Autos n. 994.09.230167-4 (185.985.0/5-00)
Autor: Prefeito Municipal
de Guarulhos
Objeto de impugnação: Lei Municipal n. 6.556, de 10 de setembro de 2009
Ementa:
1) Lei Municipal n. 6.556, de 10 de setembro de 2009, do município
de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a fiscalização quanto
ao uso de vagas reservadas às pessoas portadoras de deficiência e com
dificuldade de locomoção nos estacionamentos das áreas e edificações de uso
coletivo.
2) Inconstitucionalidade formal subjetiva pelo vício de iniciativa
e pela ofensa ao Princípio da Separação e da Harmonia entre os Poderes (art. 5º,
caput, da Constituição do Estado).
3) Parecer pela procedência.
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Colendo
Órgão Especial
O
Prefeito Municipal de Guarulhos ingressou com a presente ação direta
objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 6.556, de
10 de setembro de 2009, que a fiscalização quanto ao uso de vagas reservadas às
pessoas portadoras de deficiência e com dificuldade de locomoção nos
estacionamentos das áreas e edificações de uso coletivo.
A
inicial indica a violação do art. 5º, do art. 25, dos incisos II e XIV do art.
47, do art. 144, do art. 174 e do inciso XVII do mesmo dispositivo, todos da
Constituição do Estado de São Paulo.
Em
resumo, a inicial debate-se pela violação do princípio da separação dos
poderes; pelo vício de iniciativa; pela ofensa ao art. 25 da Constituição
paulista, no que concerne à geração de despesas.
Ao
despachar a inicial (fls. 27/27v.), sua Excelência, o Desembargador Relator,
Dr. BARRETO FONSECA, deferiu o pedido de suspensão liminar, por entender
presentes os requisitos legais.
Notificada,
a Câmara Municipal prestou informações (fls. 42/47) e sustentou a
constitucionalidade da lei.
O
Procurador-Geral do Estado, por sua vez, defendeu a exegese segundo a qual a
sua intervenção nos feitos desta natureza não é obrigatória, mas sim
condicionada à verificação prévia da existência de interesse estadual na
preservação da norma impugnada (fls. 38/40).
É
o breve relato.
O
pedido de declaração de inconstitucionalidade é procedente, uma vez que a lei
municipal ora questionada, como exposto na inicial, invade esfera de
competência privativa do Prefeito, bem como viola o princípio da separação de
poderes.
À
evidência que a lei municipal questionada, embora contenha proposta louvável, invade
competência privativa do chefe do Poder Executivo municipal ao estabelecer
atribuições a órgãos da administração pública.
Assim,
apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para deflagrar processo legislativo
para aprovação de lei com o conteúdo da que se pretende ver declarada como
inconstitucional, sob pena de indevida interferência de um Poder sobre o outro.
Postulado
básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes,
constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de
observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma
Carta Estadual, e que assim dispõe:
Artigo
5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo,
o Executivo e o Judiciário.
Este
dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na
idéia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes
que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas
de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é
fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que “o princípio da separação
dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada)
significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho
harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão
(poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em
caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou
pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de
competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).
Como
conseqüência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual,
perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder
competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder
Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como,
por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a
separação ou divisão de poderes “consiste um confiar cada uma das funções
governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes
(...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a)
especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no
exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que,
além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente
independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José
Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros,
2006, 2ª ed., p. 44).
Também
por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos
mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e
disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder
Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina: “É a esse arranjo,
mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial
de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os
ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios
recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances),
tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers) (...)
A
distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a
determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através
da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto
é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções
que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis
quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à
lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas
participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada
categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza
específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
Assim, se em princípio a competência normativa
é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de
natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de
terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à
iniciativa legislativa do Poder Executivo.
Esse
desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra
do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes
conclusões: a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser
exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada
competência; b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa
legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; c) há
matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da
legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de
reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a
linha divisória da iniciativa legislativa: “Leis de iniciativa da Câmara ou,
mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal
não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis
orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts.
61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal”
(Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).
Portanto,
irradia-se do princípio da separação de poderes a própria técnica jurídica de
freios e contrapesos com a previsão de iniciativa legislativa reservada ao
Chefe do Poder Executivo em matéria administrativa.
Posto
isso, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta
a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 6.556,
de 10 de setembro de 2009, do município de Guarulhos.
São Paulo, 4 de março de 2010.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos –
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