Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 994.09.230500-5 (186.260.0/4)

Requerente: Prefeito do Município de Santa Isabel

Objeto: Lei nº 2.376, de 12 de dezembro de 2006, do Município de Santa Isabel

 

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade, promovida por Prefeito, da Lei n.º 2.376/2006, do Município de Santa Isabel, que “dispõe sobre a instalação de câmeras de vídeo no entorno de todas as agências bancárias e instituições financeiras localizadas no Município”. Iniciativa parlamentar. Ato normativo que cria ônus para a Administração decorrente do dever de fiscalizar. Violação ao princípio da separação dos poderes. Criação de despesas, ademais, sem indicação dos recursos disponíveis. Ofensa aos artigos 5º, 25, 47 II, e 144, da Constituição do Estado. Parecer pela procedência da ação

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Santa Isabel, tendo por objeto a Lei n.º 2.376/2006, do Município de Santa Isabel, que “dispõe sobre a instalação de câmeras de vídeo no entorno de todas as agências bancárias e instituições financeiras localizadas no Município”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo chefe do Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Afirma-se que a edição do ato normativo ofende ao princípio da separação dos Poderes (art. 5º da CE), porque a Edilidade estaria se imiscuindo em tema da alçada exclusiva do Prefeito.

Embora divisando “inconstitucionalidade flagrante”, o em. Des. PALMA BISSON, Relator, indeferiu o pedido liminar de suspensão da vigência da lei, anotando que, carente de regulamentação, o ato normativo não está vigendo, na prática (fls. 82/85).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações sobre o processo legislativo (fls. 105 e ss.).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 129/131).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Deflui dos autos que a lei em análise decorre de projeto de autoria do Vereador RODRIGO BUTTERBY e obriga as agências bancárias e instituições financeiras sediadas no Município a “manter em funcionamento, no mínimo, uma câmera para cobertura externa em frente de cada local de entrada e saída e/ou passagem externa obrigatória, bem como em cada caixa eletrônico instalado em suas dependências” (art. 1º, caput e § 1º), sob pena de multa (art. 2º).

A norma também prevê que as imagens obtidas sejam gravadas e conservadas por, no mínimo, 6 (seis) meses (art. 1º, § 2º), e que as  despesas decorrentes corram por conta de dotações orçamentárias próprias (art. 3º). Impõe ao Poder Executivo, por fim, o dever de regulamentá-la no prazo de 60 (sessenta) dias (art. 4º).

Recorde-se, inicialmente, que o C. Órgão Especial já se pronunciou no sentido de que a lei municipal que obriga a instalação de dispositivo eletrônico de segurança nas agências e postos de serviços bancários não diz respeito ao funcionamento das instituições financeiras, cuja regulamentação é privativa da União, mas ao tema segurança, sobre o qual o Município tem atribuições legislativas concomitantes com os demais entes políticos, na órbita do peculiar interesse local (art. 30, inc. I, da CF).

Confira-se:

INCIDENTE DE ÍNCONSTITUCIONALIDADE EM MANDADO DE SEGURANÇA - Lei municipal que determina instalação de portas eletrônicas de segurança individualizada nas agências e postos de serviços bancários - Competência constitucional referente às instituições financeiras - Inaplicabilidade - Artigos 22, incisos VI e VII, e 192, da Constituição da República - com a redação dada pela Emenda Constitucional n° 40, de 29 de maio de 2003, fora do enfoque da lei impugnada – Norma local que trata especificamente da questão física dos estabelecimentos, em nada interferindo na matéria reservada à União - Inaplicáveis, ainda, os artigos 49 e 51, da Constituição Federal e, conseqüentemente, do artigo 144, da Constituição Estadual - Tema da segurança sobre o qual o Município tem atribuições concomitantes com as da União e do Estado – Improcedência (INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI nº 130.486.0/0-00, j. 30.08.2006, rel. des. Des. MARCUS ANDRADE).

O STF avaliza essa orientação, como comprovam os seguintes julgados:

E M E N T A: ESTABELECIMENTOS BANCÁRIOS - COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA, MEDIANTE LEI, OBRIGAR AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS A INSTALAR, EM SUAS AGÊNCIAS, DISPOSITIVOS DE SEGURANÇA - INOCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA FEDERAL - ALEGAÇÃO TARDIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 144, § 8º, DA CONSTITUIÇÃO - MATÉRIA QUE, POR SER ESTRANHA À PRESENTE CAUSA, NÃO FOI EXAMINADA NA DECISÃO OBJETO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO - INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO "JURA NOVIT CURIA" - RECURSO IMPROVIDO. - O Município pode editar legislação própria, com fundamento na autonomia constitucional que lhe é inerente (CF, art. 30, I), com o objetivo de determinar, às instituições financeiras, que instalem, em suas agências, em favor dos usuários dos serviços bancários (clientes ou não), equipamentos destinados a proporcionar-lhes segurança (tais como portas eletrônicas e câmaras filmadoras) ou a propiciar-lhes conforto, mediante oferecimento de instalações sanitárias, ou fornecimento de cadeiras de espera, ou, ainda, colocação de bebedouros. Precedentes (AI 347717 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 31/05/2005, DJ 05-08-2005 PP-00092 EMENT VOL-02199-06 PP-01098).

EMENTA: Agravo regimental em agravo de instrumento. 2. Recurso que não demonstra o desacerto da decisão agravada. 3. Agências bancárias. Lei Municipal prevendo instalação de portas eletrônicas de segurança. Constitucionalidade. Precedentes. 4. Ausência de prequestionamento quanto a alguns dispositivos constitucionais. Embargos de declaração não opostos. Incidência das Súmulas 282 e 356. 5. Agravo regimental a que se nega provimento (AI 429070 AgR, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 21/06/2005, DJ 12-08-2005 PP-00016 EMENT VOL-02200-02 PP-00248 RTJ VOL-00195-02 PP-00711 LEXSTF v. 27, n. 321, 2005, p. 94-99).

EMENTA: CONSTITUCIONAL. BANCOS: PORTAS ELETRÔNICAS: COMPETÊNCIA MUNICIPAL. C.F., art. 30, I, art. 192. I. - Competência municipal para legislar sobre questões que digam respeito a edificações ou construções realizadas no município: exigência, em tais edificações, de certos componentes. Numa outra perspectiva, exigência de equipamentos de segurança, em imóveis destinados ao atendimento do público, para segurança das pessoas. C.F., art. 30, I. II. - R.E. conhecido, em parte, mas improvido (RE 240406, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 25/11/2003, DJ 27-02-2004 PP-00038 EMENT VOL-02141-05 PP-01006)

De toda sorte, em que pese admitida a competência legislativa do Município para dispor sobre o assunto, há que se reconhecer o vício de iniciativa da lei de Santa Isabel e, em conseqüência dele, a inconstitucionalidade da norma sindicada.

É que somente ao Chefe do Poder Executivo assiste a iniciativa de leis que criem – como é o caso – obrigações e deveres para órgãos municipais (art. 47, inc. II da Constituição Estadual, de aplicação extensível aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta).

Note-se que, instituindo uma obrigação ou uma proibição para o munícipe (art. 1º, caput e §§), a lei impõe à Administração o correspondente dever de fiscalizá-lo. Essa providência, que visa à concretização do quanto estabelecido no art. 2º, demanda a criação de serviço público.

Como a lei foi concebida no Poder Legislativo, a iniciativa acabou invadindo a seara da administração pública, da alçada exclusiva do Prefeito, violando sua prerrogativa de analisar a conveniência e oportunidade das exigências que a lei quis determinar.

Bem por isso, a matéria somente poderia objeto de tramitação legislativa por proposta do próprio Chefe do Poder Executivo.

Ofendeu-se, igualmente, o princípio basilar da separação de poderes, pois, na dicção desse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (ADIN n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Solução análoga foi dada pelo C. Órgão Especial no julgamento da ADIN nº 157.777.0/0, que tinha como objeto lei ambiental relativa ao uso de água potável no município. Mesmo afirmando a competência legislativa concorrente da União, Estados e Municípios, verificou-se que a lei vergastada acabou criando o dever de fiscalização e orientação para os órgãos da Prefeitura, “invadindo assim ato de gestão administrativa que é de iniciativa privativa do chefe do Executivo, nos termos do art. 47, II e XIV, do Estado de São Paulo” (do voto do Des. RIBEIRO DOS SANTOS).

No caso dos autos, existe outro fundamento, igualmente relevante, que, por si só, demandaria o reconhecimento da inconstitucionalidade.

A regra do art. 25 da Constituição do Estado, fortemente influenciada pela noção de responsabilidade fiscal, exige que o projeto de lei que implique criação ou aumento de despesa pública contenha a previsão dos recursos disponíveis para o atendimento dos novos encargos.

Na hipótese em análise é intuitivo que a atividade de fiscalização instituída gera despesas. E a lei não contém nenhum elemento indicador de sua provisão, sendo também sob esse aspecto incompatível com o texto constitucional.

Nesse panorama, opina-se pela declaração de inconstitucionalidade da lei impugnada, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n.º 2.376/2006, do Município de Santa Isabel, que “dispõe sobre a instalação de câmeras de vídeo no entorno de todas as agências bancárias e instituições financeiras localizadas no Município”.

 

São Paulo, 19 de maio de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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