Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Autos nº 994.09.227807-0
(182.219.0/9)
Requerente: SINDICATO
DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES DE PASSAGEIROS DO ESTADO DE SÃO PAULO - SETPESP
Objeto: Lei
Municipal n. 1.660, de 7 de abril de 2009, do Município de Caraguatatuba
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 1.660, de 7 de abril de 2009, do Município de Caraguatatuba, que dispõe sobre a obrigatoriedade da presença de cobrador no interior dos ônibus de transporte coletivo urbano.
2) Inconstitucionalidade formal subjetiva pelo vício de iniciativa e pela ofensa ao Princípio da Separação e da Harmonia entre os Poderes (art. 5º, caput, c.c. o art. 47, XVIII, da Constituição do Estado).
3) Parecer pela procedência.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal de Jundiaí, tendo como alvo a Lei Municipal n. 1.660, de 7 de abril de 2009, do Município de Caraguatatuba, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a obrigatoriedade da presença de cobrador no interior dos ônibus de transporte coletivo urbano.
Alegação de inconstitucionalidade formal e material. A primeira por se tratar de competência privativa da União, bem como por vício de iniciativa. A inconstitucionalidade material seria decorrente da quebra do equilíbrio econômico-financeiro da concessão.
Foi deferido o pedido de liminar em sede de julgamento de agravo regimental (fls. 383/389).
A Câmara Municipal prestou as necessárias informações, a partir de fls. 368.
O Senhor Procurador-Geral do Estado foi devidamente citado e se manifestou a fls. 357/359.
É o relato do essencial.
O Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo – SETPESP, segundo seu Estatuto, é constituído para fins de estudo, coordenação, proteção e representação legal da categoria econômica e das empresas de transporte de passageiros, na base territorial que abrange o Estado de São Paulo .
A Constituição do Estado de São Paulo atribui legitimação para propor ação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estaduais ou municipais, contestados em face desta Constituição ou por omissão às entidades sindicais ou de classe, de atuação estadual ou municipal, demonstrando seu interesse jurídico no caso (art. 90, inc. V).
Atendido, portanto, o pressuposto da pertinência temática pela identificação existente entre o objeto da ação e os fins a que se propõe a autora.
No mérito, a Lei Municipal impugnada pela presente ação direta é, realmente, inconstitucional, pois acaba por afrontar o princípio da separação de poderes.
Por
isso, há violação do disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a
seguinte redação:
Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
À evidência que a lei municipal questionada invade
competência privativa do chefe do Poder Executivo municipal.
A Lei impugnada vulnera a Constituição Estadual no que
concerne à competência privativa do Chefe do Poder Executivo e o princípio da
tripartição dos poderes estabelecidos, respectivamente, nos artigos 47, inciso
XVIII, e 5º, § 1º, da Carta Estadual:
“Artigo 47 -
Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas
nesta Constituição:
(...)
XVIII -
enviar à Assembléia Legislativa projeto de lei sobre o regime de concessão ou
permissão de serviços públicos”.
Ao legislar, estipulando a obrigação da empresa
concessionária manter sempre dois tripulantes em cada veículo, sendo um
motorista e um cobrador, a Câmara Municipal alterou o próprio regime de
concessão ou de permissão de serviços públicos e dispôs de maneira autônoma sobra
matéria de competência privativa do Poder Executivo, contrastando com o
princípio da separação dos poderes insculpido no art. 5º da Constituição
Estadual.
Assim, apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para
deflagrar processo legislativo para aprovação de lei com o conteúdo da que se
pretende ver declarada como inconstitucional, sob pena de indevida
interferência de um Poder sobre o outro.
Postulado básico da organização do Estado é o
princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do
Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme
estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual, e que assim dispõe:
Artigo 5º. São Poderes do Estado, independentes e
harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do
Estado de Direito assentado na idéia de que as funções estatais são divididas e
entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia,
vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício
dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a
doutrina que “o princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou
distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento,
coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas
funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais,
correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais
órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não
pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de
Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).
Como conseqüência do princípio da separação dos
poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição
Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por
outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função
administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu
funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes “consiste um
confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e
jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se,
pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada
órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência
orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que
cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de
meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à
Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
Também por decorrência do citado princípio da separação
de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro
para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a
participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a
doutrina: “É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de
competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se
e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a
Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’,
‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks
and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro
‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of
powers) (...)
A distribuição das funções entre os órgãos do Estado
(poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder
Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao
princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a
título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro
poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos
em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete,
criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio
geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes
à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito
Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
Assim, se em
princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas
matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e,
concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes
estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo.
Esse desenho normativo de status constitucional –
aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual –
permite assentar as seguintes conclusões: a) a iniciativa legislativa não é
ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição
entregou uma determinada competência; b) ao Chefe do Poder Executivo a
Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à
Administração Pública; c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à
dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do
estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely
Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa: “Leis de
iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que
a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do
prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias
previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da
competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros,
1997, 9ª ed., p. 431).
Portanto, irradia-se do princípio da separação de
poderes a própria técnica jurídica de freios e contrapesos com a previsão de
iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo em matéria
administrativa.
Posto isso, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 1.660, de 7 de abril de 2009, do Município de Caraguatatuba.
São Paulo, 29 de junho de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
/md