Parecer
Autos nº. 994.09.225403-1 (183.826-0)
Requerente: Prefeito Municipal de Taubaté
Objeto: Lei nº 4.202, de 19 de novembro de 2008, do Município de Taubaté
Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal.
Iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a “Dispõe sobre a colocação de placa
informativa em obras públicas municipais”.
2) Violação da separação de
poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa e cria
despesa (art.5º, 47 II e XIV da Constituição Paulista). 3) Quebra
da simetria quanto aos sistemas de controle da administração (art. 33, 144 e
150 da Constituição Paulista). 4) Criação de
novas despesas sem a indicação da respectiva fonte de receitas (art. 25 da
Constituição Paulista). 5) Inconstitucionalidade
reconhecida.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Taubaté, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 4.202, de 19 de novembro de 2008, daquele município, que “dispõe sobre a colocação de placa informativa em obras públicas municipais”.
Sustenta o autor que a legislação em questão é inconstitucional, porque, além de ter criado despesa pública sem indicação dos recursos disponíveis para atender aos novos encargos, extrapolou os limites reservados ao legislativo, na medida em impôs ao Executivo a adoção de medidas administrativas.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 57).
Contra a referida decisão o Presidente da Câmara Municipal de Taubaté, interpôs agravo regimental, fls. 77/83.
Entretanto, a mesma foi mantida, fls.84 e vº.
O Procurador-Geral do Estado, por sua vez, alegou não ter interesse nos autos, na medida em que os dispositivos legais atacados, dizem respeito à matéria exclusivamente local, fls. 87/89.
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Em que pese a
boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando
na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com
nossa sistemática constitucional.
A Lei Municipal n.º 4.202, de 19 de novembro
de 2008, de Taubaté, fruto de iniciativa parlamentar, “dispõe sobre a colocação
de placa informativa em obras públicas municipais”, cria obrigações e estabelece condutas
a serem cumpridas pela Administração Pública, prevendo-lhe a execução de
serviços e atividades, onerando-a e sobrecarregando-a.
Não há dúvida de que, como tal, a
iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera
da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto
no art.5º e no art.47 II e XIV da Constituição Paulista.
É ponto pacífico na doutrina, bem como
na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de
administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e
execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder
Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos
normativos revestidos de generalidade e abstração.
O legislador municipal, na hipótese
analisada, criou obrigações de cunho administrativo para órgãos que integram a
Administração Pública local.
Abstraindo
quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se
apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização da
gestão administrativa do Município.
Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa,
que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento,
a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à
prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de
Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode
legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão
própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a
Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em
atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o
Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que
residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional
(art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou
Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder
Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros
atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre
os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem
declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar
que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a
seguir:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei
9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto.
Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais.
Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes.
Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI
149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de
Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de
Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de
material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos
celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente
de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois
de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara
Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em
atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da
Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4,
rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).
Em hipótese
similar à verificada no caso em exame, além do precedente indicado pelo autor
(ADI 150.355-0/0, rel. des. Oscarlino Moelller, j.20.02.2008), confira-se ainda
o seguinte julgado, desse E. Tribunal de Justiça:
“ADIN - Lei da Edilidade que ‘OBRIGA A INSTALAÇÃO DE PLACA
INFORMATIVA
Ademais,
a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e
contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam
por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o
exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à
intensidade da adoção da regra da separação.
Assim, se qualquer emenda
constitucional tendente a abolir o princípio será inconstitucional, por ofensa
à cláusula pétrea contida no art.60 §4º III da CR/88, também será verticalmente
incompatível com o texto constitucional ato normativo de menor positividade que
venha a conflitar com referido núcleo constitucional imodificável.
Deste modo, no caso em exame, ao criar
sistema de controle da Administração Direta ou Indireta do Município o legislador
instituiu metodologia que importa verdadeira capitis diminutio para a Administração, sujeitando-a a restrições
inexistentes no paradigma constitucional federal ou estadual.
Como anota a propósito Hely Lopes
Meirelles, mais uma vez,
“(...) é evidente que essa fiscalização
externa, realizada pela Câmara, deve conter-se nos limites do regramento e dos
princípios constitucionais, em especial o da independência e harmonia dos
Poderes” (Direito municipal
brasileiro, cit., p.609).
Tanto a Constituição Federal, como a
Estadual, já estabelecem formas de controle interno e externo, cuja essência
deve ser seguida pelo legislador Municipal.
Recorde-se a propósito o art.31 §1º da
CR/88 prevê que o controle externo da Câmara Municipal sobre o Executivo será “exercido com o auxílio dos Tribunais de
Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos
Municípios, onde houver”.
Por outro lado, o art.33 da
Constituição Paulista prevê que o controle externo seja exercido pela
Assembléia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas, com várias
atribuições contidas em seus diversos incisos, que, em linhas gerais, replicam
as atribuições do Tribunal de Contas da União, cf. art.71 da CR/88.
Por seu turno, o art.150 da Carta
Paulista reitera a existência de sistemas de controle interno,
Deste modo, dentro dos sistemas de
controle interno e externo, previstos tanto no texto da Constituição Federal
como na Estadual, não se identifica, nem de modo distante, metodologia de
fiscalização que se assemelhe àquela adotada pelo legislador municipal nos
dispositivos impugnados na presente ação.
A matéria já foi pacificada pelo E.
STF, como se infere dos seguintes precedentes que, mutatis mutandis, são aplicáveis ao caso:
"Os dispositivos impugnados contemplam a possibilidade de a
Assembléia Legislativa capixaba convocar o Presidente do Tribunal de Justiça
para prestar, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado,
importando crime de responsabilidade a ausência injustificada desse Chefe de
Poder. Ao fazê-lo, porém, o art. 57 da Constituição capixaba não seguiu o
paradigma da Constituição Federal, extrapolando as fronteiras do esquema de
freios e contrapesos — cuja aplicabilidade é sempre estrita ou materialmente
inelástica — e maculando o Princípio da Separação de Poderes. Ação julgada
parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão
‘Presidente do Tribunal de Justiça’, inserta no § 2º e no caput do art. 57 da
Constituição do Estado do Espírito Santo." (ADI 2.911, Rel. Min. Carlos
Britto, julgamento em 10-8-06, DJ de 2-2-07, g.n.).
"Separação e independência dos Poderes: freios e
contra-pesos: parâmetros federais impostos ao Estado-Membro. Os mecanismos de
controle recíproco entre os Poderes, os ‘freios e contrapesos’ admissíveis na
estruturação das unidades federadas, sobre constituírem matéria constitucional
local, só se legitimam na medida em que guardem estreita similaridade com os
previstos na Constituição da República: precedentes. Conseqüente plausibilidade
da alegação de ofensa do princípio fundamental por dispositivos da Lei estadual
11.075/98-RS (inc. IX do art. 2º e arts. 33 e 34), que confiam a organismos
burocráticos de segundo e terceiro graus do Poder Executivo a função de ditar
parâmetros e avaliações do funcionamento da Justiça (...)." (ADI 1.905-MC,
Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-11-98, DJ de 5-11-04).
"A fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder
Executivo é um dos contrapesos da Constituição Federal à separação e
independência dos Poderes: cuida-se, porém, de interferência que só a
Constituição da República pode legitimar. Do relevo primacial dos 'pesos e
contrapesos' no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma
infraconstitucional — aí incluída, em relação à Federal, a Constituição dos
Estados-Membros —, não é dado criar novas interferências de um Poder na órbita
de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra ou princípio da
Lei Fundamental da República. O poder de fiscalização legislativa da ação
administrativa do Poder Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada
câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembléia Legislativa, no
dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando
atuem em representação (ou presentação) de sua Casa ou comissão." (ADI
3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 15-4-04, DJ de 28-5-04,
g.n.).
Esse
posicionamento tem, do mesmo modo, sido prestigiado por esse E. Tribunal de
Justiça:
“INCONSTITUCIONALIDADE -
Ação direta - Inconstitucionalidade do art. 136, da Lei Orgânica do Município
de Franca - Ocorrência - Parágrafo que estabelece prazo para a remessa de
cópias de decretos e portarias pelo Prefeito aos Vereadores, sob cominação de
nulidade - Inadmissibilidade - Limites constitucionais estabelecidos para o
controle externo parlamentar ou legislativo sobre atos do Poder Executivo
extrapolados - Inconstitucionalidade declarada, comunicada a decisão à Câmara
Municipal para a suspensão da execução dessa norma - Art.90 da Constituição do
Estado”. (Relator: Carlos Ortiz - Ação direta de Inconstitucionalidade 12.345-0
- São Paulo - 15.05.91).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Dispositivo da Lei
Orgânica que determina ao Prefeito remeter cópia à Câmara de cada balancete
mensal e a publicá-los - Normas que extravasam os limites do controle externo e
da fiscalização próprios do Poder Legislativo - Invasão, ademais, de esfera de
atuação reservada ao Chefe do Executivo - Desobediência ao princípio da
harmonia e independência entre os Poderes - Inconstitucionalidade reconhecida -
Ofensa aos artigos 5º, 150 e 170 da Constituição Estadual - Pedido procedente.”
(Ação Direta de Inconstitucionalidade n.096.538-0 - São Paulo - Órgão Especial
- Relator: Viseu Júnior - 12.02.03 - V.U.)
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Municipal de Miracatu
nº 1.299, de 15.4.2005, que impõe ao Prefeito a obrigação de encaminhar ao
legislativo municipal todos os editais de licitações abertas pelo Município
para que sejam afixados em local próprio – Inadmissibilidade – Clara violação
ao princípio da independência e harmonia entre os poderes, com ofensa explícita
aos arts. 5º, 144 e 150 da Constituição do Estado de São Paulo – As atribuições
do Prefeito, como administrador do Município, concentram-se em planejamento,
organização e direção dos serviços e obras da Municipalidade – Para a execução
de tais atividades, o Prefeito dispõe de poderes correlacionados a comando,
coordenação e controle de empreendimentos no Município – Se a Câmara Municipal
interfere na competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo
local, imobilizando a atuação deste no que concerne aos assuntos de política administrativa,
ainda que a pretexto de exercer a função fiscalizadora de controle externo,
privativa do Tribunal de Contas, configura-se infração à Carta Estadual – Ação
procedente.” (Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 123.145-0/9-00 – São
Paulo – Órgão Especial – Relator: Aloísio de Toledo César – 19.04.06 – M.V.).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 1.674, de 21 de
outubro de 2005, do Município de Avanhandava, que “dispõe sobre a instituição
de controle externo da qualidade da água distribuída à população de Avanhandava
pelo DAAEA” – Lei de iniciativa de Vereador – Promulgação pelo Presidente da
Câmara Municipal – Matéria afeta à Administração Ordinária – Competência
reservada ao Poder Executivo – Violação dos princípios da independência e harmonia
dos poderes e da iniciativa legislativa – Ação procedente. (Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 128.082-0/7-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator:
Denser de Sá – 19.07.06 – V.U.).
Assim,
os dispositivos impugnados na presente ação, nitidamente: (a) violaram o
necessário equilíbrio e harmonia que devem existir entre os Poderes Legislativo
e Executivo; (b) fizeram-no criando sistemática de controle não prevista na
nossa ordem constitucional; (c) desrespeitaram, dessa forma, o “modelo” traçado
pelo constituinte para exercício do sistema de “freios e contrapesos”.
Daí a violação aos art.33, 144 e 150 da
Carta Estadual.
Não bastasse o acima exposto, em casos
assim esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de
normas que criam despesas para o Poder Público, sem a indicação das respectivas
fontes de receita, em violação ao disposto no art.25 da Constituição
Bandeirante. Confiram-se, a título de exemplificação, recentes julgados adiante
indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.;
ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI
135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.202, de 19 de novembro de 2008, do Município de Taubaté.
São Paulo, 12 de abril de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb