Parecer
Autos nº. 994.09.230183-1 (185.969-0/2-00)
Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos
Objeto: Lei nº 6.557, de 10 de setembro de 2009, do Município de Guarulhos
Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Iniciativa
parlamentar. Controle da Administração. 2) Violação da separação de poderes.
Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art.5º, 47 II e XIV
da Constituição Paulista). 3) Criação
de novas despesas sem a indicação da respectiva fonte de receitas (art.25 da
Constituição Paulista). 4) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 6.557, de 10 de setembro de 2009, do Município de Guarulhos, daquele município, que dispõe sobre “A distribuição gratuita pelo Poder Público Municipal, de fraldas descartáveis e sondas urinárias para pessoas com deficiência física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosa acamada que não possuam recurso para adquiri-las e dá outras providências”.
Sustenta o autor que a referida legislação de iniciativa parlamentar é inconstitucional, por ter disciplinado matéria que é de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, a quem cabe disciplinar o planejamento, regulamentação e o gerenciamento dos serviços públicos municipais, além do que, cria despesas sem indicar a respectiva fonte.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 30/33).
O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 51/55, em defesa da constitucionalidade da lei impugnada.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 47/49).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Em que pese a
boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando
na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com
nossa sistemática constitucional.
Este é o texto da vergastada norma:
"Artigo
1º - Fica o Poder Público Municipal responsável pela distribuição de fraldas e
sondas urinárias descartáveis, para uso contínuo ou temporário, para pessoas
com deficiência física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida ou idosa
acamada que não possuam condições de adquiri-las, nas condições estabelecidas
nesta Lei.
§1º - Poderão
ser beneficiadas pela presente Lei todas as pessoas nas condições de que trata
o caput deste artigo, desde que sua renda familiar individual não seja superior
a 1 (um) salário mínimo vigente do País.
§2º -
Considera-se, para os efeitos desta Lei, como renda familiar individual a
totalidade da renda da família dividida pelo número de seus integrantes.
§3º - Cada
beneficiário da presente Lei terá direito a tantas fraldas e sondas urinárias
descartáveis quanto consideradas necessárias pelo médico responsável, limitado
o total a no máximo 90 (noventa) fraldas por mês para cada pessoa.
Art. 2º - As
fraldas e as sondas urinárias descartáveis de que trata a presente Lei não
poderão ser negociadas pelo beneficiário, por sua família ou por seus responsáveis,
a qualquer título, sendo que a infração desta proibição importará em
cancelamento do benefício.
Art. 3º - O
pedido para a concessão do benefício será dirigido à Secretaria de Saúde, órgão
responsável pela aplicação do disposto nesta Lei, na forma de seu regulamento,
e será instruído com os seguintes documentos:
I-
Cópia de Carteira de Identidade do beneficiário ou de
sua Certidão de Nascimento;
II-
Atestado médico comprovando a existência de
deficiência física, mental ou neurológica, de mobilidade reduzida ou a situação
de idoso acamado, com esclarecimento sobre a natureza permanente ou transitória
desse estado;
III-
Cópia de comprovante de residência;
IV-
Receita médica
na qual conste o nome do paciente e a indicação da necessidade de uso de
fraldas e/ou sondas urinárias descartáveis, com especificação do tamanho e da
quantidade adequados à situação;
V-
Compromisso do beneficiário ou de seu responsável de
uso de fraldas e/ou sondas urinárias descartáveis exclusivamente para os fins
estabelecidos nesta Lei.
Art. 4º - O Poder
Público Municipal poderá firmar convênios e parcerias com outras esferas de
governo e com empresas e entidades não governamentais para a consecução dos
objetivos estabelecidos nesta Lei, inclusive para a produção de fraldas e/ou
sondas urinárias descartáveis de modo mais econômico para sua distribuição
gratuita nos termos ora fixados.
Art. 5º - As
despesas decorrentes da execução desta lei, correrão por conta das dotações
orçamentárias próprias, suplementadas se necessário;
Art. 6º - O
Poder Executivo regulamentará a presente Lei, no que couber, no prazo máximo de
60 (sessenta) dias, contados da sua publicação.
Art. 7º- Esta
Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em
contrário.”
Como se pode observar, a lei, de iniciativa
parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela
Administração Pública, prevendo a necessidade de distribuição gratuita pelo
Poder Público Municipal, de fraldas descartáveis e sondas urinárias para
pessoas com deficiência física, mental ou neurológica, com mobilidade reduzida
ou idosa acamada que não possuam recurso para adquiri-las.
Não há dúvida de que, como tal, a
iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera
da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto
no art.5º e no art.47 II e XIV da Constituição Paulista.
É ponto pacífico na doutrina, bem como
na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de
administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e
execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder
Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos
normativos revestidos de generalidade e abstração.
Abstraindo quanto aos motivos que podem
ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente
inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão
administrativa do Município.
Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa,
que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento,
a direção,
a organização
e a execução de atos de governo. Isso
equivale
à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Dizer a respeito da execução de
serviços e atividades públicas do município cabe ao Executivo. Impor-lhe os ônus criados pela lei impugnada
é deliberar em caráter administrativo, o que extrapola a função legislativa.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de
Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode
legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão
própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a
Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em
atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o
Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que
residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional
(art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou
Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder
Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros
atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre
os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a
inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que
interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a
seguir:
“Ação direta
de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São
José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos
edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência
entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.”
(TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do
Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção
distribuição de
material explicativo dos
efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta
utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa
parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do
Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no
exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder
Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual.
JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j.
05.03.2008).
Não bastasse
o acima exposto, em casos assim esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a
inconstitucionalidade de normas que criam despesas para o Poder Público, sem a
indicação das respectivas fontes de receita, em violação ao disposto no art.25
da Constituição Bandeirante. Confiram-se, a título de exemplificação, recentes
julgados adiante indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.
19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007,
v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.
Diante do exposto, nosso parecer é no
sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei
Municipal nº 6.557, de 10 de setembro de 2009, do Município de Guarulhos.
São Paulo, 28 de janeiro de 2010.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos -
vlcb