Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 994.09.225566-6 (183.663.0/1-00)

Autor: Prefeito Municipal de Ubatuba

Objeto de impugnação: Lei Municipal n. 3.211, de 17 de agosto de 2009

 

 

 

Ementa:

 

1) Lei Municipal n. 3.211, de 17 de agosto de 2009, do município de Ubatuba, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a concessão de redução do horário de trabalho dos servidores públicos municipais.

 

2) Inconstitucionalidade decorrente da ofensa aos arts. 5º e 24, § 2º, “4”, da Constituição do Estado.

 

3) Parecer pela procedência.

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Colendo Órgão Especial

 

 

O Prefeito Municipal de Ubatuba ingressou com a presente ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 3.211, de 17 de agosto de 2009, que dispõe sobre a concessão de redução do horário de trabalho dos servidores públicos municipais.

A inicial indica a violação do art. 24, § 2º, “4”, bem como do art. 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

Em resumo, a inicial debate-se pela violação do princípio da separação dos poderes e pelo vício de iniciativa.

Ao despachar a inicial (fls. 21/22), sua Excelência, o Desembargador Relator, Dr. IVAN SARTORI, deferiu o pedido de suspensão liminar, por entender presentes os requisitos legais.

Notificada, o Presidente da Câmara Municipal deixou de prestar informações (fls. 38).

O Procurador-Geral do Estado, por sua vez, defendeu a exegese segundo a qual a sua intervenção nos feitos desta natureza não é obrigatória, mas sim condicionada à verificação prévia da existência de interesse estadual na preservação da norma impugnada (fls. 35/37).

É o breve relato.

O pedido de declaração de inconstitucionalidade é procedente, uma vez que a lei municipal ora questionada, como exposto na inicial, invade esfera de competência privativa do Prefeito, bem como viola o princípio da separação de poderes.

À evidência que a lei municipal questionada, embora contenha proposta louvável, invade competência privativa do chefe do Poder Executivo municipal ao dispor sobre a concessão de redução do horário de trabalho dos servidores públicos municipais, pois se trata de legislação sobre os servidores públicos.

 Portanto, verifica-se o vício de iniciativa, com a consequente afronta ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes.

Com efeito, é possível constatar-se a afronta ao art. 5º da Constituição Estadual, pois lei de iniciativa parlamentar não pode dispor o quadro do funcionalismo público municipal.

A propósito, dispõe o art. 24, § 2º, “4”, da Constituição do Estado de São Paulo que:

“Art. 24 – .........

§ 2.º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria.

 

Assim, apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para deflagrar processo legislativo para aprovação de lei com o conteúdo da que se pretende ver declarada como inconstitucional, sob pena de indevida interferência de um Poder sobre o outro.

Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual, e que assim dispõe:

Artigo 5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na idéia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que “o princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).

Como conseqüência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes “consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

Também por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina: “É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers) (...)

A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

 Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo.

Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa: “Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).

Portanto, irradia-se do princípio da separação de poderes a própria técnica jurídica de freios e contrapesos com a previsão de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo em matéria administrativa.

Posto isso, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 3.211, de 17 de agosto de 2009, do município de Ubatuba.

São Paulo, 4 de março de 2010.

 

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

- Assuntos Jurídicos –

 

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