Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 994.09.230743-7 (187.713.0/0)

Autor: Prefeito Municipal de Jacareí

Objeto: Lei Complementar n. 5.409, de 21 de novembro de 2009

 

 

 

Ementa: Lei n. 5.409, de 21 de novembro de 2009, do Município de Jacareí, que “dispõe sobre a isenção de cobrança de pedágio na cabine antifuga, no acesso aos bairros no entorno do Chácaras Reunidas Ygarapés, Lagoinha e à Avenida Lucas Nogueira Garcez, a todos os veículos de passeio, motocicletas, caminhões, utilitários, vans, caminhonetes e outros que tenham placas do Município de Jacareí”, de autoria parlamentar.Violação dos arts. 4º, 5º , 111, 114 e 163, V, da Constituição do Estado de São Paulo. Parecer pela declaração de inconstitucionalidade.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

O Prefeito Municipal de Jacareí formulou a presente ação direta objetivando  a  declaração  de   inconstitucionalidade da Lei Complementar                                                                                                               n. 5.409, de 21 de novembro de 2009, do Município de Jacareí, que “dispõe sobre a isenção de cobrança de pedágio na cabine antifuga, no acesso aos bairros no entorno do Chácaras Reunidas Ygarapés, Lagoinha e à Avenida Lucas Nogueira Garcez, a todos os veículos de passeio, motocicletas, caminhões, utilitários, vans, caminhonetes e outros que tenham placas do Município de Jacareí”.

Sustenta o autor, que a lei em questão é inconstitucional em virtude de violar não só, o princípio da separação dos poderes previsto no art. 5º da Constituição do Estado, vez que se trata de lei de iniciativa de vereador, mas também, os princípios da igualdade, da razoabilidade e da impessoalidade, previstos no art. 111, da Carta Paulista.

Argumenta, ainda, que a lei analisada disciplinou assunto que não se insere na competência legislativa do Município, desrespeitando os artigos 1º, 24, §2º e 144, da Constituição do Estado.

Houve deferimento do pedido de medida liminar, sendo suspensa a eficácia da indigitada lei com efeitos ex nunc,  fls. 90/91.  

A Câmara Municipal de Jacareí prestou informações às fls. 116/118.

Devidamente citado, o Procurador-Geral do Estado manifestou-se às fls. 107/108.

É o breve relato.

De fato, no Brasil, como se sabe, o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.

Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo[1]  . Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo.” 

Vistos esses aspectos, tem-se no caso sob exame que a Câmara de  Vereadores de Jacareí aprovou a Lei n.º 5.409/09, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre isenção de pedágio para todos os veículos de passeio, motocicletas, caminhões, utilitários, vans, caminhonetes emplacados no Município de Jacareí.

Essa lei, porém, malgrado os elevados propósitos que nortearam a sua edição, não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal de Jacareí acabou por interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

Com efeito, é irrecusável a competência da Câmara para legislar sobre os assuntos de interesse local, inclusive daqueles que digam respeito à proteção dos direitos  da criança e adolescentes, ao desenvolvimento do senso de cidadania, etc., mas há alguns limites que devem ser observados, e que decorrem, basicamente, da necessidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º, da Constituição do Estado de São Paulo.

Como já visto inicialmente, a administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e os serviços públicos que serão prestados à população. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

Logo, se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá uma hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis[2] , criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes, incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

Na ordem constitucional vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE., art. 47, inciso II) e a praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art. 47, inciso XIV).

Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que: “Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194)

Nesse contexto, a aprovação de lei de iniciativa parlamentar, pela Câmara Municipal, que autoriza o Executivo a  criar uma obrigação para setores de seu próprio organismo de execução, só pode ser interpretada como atentatória ao postulado básico da independência e harmonia entre os poderes (CE., art. 5.º, caput), visto que a Constituição em vigor não exige nenhuma autorização especial para a prática de ato que se insere na órbita de competência tipicamente administrativa.

Em suma, a Câmara Municipal de Jacareí não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração, como criar obrigações para serem executadas pela própria administração direta. Disso resulta a conclusão de que referido ato legislativo  é incompatível com o princípio da independência e harmonia entre os poderes.

Por outro lado, a Lei n. 5.409/09, do Município de Jacareí, afronta indelevelmente os princípios constitucionais da isonomia, impessoalidade e razoabilidade, previstos na Constituição Paulista nos arts. 4º, 111,  114  e 163, V, bem assim  na Constituição Federal nos arts. 5º, caput, 37 e 150,V, máculas que a inquinam, também, de inconstitucionalidade material.

A inconstitucionalidade material da lei impugnada encontra parâmetro nos seguintes preceitos da Constituição do Estado de São Paulo:

 

            “Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

            ..........................................

            Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

            ...........................................

 

Art. 159 - A receita pública será constituída por tributos, preços e outros ingressos.

            Parágrafo único - Os preços públicos serão fixados pelo Executivo, observadas as normas gerais de Direito Financeiro e as leis atinentes à espécie.

            ...........................................

            Art. 163 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado ao Estado:

            (....)

            V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributo, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público Estadual;”

 

Pois bem. Não obstante a limitação de tráfego que acarreta, a cobrança de pedágio em rodovias conservadas pelo Poder Público ou seus concessionários está expressamente autorizada na Constituição Estadual. É o que se lê no artigo 163, V:  “... é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público”. A regra da Constituição Estadual é a reprodução do inciso V, do artigo 150 da CF.

A doutrina e a jurisprudência há anos se ocupam em estudar a natureza jurídica do pedágio e os limites à sua implantação. E o debate, que já foi ardente, vem sendo aplacado ao longo dos anos. Hoje, prevalece a tese  defendida — dentre outros ilustres publicistas[3]  — por Celso Antônio Bandeira de Mello, que a expõe  nesses termos:

“Não há duvidar, pois, que o pedágio, modalidade característica da remuneração do concessionário de obra viária, não é novidade alguma para quem quer que seja. Daí não se segue, todavia, que a natureza jurídica dele haja sido reconhecida de modo pacífico, entre nós. Sobretudo no passado, discutiu-se muito se seria uma ‘taxa’, isto é, uma espécie de tributo, ou se corresponderia a uma ‘tarifa’, entendida esta como cobrança despida de caráter tributário e muitas vezes designada sob o rótulo, ao nosso ver infeliz, de ‘preço público’.

Consoante nos parece, (...), o pedágio, dependendo da hipótese, ora será uma ‘tarifa’, instrumento despido de caráter tributário, ora será uma ‘taxa’.

A nosso ver, será ‘tarifa’ quando se constitui na remuneração de concessionário. Inversamente, será taxa quando constituir em pagamento devido ao Poder Público” [4] .

Ressalvada a polêmica, o fato é que, quer seja classificado como taxa, quer como tarifa, o regime jurídico do pedágio, cuja finalidade é custear os serviços de conservação das estradas, deve alcançar os usuários de maneira uniforme.

Carmem Lúcia Antunes Rocha, em obra dedicada ao estudo dos serviços públicos concedidos, refere-se ao princípio da igualdade na prestação   do   serviço, “significando aqui que todos os usuários devem                                                                                                          receber o mesmo tratamento em determinado serviço público, guardadas as diferenças de suas condições, que conduzam a eventuais distinções também de cuidados” [5] .

Decorrência do que acaba de ser exposto é que o pedágio — que é a remuneração pelo serviço de conservação das estradas — pode ser instituído, mas deve atingir a todos os usuários da via público de maneira equivalente. Mas não é isso que fez o legislador de Jacareí ao isentar de pedágio os veículos cujos proprietários possuam residência permanente ou exerçam atividades profissionais permanentes naquele Município, devidamente cadastrados e identificados pelo órgão executivo de trânsito de Jacareí.

 A afronta ao princípio da igualdade é flagrante. Com peculiar clareza, o professor Celso Antônio Bandeira de Mello nos ensina: “o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais”. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. Cumpre ademais que a diferenciação do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta. [6]

“Data venia”, a hipótese de isenção contemplada pelo legislador, além de sobremaneira ofensiva à isonomia, por impor tratamento desigual aos   que juridicamente estão num mesmo plano de igualdade — os usuários                                                                                                               da estrada municipal —, é também incompatível com o princípio da razoabilidade.

Esse preceito constitucional “serve de baliza à discricionariedade do legislador que, no exercício da função legislativa, não pode prever situações irrazoáveis”, sob pena de incidir em inconstitucionalidade. (Cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Princípio da Razoabilidade, em “Temas Polêmicos sobre Licitações e Contratos”, Malheiros Editores, São Paulo, 1995, 2.ª edição, pp. 24/25)

A importância da razoabilidade, como limitação ao exercício da atividade legislativa, foi evidenciada por Carlos Roberto de Siqueira, “in verbis”:

“A moderna teoria constitucional tende a exigir que as diferenciações normativas sejam razoáveis e racionais. Isto quer dizer que a norma classificatória não deve ser arbitrária, implausível ou caprichosa, devendo, ao revés, operar como meio idôneo, hábil e necessário ao atingimento de finalidades constitucionalmente válidas. Para tanto, há de existir uma indispensável relação de congruência entre a classificação em si e o fim a que ela se destina. Se tal relação de identidade entre meio e fim - ‘means-end relationship’, segundo a nomenclatura norte-americana - da norma classificatória não se fizer presente, de modo que a distinção jurídica resulte leviana e injustificada, padecerá ela do vício da arbitrariedade, consistente na falta de ‘razoabilidade’ e de ‘racionalidade’, vez que nem mesmo ao legislador legítimo, como mandatário da soberania popular, é dado discriminar injustificadamente entre pessoas, bens e interesses na sociedade política.” (Cf. O Devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil, Forense, 1989, p. 157).

 

Nesse contexto, não se afigura racional ou lógico isentar do pagamento do pedágio  os veículos cujos proprietários residam ou exerçam atividades profissionais permanentes no Município de Jacarei e impor a cobrança aos demais veículos que circulem pelas mesmas vias. Todos os que utilizam as vias públicas são responsáveis por seu desgaste, em maior ou menor grau de intensidade, e devem colaborar com sua manutenção, não havendo justificativa lógica para impor regime jurídico diverso aos usuários somente em razão da origem da residência e exercício de atividade profissional.

Isentar da cobrança de pedágio todos os proprietários de veículos de passeio, motocicletas, caminhões utilitários, vans, caminhonetes e outros, emplacados no Município de Jacareí, enquanto dos demais usuários das mesmas vias exige-se o pagamento da taxa, revela o verdadeiro propósito da isenção, que não está fundada em situação de desigualdade que justifique razoavelmente o tratamento diferenciado. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “não é qualquer fundamento lógico que autoriza desequiparar, mas tão-só aquele que se orienta na linha de interesses prestigiados na ordenação jurídica máxima. Fora daí ocorrerá incompatibilidade com o preceito igualitário” . [7]

O princípio da igualdade, contemplado na ordem constitucional vigente, é incompatível com o tratamento diferenciado que foi dispensado aos proprietários de veículos oriundos de outros Municípios. Até porque, por determinação constitucional expressa (artigo 19 da CF e art. 144 da CE) os Municípios não podem "criar distinção entre brasileiros ou preferências entre si".

Esse o sentido que o Supremo Tribunal Federal há muito tempo atribui ao princípio da igualdade, e que foi explicitado em Acórdão relatado pelo Excelentíssimo Ministro Décio Miranda.  Na ocasião, decidiu-se pela inconstitucionalidade de uma lei do Estado de Pernambuco por afrontar regra constitucional que veda à União, aos Estados e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uma dessas pessoas de direito público interno contra outra (Cf. RP nº 1.85-2/PE).

Mais recentemente, o eminente Ministro Marco Aurélio teve oportunidade de afirmar que “não podem a lei, o decreto, os atos regimentais ou instruções normativas, e muito menos acordo firmado entre partes, superpor-se a preceito constitucional, instituindo privilégios para uns em detrimento de outros, posto que além de odiosos e iníquos, atentam contra os princípios éticos e morais que precipuamente devem reger os atos relacionados com a Administração Pública. (...) (CF, artigo 5 , caput)”. [8]

A isenção prevista na legislação municipal traduz dupla ofensa à ordem constitucional em vigor. Primeiro, afronta o princípio da igualdade ou

                                                                                                   isonomia. Mas, além disso, fere o princípio da razoabilidade, que está previsto no art. 111, da Constituição Paulista, ante a total inadequação entre meios e fins. 

Em primorosa monografia sobre o tema, Suzana de Toledo Barros anota que, “não raro, a violação ao princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade) vem acompanhada de atentado a outros princípios ou regras constitucionais, mas os fundamentos de cada qual são perfeitamente distinguíveis. É o caso, v.g., de uma restrição desigualitária, em que o legislador, além de impor uma restrição em si mesma desarrazoada, o faz em relação a apenas um grupo de pessoas” (Cf. “O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos fundamentais”, Editora Brasília Jurídica, 1996, p. 73).

Reconhece-se que, por força do art. 150, “caput”, e inciso V, da Carta Magna, os Municípios estão autorizados a instituir a cobrança de pedágio. No entanto, uma vez instituído o pedágio — que só pode ter por finalidade a conservação das vias nas quais está instalado — deve ser cobrado de todos que se utilizem de vias conservadas pelo Poder Público. Não se admite a imposição de regras que desvirtuem a natureza do pedágio, como ocorre com a “isenção” concedida. Na verdade, o que foi chamado de “isenção” do pedágio nada mais é do que uma “solução” para impedir que veículos trafeguem por vias alternativas locais como opção à utilização de Rodovia Federal ou Estadual.

Com isso, fica claro que o legislador local não pretendeu atingir com a isenção uma finalidade que possa ser considerada constitucionalmente válida, restando patente, no caso, a violação da razoabilidade.

Nesse passo, releva notar que a conclusão de inconstitucionalidade, pela ótica da razoabilidade, não resulta só da análise da exposição de motivos, mesmo porque, consoante lição básica de hermenêutica, “a constitucionalidade não pode decorrer só dos motivos da lei” (Cf. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, Rio de Janeiro, 16.ª edição, p. 309). E a ausência de correspondência lógica entre os fatos eleitos como fatores diferenciais e o regime jurídico deles decorrentes significa, como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, afronta ao princípio da isonomia . [9]

Assim, a conclusão de inconstitucionalidade, pela ótica da igualdade e da razoabilidade, é resultante das seguintes premissas: (I) de que todos devem colaborar à manutenção das vias e estradas locais, (II) que a isenção dirigida a apenas alguns tem o único propósito de evitar que essas vias e estradas sejam utilizadas como rotas alternativas de veículos que não querem pagar pedágio na rodovia federal.

Em face do exposto, aguardo o julgamento de procedência desta ação direta - confirmando, assim, a liminar inicialmente deferida – a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei n.º 5.409, de 21 de novembro de 2009, do Município de Jacareí, por afronta aos arts. 4º, 5.º,  37,  47, II e XIV, 111, 114, 163, V,  da Constituição Paulista, cuja observância é obrigatória pelos Municípios, por força do art. 144 dessa mesma Carta Política.

São Paulo, 29 de junho de 2010.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

-Jurídico –

 

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[1] Em sua magistral obra “Esprit des lois”, Montesquieu formulou a seguinte advertência: “tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executá-las e o de julgar.”

[2] R. Carré de Malberg distingue Estado legal e Estado de Direito: “El Estado de derecho se establece simple y únicamente en interés y para la salvaguardia de los ciudadanos; sólo tiende a asegurar la protección de su derecho o de su estatuto individual. El régimen del Estado legal está orientado en otra dirección. Se relaciona con un concepto político referente a la organización fundamental de los poderes, concepto según el cual debe la autoridad administrativa, en todos los casos y respecto a todas las materias, subordinarse al órgano legislativo, en el sentido de que no podrá actuar sino en ejecución o por autorización de una ley. Esta subordinación no se reduce desde luego a aquellos actos de administración que producen efectos de orden individual respecto a los administrados, sino que se extiende, en principio, a todas las medidas de administración, hasta aquellas – reglamentarias o particulares – que, sin tocar al derecho de los administrados, conciernen únicamente al funcionamiento interno de los servicios administrativos y sólo deben dejar sentir sus efectos en el interior del organismo administrativo.” (Teoría General del Estado, Traducción de José Lión Depetre, Facultad de Derecho/UNAM e Fondo de Cultura Económica, México, 2001, p. 451)

[3] Cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, in Parcerias na administração pública. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 319. Marçal Justen Filho, in Concessões de serviços públicos, São Paulo: Dialética, 1999, p. 142/144; Carmem Lúcia Antunes Rocha, in Estudo sobre concessão e permissão de serviço público no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 76 (nota 40); Dinorá Adelaide Musetti Grotti, in O serviço público e a constituição brasileira de 1988, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 242.;

[4] in Decisões e pareceres jurídicos sobre pedágios. São Paulo: ABCR, 2002, p. 14.

[5] In Estudo sobre concessão e permissão de serviço público no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 95.

 

[6] In “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999,  p. 35.

[7] In “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999,  p. 43.

[8] MS 22493/RJ, Relator Min. Marco Aurélio, DJ DATA-11-12-96 PP-49765 EMENT VOL-01854-02 PP-00357; julgamento  26/09/1996 - Tribunal Pleno

[9] Ob. cit. p. 41.