2005, de 02/12/2005, são os seguintes:

“(...)

Art. 60 – (...)

Parágrafo único - No processo de cassação de mandato de Vereador, se aplicam os mesmos procedimentos por infração político-administrativa do processo de cassação do Prefeito Municipal previsto no artigo 87 desta Lei Orgânica, observando que antes do recebimento da denúncia ou caso o denunciado não seja afastado do cargo durante o processo de cassação e não haja pedido de licença ou afastamento do cargo pelo denunciado devidamente aceito pela Câmara, as citações, intimações e/ou notificações do denunciado em todos os processos de cassação serão feitas pessoalmente ou via protocolo na Secretaria da Câmara Municipal. (redação dada pelo artigo 3º da Emenda à L.O.M. 002/2005, de 02/12/2005).

(...)

Art. 87 - A extinção ou cassação do mandato do Prefeito e Vice-Prefeito, bem como a apuração dos crimes de responsabilidade do Prefeito ou de seus substitutos, ocorrerão na forma e nos casos previstos na legislação federal.

(...)

§ 2º - Nos crimes de responsabilidade, após o recebimento da denuncia e nas infrações penais comuns, se recebida a denuncia ou a queixa-crime, ambos pela autoridade judiciária competente para cada caso, ocorrendo representação perante a Câmara Municipal por decoro do cargo em decorrência do recebimento da denuncia destes crimes perante a autoridade judiciária, será ele afastado do cargo pelo voto de dois terço dos membros da Câmara, pelo prazo de 90 (noventa) dias, podendo ser prorrogado por igual período, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo mesmo após o decurso destes prazo (artigo 86, §1º, inciso I e II da Constituição Federal) e nas infrações político-administrativa, se recebida a denuncia, em seguida será colocado em votação o quesito sobre a conveniência do afastamento ou não do cargo enquanto durar o processo de cassação, quando o denunciado será considerado afastado do cargo pelo voto favorável da maioria dos membros da Câmara.

I – o Presidente da Câmara, sob pena de nulidade do ato, ao notificar o denunciado para apresentar defesa preliminar pertinente a denúncia apresentada, deve alertar para se manifestar também sobre o quesito a ser votado após o recebimento da denúncia, do afastamento do cargo, conforme previsto no parágrafo anterior.

§ 3º - Antes do recebimento da denúncia ou caso o denunciado não seja afastado do cargo durante o processo de cassação e não haja pedido de licença ou afastamento do cargo pelo denunciado devidamente aceito pela Câmara, as citações, intimações e/ou notificações do denunciado em todos os processos de cassação serão feitas pessoalmente ou via protocolo na Secretaria da Prefeitura Municipal.

§ 4º - Todas as testemunhas arroladas pelo denunciado, em número não superior a 10 (dez), que residam na área do Município de Rosana serão intimadas pessoalmente ou via correio, por carta registrada, e aquelas que residam em outra localidade serão intimadas exclusivamente via correio, por carta registrada, sendo, no entanto, em qualquer caso, de exclusiva responsabilidade do denunciado apresentá-las perante a Comissão Processante para sua oitiva.

I – o não comparecimento da testemunha arrolada pela defesa na data e horário determinado pela Comissão será entendido como desistência da oitiva da testemunha faltante, podendo, neste caso, o denunciado substituí-la por outra, desde que resida no Município de Rosana, ou, caso entenda relevante a oitiva da testemunha faltante, solicitar a designação de nova data para apresentá-las independente de intimação, fazendo-o através de requerimento devidamente fundamentado, mencionando os fatos sobre os quais vai depor a testemunha e qual a relevância e pertinência para a defesa do denunciado.

II – não concordando a Comissão Processante com a desistência da oitiva da testemunha faltante arrolada pelo denunciado, poderá designar nova data para sua oitiva, da qual será intimada na forma do inciso anterior, com a advertência de que sua ausência na audiência designada será considerada como infração ao artigo 330 do Código Penal, e estará sujeita a condução coercitiva, na forma da lei.

III – o não comparecimento da testemunha arrolada pelo autor da denúncia ou pela Comissão Processante acarretará, a critério da Comissão Processante, a sua condução coercitiva.

§ 5º - Caso o processo de cassação de mandato do denunciado não seja concluído no prazo de 90 (noventa) dias, a Comissão Processante poderá solicitar, por até duas vezes, aos membros da Câmara Municipal sua prorrogação por mais 90 (noventa) dias ou prazo inferior, que será aprovado por maioria simples.

(...)

§ 7º – No processo de cassação, recebida a denúncia, todas as testemunhas ouvidas, tanto aquelas indicadas pelo denunciante, como pelo denunciado ou pela Comissão Processante, responderão as perguntas inicialmente da Comissão e após pela defesa.

§ 8º – Todas as votações sobre a formação de comissão de investigação em decorrência de denúncia para instauração de processo de cassação, e aquelas no decorrer no processo de cassação, inclusive solicitando prorrogação de prazo, serão de forma secreta. (redação dada pelo Artigo 1º da Emenda à L.O.M 002/2005, de 02/12/2005).

Art. 87-A – Nos termos desta Lei Orgânica Municipal e de outras imposições previstas no Regimento Interno da Câmara Municipal, são infrações político-administrativas do Prefeito e do Vice-Prefeito quando no exercício do cargo, sujeitas ao julgamento da Câmara de Vereadores, passíveis de afastamento sumário do exercício do cargo, e sancionadas com a cassação do mandato:

I – impedir o funcionamento regular da Câmara, impondo ordens ou exigindo o cumprimento de formalidades que sejam de atribuição do Presidente da Casa, desrespeitando a independência dos Poderes;

II – impedir ou dificultar o exame, por Comissão de Inquérito ou auditoria instituída pela Câmara, de livros, folhas de pagamento, comprovantes de despesas e demais documentos que devam constar dos arquivos da Prefeitura;

III – desatender, sem motivo justo, as convocações regulares da Câmara;

IV – deixar, sem motivo justo, de prestar as informações requisitadas pela Câmara, Comissões de Investigação ou Processante, ou prestá-las de modo incompleto ou falso;

V – retardar a publicação ou deixar de publicar lei ou ato sujeito a essa formalidade;

VI – deixar de apresentar à Câmara, no devido tempo, e em forma regular, a proposta orçamentária;

VII – descumprir o orçamento aprovado para o exercício financeiro;

VIII – praticar ato de sua competência, contra expressa disposição de lei, ou omitir-se na sua prática;

IX – omitir ou negligenciar a defesa de bens, rendas, direitos e interesses do Município, sujeitos à administração da Prefeitura;

X – ausentar-se do Município ou afastar-se da Prefeitura, por tempo superior a quinze dias e sem autorização da Câmara;

XI – proceder de modo incompatível com a dignidade e o decoro do cargo.

§ 1º – A conduta prevista no inciso XI deste artigo não se restringe apenas ao mandato corrente do ocupante do cargo de Prefeito, sendo passível de denúncia conduta praticada no decorrer de outro mandato exercido pelo mesmo ocupante do cargo. (redação dada pelo Artigo 2º da Emenda a L.O.M. 002/2005, de 02/12/2005).

(...)

Inicialmente, devem ser rejeitadas as questões preliminares suscitadas pela Câmara Municipal.

A autora é parte legítima.

A legitimidade do Prefeito Municipal para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade está assentada no art. 90, II da Constituição do Estado de São Paulo.

Não há inépcia da inicial.

A descrição contida na inicial é suficiente para permitir a compreensão quanto aos limites da controvérsia constitucional, bem como com relação ao pedido deduzido pela autora. Sustenta-se a inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados, que tratam do procedimento relativo à apuração da responsabilidade de Vereadores e do Prefeito Municipal, bem como quanto à definição das infrações político-administrativas do Prefeito. Formula-se pedido no sentido de reconhecimento da aludida inconstitucionalidade.

Esses contornos da controvérsia constitucional, como definidos na inicial, estão absolutamente claros, permitindo o exame do caso por esse C. Órgão Especial.

Por outro lado, é absolutamente correta a afirmação, contida nas informações da Câmara Municipal, de que não é viável o exame da inconstitucionalidade da lei municipal tomando como parâmetro dispositivo da Constituição da República.

Nesse passo, equivocou-se a autora ao indicar como fundamento para o reconhecimento da inconstitucionalidade o art. 22, I da CR/88.

Entretanto, o entendimento pacífico nessa matéria, assentado inclusive pelo E. STF, é de que a causa de pedir, nas ações diretas de inconstitucionalidade, é aberta, podendo ser apreciados pelo Tribunal fundamentos distintos daqueles indicados quando da propositura da ação, para fins de declaração da inconstitucionalidade.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o E. STF:

“Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).”

Confira-se ainda: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

Consequência do acima exposto é que esse C. Tribunal de Justiça é competente para a apreciação da pretensão deduzida na inicial.

A inicial indica claramente os dispositivos sobre os quais pesa a dúvida de constitucionalidade, cabendo, portanto, a esse C. Órgão Especial avaliar, dada a abertura da causa de pedir, se eles afrontam dispositivos da Constituição Estadual.

Com a devida vênia, afastam-se as questões preliminares.

Passa-se ao exame do mérito.

Os dispositivos da Lei Orgânica Municipal de Rosana que foram impugnados nesta ação direta tratam da (a) tipificação de crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) do Prefeito (art. 87-A), (b) do respectivo processo e julgamento e da possibilidade de afastamento provisório e compulsório nos mesmos casos (art. 87, §§ 2º, 3º, 4º, 5º, 7º, 8º), e (c) da extensão dessas regras ao processo de cassação dos Vereadores (art. 60, parágrafo único).

Os dispositivos impugnados (acima transcritos) violam o disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”

Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos art. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal, e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I da CR/88).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a Lei Municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

Para a solução do caso, é necessário ter em mente que tratar de crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) é atividade que se encontra inserida dentro da competência legislativa exclusiva do legislador federal, por força do art. 22, I da CR/88.

Recorde-se com Alexandre de Moraes, referindo-se aos ilícitos político-administrativos, que há “(...) necessidade de que a tipificação de tais infrações emane de lei federal, eis que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que a definição formal dos crimes de responsabilidade se insere, por seu conteúdo penal, na competência exclusiva da União” (Direito constitucional, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 443).

A questão, inclusive, foi pacificada pelo E. STF, que editou a respeito a súmula nº 722, do seguinte teor: “São da competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento."  

Vários foram os precedentes que justificaram a edição da mencionada súmula, em Sessão Plenária do E. STF, de 26/11/2003 (cf. DJ de 9/12/2003, p. 1; DJ de 10/12/2003, p. 1; DJ de 11/12/2003, p. 1.).  Entre tais julgados, podemos ressaltar os seguintes: ADI 1628 MC, DJ de 26/9/1997, RTJ 166/147; ADI 2050 MC, DJ de 1º/10/1999, RTJ 171/807; ADI 2220 MC, DJ de 7/12/2000, RTJ 176/199; ADI 1879 MC, DJ de 14/5/2001, RTJ 177/712; ADI 2592, DJ de 23/5/2003; ADI 1901, DJ de 9/5/2003.

Em cada um desses precedentes ficou claro o posicionamento da Suprema Corte no sentido de que cabe ao legislador federal tipificar as infrações político-administrativas, e traçar as normas para o respectivo processo e julgamento.

É assente também que as normas federais anteriores à Constituição de 1988 que tratam da matéria foram recepcionadas pela Carta Magna, ao menos na parte em que não são com ela incompatíveis.

Deste modo, a legislação municipal que trata do tema é inconstitucional, devendo seu vício ser reconhecido por esse E. Órgão Especial, em sede de controle concentrado de normas.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput da CR/88 prevê que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos (g.n.).”

Relevante anotar que quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese no sentido da possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal. É relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art. 144 da Constituição do Estado (...)” (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).

Há leis federais que tratam da tipificação de crimes de responsabilidade praticados por Prefeitos e Vereadores, bem como do respectivo processo e julgamento.

A Lei nº 1079/50, recepcionada pela Constituição da República, define quais são as infrações, e disciplina o processo e julgamento, nos casos de crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) cometidos pelo Presidente da República e Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República, Governadores e Secretários de Estado.

O Decreto-lei nº 201/67 define e regula o processo atinente aos crimes de responsabilidade cometidos por Prefeitos Municipais e por Vereadores.

Destarte, ostentam vício de inconstitucionalidade, por violação ao princípio federativo – não observância das regras associadas à repartição constitucional de competências - normas contidas na legislação municipal (Lei Orgânica) que conceituam infrações político-administrativas e regulam o respectivo processo e julgamento.

Apenas como reforço, cumpre colacionar julgado do E. STF que, mutatis mutandis, serve de parâmetro para o caso em exame:

"(...)

         A expressão ‘e julgar’, que consta do inciso XX do artigo 40, e o inciso II do § 1º do artigo 73 da Constituição catarinense consubstancia normas processuais a serem observadas no julgamento da prática de crimes de responsabilidade. Matéria cuja competência legislativa é da União. Precedentes. Lei federal n. 1.079/50, que disciplina o processamento dos crimes de responsabilidade. Recebimento, pela Constituição vigente, do disposto no artigo 78, que atribui a um Tribunal Especial a competência para julgar o Governador. Precedentes. Inconstitucionalidade formal dos preceitos que dispõem sobre processo e julgamento dos crimes de responsabilidade, matéria de competência legislativa da União. A CB/88 elevou o prazo de inabilitação de 5 (cinco) para 8 (oito) anos em relação às autoridades apontadas. Artigo 2º da Lei n. 1.079 revogado, no que contraria a Constituição do Brasil. A Constituição não cuidou da matéria no que respeita às autoridades estaduais. O disposto no artigo 78 da Lei n. 1.079 permanece hígido — o prazo de inabilitação das autoridades estaduais não foi alterado. O Estado-Membro carece de competência legislativa para majorar o prazo de cinco anos — artigos 22, inciso I, e parágrafo único do artigo 85 da CB/88, que tratam de matéria cuja competência para legislar é da União. O Regimento da Assembléia Legislativa catarinense foi integralmente revogado. Prejuízo da ação no que se refere à impugnação do trecho ‘do qual fará chegar uma via ao substituto constitucional do Governador para que assuma o poder, no dia em que entre em vigor a decisão da Assembléia’, constante do § 4º do artigo 232." (ADI 1.628, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 10-8-06, DJ de 24-11-06).

(...)”

Saliente-se que a posição aqui sustentada encontra amparo em precedentes desse E. Tribunal de Justiça. É o caso do julgado relatado pelo Exmo Des. Mohamed Amaro (ADIN 106.343-0/8-00, Ilha Solteira, Julgado em 23.06.2004), de cuja ementa pode-se extrair o seguinte excerto:

“(...)

         Os princípios básicos que regem a responsabilização do Chefe do Executivo por crime de responsabilidade consagram que somente a União – no exercício de sua competência privativa para legislar sobre direito penal e processual – poderá definir as figuras típicas correspondentes a crimes de responsabilidade, bem como suas normas para o respectivo processo e julgamento, restando, pois, afastada qualquer previsão da lei orgânica municipal, regimento interno, ou resolução legislativa, diversa do estabelecido na legislação federal pertinente.

         Aos municípios, apenas cabe observar as normas decorrentes do Decreto-lei 201/67 – que foi recepcionado pela nova ordem constitucional, como, expressamente, admitido pelo Supremo Tribunal Federal.

         O ESTABELECIMENTO DE NORMAS DE PROCESSO E JULGAMENTO DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE – PORTANTO, SIGNIFICANDO INFRAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA - É DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO, POR FORÇA DO QUE DIPÕEM OS ARTIGOS 85, PARÁGRAFO ÚNICO, E 22, INCISO I, AMBOS DA CARTA MAGNA.

         Precedentes jurisprudenciais.

(...)”

No mesmo sentido o julgamento da ADI nº 153.536-0/8-00, relator Des. Mário Devienne Ferraz, j. 09.04.2008 (v.u.), conforme ementa a seguir transcrita:

“(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda à Lei Orgânica do Município de Tietê nº 2, de 4 de novembro de 2004, que incluiu em seu texto o artigo 61-D, no qual atribui à Câmara Municipal o poder de afastar o Prefeito cuja denúncia por infração político-administrativa for recebida por dois terços de seus membros e quando a denúncia pela prática de crime comum, de responsabilidade ou ato de improbidade administrativa for recebida pelo Poder Judiciário, perdurando o afastamento até final julgamento. Inadmissibilidade. Ofensa ao princípio federativo e ao princípio da competência legislativa. Violação dos artigos 22, I, 24, XI e 29, todos da Constituição Federal, 144 da Carta Política Estadual, e do Decreto-lei nº 201/67. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo impugnado.

(...)”

Em síntese, os dispositivos impugnados são verticalmente incompatíveis com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, fundamento este suficiente para o acolhimento da ação proposta pela Prefeita Municipal de Rosana.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, reconhecendo-se a inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados.

São Paulo, 19 de janeiro de 2010.

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

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