Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 994.09.229787-7 (186.621.0/2)

Requerente: Prefeitura Municipal de Ubirajara

Objeto: art. 88, da Lei Orgânica do Município de Ubirajara.

 

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 88, da Lei Orgânica do Município de Ubirajara. Vinculação do vencimento de servidor público a múltiplos de salário mínimo.

1. É admissível a lei estabelecer piso remuneratório para servidores públicos, vedada a vinculação do vencimento a múltiplos de salário mínimo.

2. O art. 88, da referida lei  agride o inciso XV do art. 115 da Constituição Estadual porque, para além de estabelecer piso remuneratório, vincula remuneração de servidor público ao salário mínimo em desobediência ao disposto na Constituição Federal (art. 7º, IV), expressamente referida na parte final do preceito enfocado.

3. A sujeição à variação do valor do salário mínimo implica vilipêndio à autonomia municipal e à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo local e ofensa ao princípio da reserva legal para fixação e reajuste da remuneração do servidor público, patenteando agressão aos arts. 5º, § 1º, 24, § 2º, 1, e115, XI, da Constituição Estadual.

4. Parecer pela declaração de inconstitucionalidade do art. 88, da Lei Orgânica do Município de Ubirajara.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

                   Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito do Município de Ubirajara impugnando o art. 88 da Lei Orgânica daquele mesmo Município, que vincula o vencimento de servidor público a múltiplos de salário mínimo, alegando afronta aos art. 7º, IV, da Constituição Federal.

                   A liminar foi deferida suspendendo-se ex nunc, a vigência e a eficácia do art. 88, da Lei Orgânica do Município de Ubirajara (fl. 133/135.).

                   A Câmara Municipal prestou informações defendendo a constitucionalidade do dispositivo legal impugnado (fls. 159/163).

                   A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da intervenção no processo (fls. 327/329).

                   É o relatório.

                   O processo objetivo de fiscalização abstrata, concentrada e direta de constitucionalidade de leis e atos normativos municipais é de competência exclusiva do Tribunal de Justiça do Estado e tem como único parâmetro a Constituição Estadual, nos termos do art. 125, § 2º, da Constituição Federal, ainda que reproduzindo ou imitando preceito da Constituição Federal, sendo insuscetível, ademais, o contraste frontal com preceitos da Constituição ou de leis infraconstitucionais.  

                   Se é certo que o piso salarial lato sensu dos servidores públicos não pode ser inferior ao salário mínimo, nem por isso se legítima a vinculação de seu vencimento ao salário mínimo. Neste sentido manifesta a doutrina:

“A Constituição garante aos trabalhadores em geral, e, por decorrência de seu regime jurídico, aos empregados públicos, salário-mínimo e piso salarial (art. 7°, IV e V). Quando tratou dos servidores públicos, estendeu-lhes o salário-mínimo no art. 39, § 3°, e, no mais, o estabelecimento da relação entre a maior e a menor remuneração (art. 39, § 5°), entendendo-se que esse piso (salário-mínimo) é direito fundamental social de todo o trabalhador público ou privado, e nada impede que constituições ou leis estaduais (como a Constituição de Estado de Santa Catarina no art. 27, I) ou leis municipais cunhem regra de inadmissibilidade da percepção de subsídios ou vencimentos em valor inferior ao salário-mínimo, porque isso é inerência do sistema, tanto que o Supremo Tribunal Federal explicitou que o salário-mínimo é constitucionalmente previsto como piso remuneratório do servidor público, e, destarte, a lei não poderá fixar valor inferior a esse piso. O que não é tolerado é o emprego do salário-mínimo como indexador dos vencimentos dos servidores públicos (Supremo Tribunal Federal, Súmula Vinculante 04).

Na Lei n. 8.112/90, o direito de percepção de vencimentos iguais ou superiores ao salário-mínimo refere-se ao vencimento, isto é, ao padrão, a remuneração básica, conforme se infere de seus arts. 40 e 41. Com efeito, o art. 40 enuncia que o vencimento é a retribuição pecuniária pelo exercício de cargo público e seu parágrafo único que nenhum servidor receberá, a título de vencimento, importância inferior ao salário-mínimo, enquanto o art. 41 conceitua remuneração no sentido de vencimentos, isto é, o vencimento do cargo efetivo acrescido das vantagens pecuniárias permanentes. Entretanto, a orientação pretoriana comunga de sentimento mais amplo, proclamando que o piso se relaciona à remuneração total do servidor público, e não apenas ao seu vencimento-base ou padrão, o que é mais vantajoso para o servidor público.

A vinculação de um piso salarial conferido a uma carreira do funcionalismo público a múltiplo de salários mínimos é defesa porque ofende o art. 7°, IV, in fine, da Constituição Federal, assim como o reajuste automático vinculado a indexadores futuros por implicar proibida vinculação de receita de impostos com despesa pública (art. 167, IV, Constituição), porque, para além, isso importaria em suprimir a reserva legal e a iniciativa legislativa reservada para promoção da revisão de vencimentos. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante 04, estabelecendo que “salvo os casos previstos na Constituição Federal, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial”. Por igual, padece de inconstitucionalidade “a estipulação de piso remuneratório que provoque a automática majoração dos vencimentos do cargo público vinculado, sempre que ocorra aumento do estipêndio devido a categoria funcional erigida pelo legislador comum a condição de paradigma (cargo público vinculante), incide na vedação constitucional que desautoriza a vinculação de vencimentos para efeito de remuneração de pessoal do serviço público’(...)” (Wallace Paiva Martins Junior. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 167-169, n. 26).

                   Como dito, o piso se relaciona à remuneração total do servidor público, e não apenas ao seu vencimento-base ou padrão (STF, AI-AgR 418.572-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, 22-04-2003, v.u., DJ 09-05-2003, p. 55; STF, RE-AgR 304.842-PE, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, 12-11-2002, v.u., DJ 19-12-2002, p. 118), mas, não pode servir como técnica de reajuste automático (STF, ADI-MC 1.070-MS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 23-11-1994, v.u., DJ 15-09-1995, p. 29.507), pois, a vinculação de salário profissional a múltiplos do salário mínimo viola o art. 7º, IV, da Constituição Federal (STF, AI-AgR 357.477-PR, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 27-09-2005, v.u., DJ 14-10-2005, p. 09; STF, RE-AgR 292.659-PR, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 26-06-2001, v.u., DJ 31-08-2001, p. 62; STF, RE 273.205-PR, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, 26-02-2002, v.u., DJ 19-04-2002, p. 62). E, com maior ênfase, proclama:

“POLICIAL MILITAR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. SOLDO. COMPLEMENTAÇÃO. ACÓRDÃO QUE LHE RECONHECEU O DIREITO DE TER AS VANTAGENS CALCULADAS COM BASE NO SALÁRIO MÍNIMO. Conquanto o salário mínimo seja constitucionalmente previsto como piso remuneratório do servidor público, a teor da norma do art. 39, § 2º, c/c o art. 7º, IV, da Constituição, disso não resulta que a remuneração do pessoal da Administração Pública possa ser fixada em múltiplos do referido índice, sem ofensa aos princípios constitucionais acima apontados (ADI 45, Rel. Min. Celso de Mello). Recurso extraordinário conhecido e provido” (STF, RE 204.645-ES, 1ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, 24-11-1998, v.u., DJ 23-04-1999).

“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. POLICIAL MILITAR. SOLDO INFERIOR AO SALÁRIO MÍNIMO. DISPOSIÇÃO PREVISTA NA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. ALEGAÇÃO DE VULNERAÇÃO À COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO CHEFE DO EXECUTIVO ESTADUAL. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO E PREVISÃO NA CARTA FEDERAL. INCOMPATIBILIDADE INEXISTENTE. DIREITO INSUPRIMÍVEL. VINCULAÇÃO AO SALÁRIO MÍNIMO. ALEGAÇÃO IMPROCEDENTE. 1. A Constituição Federal preceitua que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado,capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preserve o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim. 2. Embora silente quanto aos servidores militares, conquanto tenha sido explícita aos servidores civis, Lei Fundamental não fixou, quer implicitamente, quer explicitamente, nenhuma vedação a que fosse conferido soldo nunca inferior ao salário mínimo aos militares. Por isso, o Poder Constituinte decorrente conferido aos Estados-Membros da Federação não estava impedido de fazê-lo, quando da elaboração da Constituição Estadual. 3. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Norma constitucional estadual que, reprisando a garantia inserta na Carta Federal, defere aos seus agentes públicos vencimento básico ou salário básico nunca inferior ao salário mínimo fixado pela União para os trabalhadores urbanos e rurais (art. 29, I), e a estende aos servidores públicos militares do Estado (art. 47). Alegação de ofensa ao princípio da iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo local para o desencadeamento do respectivo processo legislativo sobre a matéria de vencimentos. Inexistência. 3.1 - A fixação do salário mínimo nacionalmente unificado pela União Federal é norma que gera conseqüência em todas as unidades da Federação, tanto estaduais e municipais. Uma vez fixado o salário mínimo pela União, não podem as unidades federadas inobservá-lo. Não há vulneração à competência privativa do Chefe do Executivo Estadual, para o desencadeamento do processo legislativo sobre vencimentos, porque a fixação do salário mínimo assegurado constitucionalmente a todo trabalhador é da competência da União Federal. 4. OFENSA AO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DE VINCULAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO, ‘PARA QUALQUER EFEITO’. INEXISTÊNCIA. A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que a vinculação a que se refere a Constituição Federal diz respeito à fixação de retribuição em múltiplos do salário mínimo. O que não se permite é a vinculação a múltiplos do salário mínimo, mas ‘o respeito ao pagamento de uma só vez o seu valor, para efeito de percepção de soldo ou vencimento básico’ (ADI nº 751-GO, Min. SYDNEY SANCHES). A norma constitucional vedativa ‘não pode abranger as hipóteses em que o objeto da prestação expressa em salários-mínimos tem a finalidade de atender às mesmas garantias que a parte final do inciso concede ao trabalhador e à sua família, presumivelmente capazes de suprir as necessidades vitais básicas’ (RE 170.203-6/GO, Min. ILMAR GALVÃO). 5. LEI GAÚCHA Nº 7.138/78. REMUNERAÇÃO DOS POLICIAIS - MILITARES: VENCIMENTOS (SOLDO E GRATIFICAÇÕES) E INDENIZAÇÕES. Alegação de que o somatório das parcelas é superior ao salário mínimo. Argumento insubsistente. Soldo é a parte básica, fixa, da remuneração a que faz jus o militar, conforme seu posto ou graduação, e a qual se acrescenta uma parte variável, a gratificação, dependendo do tempo de serviço, da função que exerce. Se acolhida a tese sustentada, o militar iniciante na carreira, sem gratificação e/ou indenização, perceberia vencimento inferior ao salário mínimo, em retribuição aos serviços que presta ao Estado. E salário aquém do mínimo é ilegal. 6. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. VENCIMENTOS E REMUNERAÇÃO. Os termos vencimentos e remuneração exsurgem na norma constitucional, um ao lado do outro, com os respectivos sentidos em função de situações diversas (art. 37, V, CF). Este preceito estatui que ‘os vencimentos dos servidores públicos, civis e militares, são irredutíveis e a remuneração observará o que dispõem os arts. 37, XI, XII, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I, CF. Assim, só os vencimentos - vencimentos e vantagens fixas - são irredutíveis. A remuneração, em sentido próprio, não, precisamente porque um de seus componentes é necessariamente variável. 6.1 - SERVIDORES MILITARES DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. REMUNERAÇÃO VARIÁVEL. Sendo a remuneração dos servidores militares gaúchos composta de vencimentos (soldo e gratificações) e indenizações, poderá ocorrer que as gratificações sendo extintas, não haja indenização a perceber, e ao servidor militar restará tão- somente um soldo inferior ao salário mínimo, o que é ofensivo à norma constitucional que estabelece a garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável (art. 7º, VII, CF). Agravo regimental em recurso extraordinário não provido” (STF, RE-AgR 201.460-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Maurício Corrêa, 27-09-1996, v.u., DJ 22-11-1996, p. 45.735).

                   Invocável, ainda, o teor da Súmula Vinculante n. 04 do Supremo Tribunal Federal:

“Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial”.

                   Averbe-se, por oportuno, que a solução da lide não transita pelo contraste da lei local com a súmula vinculante. A teor do art. 103-A da Constituição Federal implantado pela Emenda n. 45/04 e da Lei n. 11.417/06, a eficácia vinculante da súmula se dirige exclusivamente a atos administrativos ou decisões judiciais, não a atos normativos, motivo que indica a persistência do interesse de agir.

                   A redação do art. 88 da referida lei agride frontalmente o inciso XV do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo – aplicável por obra de seu art. 144 – em sua redação vigente ou pretérita (que é substancialmente idêntica) porque, para além de estabelecer piso remuneratório, vincula remuneração de servidor público ao salário mínimo em desobediência ao disposto na Constituição Federal (art. 7º, IV), expressamente referida na parte final do preceito enfocado.

                   Ademais, a sujeição à variação do valor do salário mínimo implica vilipêndio à autonomia municipal e à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo local e ofensa ao princípio da reserva legal para fixação e reajuste da remuneração do servidor público, patenteando agressão aos arts. 5º, § 1º, 24, § 2º, 1, e115, XI, da Constituição Estadual, aplicável na órbita municipal ex vi de seus arts. 144 e 297.

                   Destarte, opino pela declaração  de inconstitucionalidade do art. 88, da Lei Orgânica do Município de Ubirajara.

 

               São Paulo, 26 de abril de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

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